Conflito de atribuições – Cível
Autos nº137.122/08
(PPIC nº65/08-Cidadania)
Suscitante: 1º Promotor de Justiça de
Caraguatatuba - Cidadania
Suscitado: Promotoria de Habitação e
Urbanismo de Caraguatatuba
Ementa: 1)Conflito
negativo de atribuições. 1º Promotor de Justiça de Caraguatatuba –
atribuições na área da Cidadania (suscitante) e Promotora de Justiça em
exercício na área de Habitação e Urbanismo. 2)Representação.
Notícia de invasão de área pública. Instauração de procedimento
investigatório na Promotoria de Habitação e Urbanismo (suscitada).
Encaminhamento de cópias para a Promotoria da Cidadania, para apuração de
eventual ato de improbidade administrativa. 3)Objeto da
investigação. Possibilidade de sobreposição de interesses supra-individuais
de mais de uma área de atuação. Solução do conflito pelo critério da
prevenção (art.114 §3º da Lei Complementar nº734/93). 4)Conflito
conhecido e dirimido, declarando-se caber à suscitada, pela prevenção,
prosseguir na investigação. |
Vistos,
1)Relatório.
Tratam estes autos de conflito
negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 1º Promotor de Justiça de Caraguatatuba
(Cidadania), e como suscitada a DD. Promotora
de Justiça de Habitação e Urbanismo de Caraguatatuba.
Como se infere dos autos, a suscitada,
atuando na Promotoria de Habitação e Urbanismo de Caraguatatuba, recebeu
representação, na qual foi solicitada adoção de providências contra invasões de
áreas públicas no Município de Caraguatatuba. Com base nisso, instaurou
procedimento preparatório, tendo como objeto “Averiguação de invasão e ocupação
de área pública no Jardim Santa Rosa”.
Além
disso, determinou o encaminhamento de cópias à Promotoria de Justiça da
Cidadania da comarca, certamente por vislumbrar a possibilidade de aplicação da
Lei de Improbidade Administrativa - Lei nº8429/92 (cópia da Portaria nº42/08 às
fls.4).
Ao
receber as cópias, o suscitante, que exerce as atribuições de Promotor de
Justiça da Cidadania de Caraguatatuba, instaurou procedimento preparatório ao
inquérito civil (cf. portaria de fls.2) e suscitou conflito negativo de
atribuições, alegando, em síntese, que: (a) não há nenhum fato que justifique o
encaminhamento de cópias da representação para a Promotoria da Cidadania; (b)
ainda que houvesse a narração de ato de improbidade administrativa, deveria a
suscitada investigar tais fatos, e eventualmente adotar as medidas cabíveis
(fls.25/28).
É
o relato do essencial.
2)Fundamentação.
É possível afirmar que o conflito
negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.
Como
anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições
quando “dois ou mais órgãos de execução
do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de
determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo
aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005,
p.196).
Como
se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial
competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que
o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido:
Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel
Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed.,
São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São
Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel
Amorim Assumpção Neves, Competência no
processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.
Esta
idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de
competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por
Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil,
t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus,
1922, p.621 e ss; e
Ora,
se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de
determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa,
não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão
ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de
elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.
Pode-se,
deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada
investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a
propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso
concreto investigado.
O
objeto da representação, originariamente, era a ocorrência de invasão e
ocupação de área pública. Diante disso, a suscitada, certamente vislumbrando a
possibilidade de ocorrência de atos de improbidade administrativa, determinou o
encaminhamento de cópias ao suscitante, Promotor de Justiça com atribuições na
área da Cidadania.
Entretanto,
com a devida vênia, equivocou-se.
Primeiro,
porque parece não haver nenhuma notícia consistente no sentido da ocorrência de
ato de improbidade administrativa, no expediente em análise, a justificar a
instauração de investigação específica para sua apuração.
Ademais,
admitindo por hipótese a existência de indícios de improbidade, a atribuição
será mesmo da suscitada.
Com
o devido respeito a entendimentos em sentido diverso, não nos parece correto o
raciocínio no sentido de que, em todo e qualquer caso, havendo possibilidade de
imputação de prática de atos de improbidade administrativa, deva a investigação
ser conduzida pelo membro do parquet
que atua como Promotor da Cidadania, bem como que a ação pertinente seja por
ele proposta.
