Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº140670/08

(PA nº1.34.014.000340/2005-61 – MPF – PR/SP)

Suscitante: 1ª Câmara de Coordenação e Revisão – MPF

Suscitado: 7º Promotor de Justiça de São José dos Campos (Cidadania)

Ementa:

1)Conflito negativo de atribuições. Representação. Notícia de irregularidades em convênio entre a Municipalidade de São José dos Campos e a Fundação Hélio Augusto de Souza (FUNDHAS). Remessa, pela suscitada (Promotora da Cidadania) ao Ministério Público Federal, em vista a notícia de que os recursos empregados pertencem ao Ministério da Saúde.

2)Investigação junto ao MPF. Identificação, além do problema relativo ao emprego de recursos federais, de outros, relativos a: (a) ilegalidade do convênio entre a Municipalidade e a Fundação, (b) realização de concurso para cargos em princípio não previstos em lei, (c) vícios no procedimento relativo ao concurso, (d) cessão irregular de servidores.

3)Arquivamento, no MPF, da questão relativa ao dano ao erário. Apreciação na 1ªCâmara de Coordenação e Revisão (suscitante). Instauração do conflito negativo, com a remessa dos autos à Procuradoria-Geral de Justiça quanto às questões que desbordam do dano ao erário da União.

4)Competência da Justiça Federal, prevista no art.109 I da CR/88. Interpretação estrita, dada a extração essencialmente constitucional da mal denominada “competência da jurisdição”.

5)Possibilidade de danos ao erário Municipal. Atribuição do Ministério Público Estadual, e competência da Justiça Estadual para eventual ação civil.

6)Conflito conhecido e dirimido, determinando caber à suscitada (7ª Promotora de Justiça de São José dos Campos – Cidadania) prosseguir na apuração, quanto aos aspectos que extravasam a questão dos danos ao erário da União.

 

 

Vistos,

 

 

1)Relatório.

 

         Tratam estes autos de conflito negativo de atribuições, surgido no curso de procedimento administrativo investigatório instaurado em decorrência de representação endereçada, inicialmente, à DD. 7º Promotora de Justiça de São José dos Campos (Cidadania), e posteriormente remetido ao Ministério Público Federal.

 

         Por força da representação inicialmente encaminhada ao Ministério Público Estadual, noticiou-se que a Fundação Hélio Augusto de Souza – FUNDHAS, situada na cidade de São José dos Campos, tem por objeto essencial a implantação de programas de atendimento à criança, adolescente, e famílias de baixa renda, para fins de capacitação profissional e formação continuada.

 

         Ocorre que teriam sido realizadas contratações de pessoas pela entidade, para desempenho de funções de agente comunitário de saúde, por força de convênio entre referida Fundação e a Municipalidade de São José dos Campos. Tais procedimentos teriam olvidado a regra do concurso público, com desvio quanto ao objeto social da Fundação, e com possível dano ao erário, na medida em que seriam custeados tais agentes com recursos repassados pelo Ministério da Saúde (fls.2/4).

 

         Diante de tais circunstâncias, concluindo que eventual dano ao erário, se ocorrente, diria respeito ao patrimônio público da União, a DD. 7ª Promotora de Justiça de São José dos Campos – Cidadania (suscitada) determinou a remessa dos autos ao Ministério Público Federal (fls.31/32).

 

         Após a realização de diversas diligências, o DD. Procurador da República que conduzida a investigação apresentou manifestação no sentido do arquivamento do feito, em homenagem, em síntese, ao princípio da segurança jurídica e da boa-fé (fls.228/233).

 

         Os autos, então, para fins de revisão e homologação quanto ao arquivamento, foram encaminhados à 1ª Câmara de Coordenação e Revisão (Matéria constitucional e infraconstitucional) do Ministério Público Federal.

 

         Em sede de reexame da promoção de arquivamento, a 1ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, acolhendo o voto do relator, salientou pontos importantes para a elucidação da espécie (fls.236/241).

 

         Ficou assentado que, com as informações colhidas na investigação, seu objeto deveria ser delimitado da seguinte forma: (a) legalidade do convênio firmado entre a FUNDHAS e a Municipalidade de São José dos Campos; (b) realização de concurso para provimento de 100 (cem) cargos públicos de agentes comunitários de saúde, sem existência de lei criando tais cargos; (c) cessão de tais agentes comunitários de saúde à administração municipal aparentemente de forma ilícita; (d) possível ilicitude no próprio concurso (exigência de residência no Município há pelo menos dois anos); (e) eventual lesão ao patrimônio público da União, no emprego dos recursos repassados, ao que se tem notícia, pelo Ministério da Saúde.

 

         Diante de todos estes aspectos, concluiu o órgão de revisão que o único aspecto a merecer análise por parte do Ministério Público Federal é a eventual lesão ao patrimônio público da União, em razão da notícia de eventuais equívocos no emprego de recursos repassados pelo Ministério da Saúde. Quanto aos demais aspectos antes discriminados, observou-se remanescer a atribuição do Ministério Público Estadual para sua apuração.

 

         Diante disso, foram extraídas cópias dos autos, para fins de apreciação da promoção do arquivamento pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (patrimônio público), determinando-se a devolução dos autos ao parquet estadual para apuração das demais questões.

 

         É o relato do essencial.

 

2)Fundamentação.

 

         É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

 

         Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196).

 

         A quaestio iuris cuja solução se mostra imprescindível para o equacionamento do presente conflito diz respeito à identificação dos limites para a atuação do Ministério Público Federal e do Estadual em matéria de defesa do patrimônio público, e sua interação com a questão da competência jurisdicional.

 

         Como se sabe, as hipóteses materiais que definem a competência da Justiça Federal, na comumente denominada “competência de jurisdição”, são de extração essencialmente constitucional (Cf. Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover, e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo. 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.253; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.71; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.255 e ss; Daniel Amorin Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.137 e ss).

 

         Sendo alvo de discriminação expressa, sua incidência deve ser entendida de forma estrita, não sendo aplicável por extensão ou interpretação analógica.

 

         Daí também ser possível inferir que só a Constituição Federal é que pode definir, ratione materiae e ratione personae, quais são os casos cuja apreciação caberá à Justiça Federal, sendo os demais, por exclusão, atinentes à Justiça Estadual Comum – ressalvada, evidentemente, a matéria atribuída às Justiças Especializadas -, não cabendo à legislação infraconstitucional dispor sobre tal tema (cf. STF, ADI 2.473-MC, Rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 13-9-01, DJ de 7-11-03).

 

         Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

 

         Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

 

         Como observou o DD. Subprocurador-Geral da República que relatou a revisão da promoção de arquivamento, apenas uma das questões emergentes dos autos desta investigação – possibilidade de dano ao erário da União, por equívoco no emprego de recursos repassados pelo Ministério da Saúde – é que poderá ser investigada pelo Ministério Público Federal.

 

Tal consideração parte da observação de que eventual ação civil pública será proposta, quanto a tal aspecto, perante a Justiça Federal, em razão da regra atinente à impropriamente denominada “competência de jurisdição”, prevista no art.109 I da CR/88.

 

         Não sendo pertinente, nesses casos, interpretação extensiva ou analógica, outras questões investigadas neste procedimento deverão ser alvo de indagação por parte do Ministério Público Estadual, na medida em que na eventualidade de ação civil pública a propósito delas, competente será a Justiça Estadual.

 

         Observando-se analiticamente essas outras questões, que vão além do problema atinente à incorreção no emprego de recursos públicos da União, fica evidenciado que o dano, se efetivamente ocorrido, terá alcançado o patrimônio do Município envolvido: (a) ilegalidade do convênio envolvendo a Municipalidade; (b) realização de concurso para cargos não previstos em lei e outras possíveis irregularidades no certame; (c) cessão irregular de servidores.

 

         Deste modo, exclusivamente para a conclusão da investigação quanto aos aspectos acima anotados, deverão os autos ser remetidos à suscitada.

 

3)Decisão.

 

         Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art.115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber à suscitada, 7ª Promotora de Justiça de São José dos Campos (Cidadania), prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

 

         Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

 

         Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 19 de novembro de 2008.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça