Conflito de atribuições – Cível
Autos nº. 137.123/08
(PPIC nº. 66/08-Cidadania)
Suscitante: 1º Promotor
de Justiça de Caraguatatuba - Cidadania
Suscitado: Promotoria de
Justiça do Meio Ambiente de Caraguatatuba
Ementa: 1) Conflito negativo de atribuições. 1º Promotor de Justiça de Caraguatatuba – atribuições na área da Cidadania (suscitante) e Promotora de Justiça em exercício na área de Meio Ambiente (suscitada). 2) Representação. Notícia de poluição sonora. Instauração de procedimento investigatório na Promotoria de Justiça do Meio Ambiente. Encaminhamento de cópias para a Promotoria de Justiça da Cidadania, para apuração de eventual ato de improbidade administrativa. 3) Objeto da investigação. Possibilidade de sobreposição de interesses supra-individuais de mais de uma área de atuação. Solução do conflito pelo critério da prevenção (art.114, § 3º da LC nº. 734/93). 4) Conflito conhecido e dirimido, declarando-se caber à suscitada, pela prevenção, prosseguir na investigação.
Vistos,
Tratam estes autos de conflito negativo de
atribuições, figurando como suscitante o DD. 1º Promotor de Justiça de Caraguatatuba (Cidadania), e como
suscitada a DD. Promotora de Justiça do Meio
Ambiente de Caraguatatuba.
Como se infere dos autos, a suscitada, atuando na
Promotoria de Justiça do Meio Ambiente de Caraguatatuba, recebeu representação,
na qual foi solicitada adoção de providências ante a poluição sonora causada
pelo “Bar da Geralda”, no Município de Caraguatatuba. Com base nisso, instaurou
procedimento preparatório, tendo como objeto “Averiguação de poluição sonora
advinda do estabelecimento “Bar da Geralda”.
Além
disso, determinou o encaminhamento de cópias à Promotoria de Justiça da
Cidadania da Comarca, certamente por vislumbrar a possibilidade de aplicação da
Lei de Improbidade Administrativa - Lei nº. 8.429/92 (fl. 06 – item 6).
Ao receber as
cópias, o suscitante, que exerce as atribuições de Promotor de Justiça da
Cidadania de Caraguatatuba, instaurou procedimento preparatório ao inquérito
civil (cf. portaria de fls. 2) e suscitou conflito negativo de atribuições,
alegando, em síntese, que: (a) não há nenhum fato que justifique o
encaminhamento de cópias da representação para a Promotoria da Cidadania; (b)
ainda que houvesse a narração de ato de improbidade administrativa, deveria a
suscitada investigar tais fatos, e eventualmente adotar as medidas cabíveis
(fls. 40/41).
É
o relato do essencial.
O conflito negativo de atribuições está configurado e
deve ser conhecido.
Como anota a
doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando
“dois ou mais órgãos de execução do
Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de
determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo
aquele que deverá atuar.[1]
Como
se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial
competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que
o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido:
Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel
Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed.,
São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São
Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel
Amorim Assumpção Neves, Competência no processo
civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.
Esta idéia,
aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo,
funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e
sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose
Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, pág. 621 e ss; e
Ora, se para
a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada
demanda a lei processual estabelece, a
priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há
razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão
ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de
elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.
Pode-se,
deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada
investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a
propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso
concreto investigado.
O
objeto da representação, originariamente, era a ocorrência de poluição sonora.
Diante disso, a suscitada, certamente vislumbrando a possibilidade de
ocorrência de atos de improbidade administrativa, determinou o encaminhamento
de cópias ao suscitante, Promotor de Justiça com atribuições na área da Cidadania.
Entretanto, com
a devida venia, equivocou-se.
Primeiro,
porque parece não haver nenhuma notícia consistente no sentido da ocorrência de
ato de improbidade administrativa, no expediente em análise, a justificar a
instauração de investigação específica para sua apuração.
Ademais, admitindo
por hipótese a existência de indícios de improbidade, a atribuição será mesmo
da suscitada.
Respeitando
entendimentos em sentido diverso, não nos parece correto o raciocínio no
sentido de que, em todo e qualquer caso, havendo possibilidade de imputação de
prática de atos de improbidade administrativa, deva a investigação ser
conduzida pelo membro do parquet que
atua como Promotor de Justiça da Cidadania, bem como que a ação pertinente seja
por ele proposta.
Se a única
questão a ser investigada for a prática de ato de improbidade administrativa,
não há dúvida de que caberá ao Promotor de Justiça da Cidadania conduzir a
apuração.
Entretanto,
se há outra questão envolvida como, por exemplo, notícia de prática de atos
lesivos ao meio ambiente, ao interesse urbanístico, ou ao consumidor, nada
impedirá que o órgão ministerial que atue em Promotoria especializada
investigue o fato, e posteriormente proponha demanda judicial, cumulando
pedidos de providências relacionadas à proteção daquele interesse coletivo
específico (meio ambiente, consumidor, urbanismo) com a pretensão de aplicação
de sanções relacionadas aos atos de improbidade administrativa apurados.
Diga-se
mais: caso fossem propostas duas ações distintas relacionada ao mesmo fato, uma
com pretensão à tutela de específico interesse coletivo (meio ambiente,
consumidor, etc.) e outra colimando apenas a aplicação das sanções decorrentes
do ato de improbidade, certamente, em função da conexão de causas, dar-se-ia a
reunião de feitos para instrução e julgamento conjunto (art. 105 do CPC).
De outro
lado, é oportuno anotar que se afigura extremamente comum que, em determinada
investigação, se verifique a existência de mais de um interesse, afeto a mais
de uma área de atuação do Ministério Público. Isso decorre da própria
complexidade dos interesses coletivos, cujo dinamismo faz com que nem sempre se
acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos,
de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.
Em outras
palavras, é comum que haja, em certo caso considerado, sobreposição de matérias
afetas a diferentes áreas de atuação.
A Lei
Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº. 734/93),
ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para
sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção,
oficiará o órgão incumbido do zelo do interesse
público mais abrangente (art. 114, § 2º); (b) tratando-se de interesses de
abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art. 114, § 3º); e (c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas,
incumbirá ao órgão que primeiro oficiar
no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art. 114,
§ 3º).
Diante
dos três critérios indicados em lei, acima referidos, cumpre examinar qual
deles serviria ao caso versado nestes autos.
Tratando do
tema, Hugo Nigro Mazzilli anota que “se
houver mais de uma causa bastante para a intervenção do Ministério Público no
feito, nele funcionará o membro da instituição incumbido do zelo do interesse
público mais abrangente”, esclarecendo que para tais fins, a análise da
abrangência deve ser feita no sentido do individual para o supraindividual.[2]
Assim,
pondere-se, como esclarecimento, que em casos envolvendo conflitos entre
Promotorias especializadas na tutela de interesses metaindividuais, em que
desde logo fique demonstrada, de forma concreta, a presença de fundamentos para
a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção (art.
114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº. 734/93).
Aliás, como
reforço a tal raciocínio, valeria trazer à colação também a observação de que
no processo coletivo, a competência para julgamento da ação civil pública é do
juízo do foro do local do dano, nos termos do art. 2º da Lei nº. 7347/85. Mas
quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do mencionado
art. 2º da Lei da Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual
dúvida a respeito da competência: a prevenção.
Nesse
sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente
ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para
o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da
competência pela prevenção”.[3]
Anote-se, ademais, que o critério da prevenção, quando
o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com atribuições para
a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende ao interesse
geral, à continuidade da atividade ministerial, à eficiência, e à eficaz e
pronta resposta às demandas que a sociedade direciona ao parquet.
Deste modo,
se no caso concreto há interesses relacionados a mais de uma área de atuação em
defesa de interesses supra-individuais, o órgão ministerial que primeiro tomou
contato com o caso deve prosseguir na investigação, adotando eventualmente as
providências judiciais cabíveis.
Diante do exposto, conheço do presente conflito
negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica
Estadual do Ministério Público, declarando caber ao DD. Promotora de Justiça com atribuições na área do Meio Ambiente (suscitada)
prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.
Publique-se
a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.
Providencie-se
a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de
Tutela Coletiva.
São Paulo, 17
de novembro de 2008.
FERNANDO
GRELLA VIEIRA
Procurador-Geral de Justiça
[1] GARCIA, Emerson. Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, pág.196.
[2] MAZZILLI. Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, pág. 421/422.
[3] NERY JÚNIOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo: RT, 2006, pág. 483/484, nota n. 6 ao art. 2º da Lei da Ação Civil Pública.