Se
a única questão a ser investigada for a prática de ato de improbidade
administrativa, não haverá dúvida de que caberá ao Promotor da Cidadania
conduzir a apuração.
Entretanto,
se há outra questão envolvida como, por exemplo, notícia de prática de atos
lesivos ao meio ambiente, ao interesse urbanístico, ou ao consumidor, nada
impedirá que o órgão ministerial que atue em Promotoria especializada
investigue o fato, e posteriormente proponha demanda judicial, cumulando
pedidos de providências relacionadas à proteção daquele interesse coletivo
específico (meio ambiente, consumidor, urbanismo) com a pretensão de aplicação
de sanções relacionadas aos atos de improbidade administrativa apurados.
Diga-se
mais: caso fossem propostas duas ações distintas relacionada ao mesmo fato, uma
com pretensão à tutela de específico interesse coletivo (meio ambiente,
consumidor, etc.) e outra colimando apenas a aplicação das sanções decorrentes
do ato de improbidade, certamente, em função da conexão de causas, dar-se-ia a
reunião de feitos para instrução e julgamento conjunto (art.105 do CPC).
De
outro lado, é oportuno anotar que se afigura extremamente comum que, em
determinada investigação, verifique-se a existência de mais de um interesse,
afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público. Isso decorre da
própria complexidade dos interesses coletivos, cujo dinamismo faz com que nem
sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente
estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.
Em
outras palavras, é extremamente comum que haja, em certo caso considerado,
sobreposição de matérias afetas a diferentes áreas de atuação.
A
Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual
nº734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes
critérios para sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a
intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo do interesse público mais abrangente (art.114 §2º); (b) tratando-se de
interesses de abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art.114
§3º); e (c) sendo todas as
atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou
procedimento exercer as funções do Ministério Público (art.114 §3º).
Diante
dos três critérios indicados em lei, acima referidos, cumpre examinar qual
deles serviria ao caso versado nestes autos.
Tratando
do tema, Hugo Nigro Mazzilli anota que “se
houver mais de uma causa bastante para a intervenção do Ministério Público no
feito, nele funcionará o membro da instituição incumbido do zelo do interesse
público mais abrangente”, esclarecendo que para tais fins, a análise da
abrangência deve ser feita no sentido do individual para o supra-individual (Regime Jurídico do Ministério Público,
6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.421/422).
Assim,
pondere-se, como esclarecimento, que em casos envolvendo conflitos entre
Promotorias especializadas na tutela de interesses metaindividuais, em que desde
logo fique demonstrada, de forma concreta, a presença de fundamentos para a
atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção
(art.114 §3º da Lei Complementar Estadual nº734/93).
Aliás, como reforço a tal raciocínio, valeria trazer à
colação também a observação de que no processo coletivo, a competência para
julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do
dano, nos termos do art.2º da Lei nº7347/85. Mas quando o dano coletivo se
produz em mais de um foro, o parágrafo único do mencionado art.2º da Lei da
Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito
da competência: a prevenção.
Nesse
sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação
Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p.483/484, nota n.6 ao art.2º da Lei
da Ação civil Pública) que “Quando o dano
ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca,
qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se
a questão do conflito da competência pela prevenção”.
Anote-se, ademais, que o critério da prevenção,
quando o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com
atribuições para a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende
ao interesse geral, à continuidade da atividade ministerial, à eficiência, e à
eficaz e pronta resposta às demandas que a sociedade direciona ao parquet.
Deste
modo, se no caso concreto há interesses relacionados a mais de uma área de
atuação em defesa de interesses supra-individuais, o órgão ministerial que
primeiro tomou contato com o caso deve prosseguir na investigação, adotando
eventualmente as providências judiciais cabíveis.
3)Decisão.
Diante do exposto, conheço do
presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art.115
da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao DD. Promotora de Justiça com atribuições na
área Habitação e Urbanismo (suscitada) prosseguir na investigação, em seus
ulteriores termos.
Publique-se
a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.
Providencie-se
a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de
Tutela Coletiva.
São Paulo, 11 de novembro de 2008.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça