Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado nº140.124/08
(Autos nº612/08 – 1ª Vara de Caraguatatuba)
Suscitante: 1º Promotor de Justiça de
Caraguatatuba
Suscitado: 3º Promotor de Justiça de
Caraguatatuba (Meio ambiente)
Ementa: 1)Conflito
negativo de atribuições. 1º Promotor de Justiça de Caraguatatuba (suscitante)
e 3º Promotor de Justiça de Caraguatatuba (suscitado). 2)Ação de
rescisão contratual cumulada com pedido de ressarcimento pelo uso do imóvel.
Notícia de que um dos imóveis envolvidos no negócio jurídico situa-se em Área
de Preservação Permanente (APP). Possível lesão ao meio ambiente e
desrespeito à legislação ambiental. 3)Fundamentos
da intervenção do MP no processo civil.
Identificação dos casos de intervenção do MP em função do “interesse público”
evidenciado pela “natureza da lide”. Hipótese de atuação que deve decorrer da
pretensão deduzida em juízo, que se configura com o pedido, ilustrado pela
causa de pedir. 4)Notícia de
danos ao meio ambiente, e desrespeito à legislação ambiental. Faculdade que o
sistema concede ao Magistrado de determinar a extração de cópias dos autos e
remetê-las ao Ministério Público, para adoção de providências nas esferas
próprias (art.40 do CPP, e art.7º da Lei nº7347/85); ou então, conceder vista
ao órgão ministerial para que tome ciência do caso e adote providências
pertinentes. Deliberação que deve ser adotada, no caso, pelo órgão
ministerial com atribuições em matéria ambiental. 5)Conflito
conhecido e dirimido, determinando-se ao suscitado, (3º Promotor de Justiça
de Caraguatatuba – meio ambiente), exclusivamente, receber os autos com
vista, para análise quanto às eventuais providências que poderá adotar, caso
cabíveis. |
Vistos
1)Relatório.
Trata-se de conflito negativo de
atribuições, em que figura como suscitante o DD. 1º Promotor de Justiça de Caraguatatuba, e como suscitado o DD. 3º Promotor de Justiça de Caraguatatuba
(Meio ambiente).
O
feito de origem resolve-se em ação de rescisão contratual cumulada com
pedido de ressarcimento pelo uso do imóvel, envolvendo partes maiores e
capazes.
Noticiou
o requerente que através de contrato de “compromisso de compra e venda e cessão
de direitos e obrigações”, cedeu o imóvel descrito na inicial ao demandado,
recebendo, como “dação em pagamento”, outro imóvel, que está situado no Parque
Estadual da Serra do Mar. Trata-se de área, por lei, considerada de
preservação permanente, com evidentes limitações quanto ao uso, em respeito à
legislação ambiental.
Buscou,
em razão disso, a rescisão do negócio jurídico, bem como o ressarcimento
decorrente do uso do imóvel alienado ao demandado, e a intimação do Ministério
Público para oficiar como custos legis,
tendo em vista a discussão relativa a questões ambientais (cópia da inicial às
fls.4/8).
Recebendo
os autos com vista o suscitante, DD. 1º
Promotor de Justiça de Caraguatatuba, postulou ao MM. Juiz de Direito a
remessa dos autos à Promotoria de Justiça do Meio Ambiente, tendo em vista que
a atuação da Promotoria Cível não afasta a intervenção da especializada (fls.16).
Por
sua vez, o DD. 3º Promotor de Justiça de
Caraguatatuba (Meio Ambiente), declinou de oficiar nos autos, assentando
que: (a) não se trata de ação civil pública; (b) a pretensão do autor não se
insere entre as atribuições da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente e de Habitação
e Urbanismo. Postulou, assim, a remessa dos autos ao Promotor de Justiça que
tenha atribuições para oficiar na esfera cível, para análise (fls.18/19).
Restituídos
os autos ao DD. 1º Promotor de Justiça
de Caraguatatuba, foi suscitado o conflito negativo (fls.20), sendo
remetidas cópias das principais peças do feito, para apreciação, pelo MM. Juiz de Direito da 1ª Vara Cível de
Caraguatatuba (fls.21).
É
o relato do essencial.
2)Fundamentação.
É possível afirmar que o conflito
negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.
Como
anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições
quando “dois ou mais órgãos de execução
do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de
determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo
aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005,
p.196).
Como
se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial
competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que
o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido:
Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco,
Teoria geral do processo, 23ªed., São
Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56;
Patrícia Miranda Pizzol, A competência no
processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São
Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.
Esta
idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de
competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf
Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil,
t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus,
1922, p.621 e ss; e
Ora,
se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de
determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa,
não há razão para que o raciocínio análogo não seja feito para a identificação
do órgão ministerial com atribuições para certo caso.
Na
hipótese em exame, a demandante, ao deduzir em juízo sua pretensão, no sentido
de declaração da rescisão de negócio jurídico de compra e venda de imóvel cumulada
com pagamento pelo uso do bem, afirmou que, por estar situado imóvel em Área de
Preservação Permanente, seria necessária a intervenção do Ministério Público.
E,
de fato, o laudo técnico elaborado pelo Instituto Florestal, da Secretaria de
Estado do Meio Ambiente (fls.9/15) confirma a localização do imóvel em Área de
Preservação Permanente.
Entretanto,
a notícia de ocorrência de danos ao meio ambiente, ou mesmo de desrespeito a
dispositivos da legislação ambiental, por si só, não são suficientes para
justificar a intervenção do Ministério Público, como custos legis, em determinado feito.
A
Constituição da República previu que incumbe ao Ministério Público realizar a
defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis (art.127 caput da CR/88).
Para
exercer tais funções na esfera cível o constituinte conferiu ao parquet a função de zelar pelo efetivo
respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos
assegurados pela Carta; bem como a de promover o inquérito civil e a ação civil
pública para a proteção de interesses difusos, coletivos e individuais
homogêneos (art.129 II e III da CR/88).
Assim,
embora o Ministério Público ainda tenha a missão de exercer seu papel tradicional
na esfera cível, ou seja, de intervir como custos
legis em processos de natureza individual, é inegável que, por opção
político-constitucional, seu novo perfil, a partir de 1988, favoreceu o
incremento de sua atuação, na condição de autor, em defesa de interesses de
ordem supra-individual.
Em
uma sociedade de massa, em que os conflitos de natureza intersubjetiva se
coletivizam, mostra-se mais apropriado que o Ministério Público devote
primordial atenção à atuação tanto na condição de autor, como de fiscal da lei,
nos processos de natureza coletiva. Sua atuação clássica como fiscal da lei nos
processos de natureza singular deve ser reservada apenas aos casos em que reste
essencialmente indispensável sua presença.
Em
outras palavras, para verificar se efetivamente é necessária intervenção do
Ministério Público, não basta a interpretação literal do CPC ou a legislação extravagante:
é indispensável verificar se estão presentes, no caso concreto, relevantes
interesses que legitimem a atuação, nos moldes dos art.127 e 129 da CR/88, e do
art.82 do CPC.
Essa
é a adequada compreensão, em perspectiva moderna, da afirmação doutrinária de
que a atuação do MP como custos legis é
ditada pela lei (cf. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro, O Ministério Público no processo civil e penal, 6ªed., Rio de
Janeiro, Forense, 2001, p.12), desde que identificado o interesse público
qualificado pela natureza da lide ou qualidade das partes (cf. Hugo Nigro
Mazzilli, Regime jurídico do Ministério
Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.559).
Assim,
fora dos casos em que há previsão específica de intervenção do MP (v.g. causas
em que haja interesses de incapazes, as concernentes ao estado da pessoa,
pátrio poder, tutela, curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e
disposições de última vontade; e ainda nas ações que envolvam litígios
coletivos pela posse da terra rural), é necessário compreender a dimensão dessa
atuação fundada na cláusula genérica do interesse público evidenciado pela
natureza da lide ou qualidade da parte (art.82 III do CPC).
Para
saber se em determinado caso concreto está presente o interesse público que
justifique a intervenção do parquet, é
imprescindível identificar os contornos da lide deduzida em juízo.
É
o que afirma Hugo Nigro Mazzilli, deixando claro que a decisão no sentido da
intervenção ou não está diretamente associada ao interesse jurídico subjacente
que aflora do caso concreto (Manual do
Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.214/215).
Pois
bem.
É
verdade que no feito de origem foram noticiados fatos relacionados: (a) à
possível ocorrência de danos em Área de Preservação Permanente; (b) ao possível
desrespeito à legislação ambiental.
Entretanto,
a pretensão deduzida pela autora é de natureza estritamente individual, privada
e disponível.
Narra a autora realização
de negócio jurídico (compra e venda) envolvendo imóvel, o descumprimento de
obrigações relativas ao pacto, e a sua pretensão à rescisão da avença, cumulada
com o pagamento dos valores que lhe seriam supostamente devidos.
E é da pretensão deduzida
pelo demandante que se pode extrair, em cada caso concreto, a existência ou não
de fundamento para a intervenção ministerial.
Com
a devida vênia, não é a notícia da prática de atos danosos ao meio ambiente, ou
mesmo de desrespeito à legislação ambiental, que justificarão atuação do parquet como fiscal da lei em processo
no qual foi deduzida pretensão de cunho estritamente individual.
Em
situações assim, não há dúvida de que o ordenamento processual confere ao
Magistrado que preside o feito a possibilidade de determinar a extração de
cópias dos autos e remessa ao Ministério Público, tanto para a apuração de
eventual ilícito penal (art.40 do Código de Processo Penal), como para adoção
de providências tendentes à proteção dos interesses difusos, coletivos ou
individuais homogêneos (art.7º da Lei nº7347/85).
Pode
também o MM. Juiz de Direito valer-se da concessão de “vista” ao Ministério
Público, a fim de que o órgão oficiante providencie a extração de cópias do
feito, para a adoção das medidas pertinentes, na esfera de suas atribuições,
como, por exemplo, a instauração de investigação civil.
Essa
é, por assim dizer, a correta compreensão da questão: afora os casos em que o
Ministério Público intervém por disposição legal específica, nos demais só se
legitimará a atuação como fiscal da lei quando o interesse público, evidenciado
pela natureza da lide, decorrer diretamente da pretensão deduzida, ou
seja, do pedido, ilustrado pela causa de pedir.
Foi
isso o que pretendeu o legislador ao tornar indispensável a atuação do parquet nos casos em que haja “interesse público evidenciado pela natureza
da lide” (art.82 III do CPC).
A
esse propósito, anota Antônio Cláudio da Costa Machado que “a natureza da lide que evidencia o interesse
público é o atributo de indisponibilidade que o ordenamento positivo haja
outorgado à relação jurídica em torno da qual tenha surgido o litígio ou lide,
e que tenha sido deduzida em juízo” (A
intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro, 2ª ed., São
Paulo, Saraiva, 1998, p.347).
Ao
vincular a atuação do custos legis ao
interesse público decorrente da natureza da lide, o legislador estabeleceu que
a identificação da hipótese de atuação é indissociável do mérito, ou seja, do
objeto litigioso do processo, que é representado, como se sabe, pela pretensão
deduzida em juízo, ilustrada pela causa de pedir (A propósito do conceito de
mérito no processo civil, confira-se: Cândido Rangel Dinamarco, Fundamentos do processo civil moderno,
São Paulo, RT, 1986, p.182/220, p.; Arruda Alvim, Manual de direito processual civil, vol.1, 10ªed., São Paulo, RT,
2006, p.424/425; Sydney Sanches, “Objeto do processo e objeto litigioso do
processo”, Ajuris 16 [1979]).
No
caso em exame não há razão para a intervenção do Ministério Público.
A
pretensão deduzida, de cunho individual, é de natureza patrimonial,
absolutamente disponível.
Contudo,
a notícia que os autos oferecem, realmente, aponta no sentido de desrespeito à
legislação ambiental, com construção de imóvel em Área de Preservação
Permanente, bem como desmatamento do local (cf. laudo técnico, fls.9/15).
Deste
modo, caberá ao órgão ministerial com atribuições na esfera do meio ambiente,
novamente, ter vista dos autos, a fim de adotar as providências eventualmente
cabíveis (v.g. extração de cópias
para instauração de investigação civil), prosseguindo posteriormente o feito
sem intervenção do parquet, por não
se tratar de caso em que ela seja efetivamente necessária.
3)Decisão.
Diante do exposto, conheço do
presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art.115
da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao DD. 3º Promotor de Justiça de Caraguatatuba (Meio
Ambiente) receber os autos do feito de origem com vista para,
exclusivamente, analisar a eventual necessidade de adoção de providências da
Promotoria do Meio Ambiente, dada a notícia de desrespeito à legislação
ambiental.
Publique-se
a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.
Providencie-se
a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de
Tutela Coletiva.
São Paulo, 25 de novembro de 2008.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça