Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado nº 0142057/16 (Inquérito Civil n° 66.07140002700/2016-5)
Suscitante: Promotor de Justiça de Meio Ambiente, Habitação
e Urbanismo de São Carlos
Suscitado: Promotor de Justiça de Defesa do Consumidor
de São Carlos
Ementa:
1. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: Promotor de Justiça de Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo de São Carlos; suscitado: Promotor de Justiça de Defesa do Consumidor de São Carlos. Representação civil instaurada para apurar a inexistência de ponto de ônibus nas proximidades do Fórum Civil e Defensoria, dificultando a locomoção de pessoas com deficiência, idosos, mães com crianças pequenas e também as demais pessoas que tem que andar muito para acessar tais serviços, tornando-se necessária uma linha de ônibus que chegue até os referidos locais.
2. Má qualidade de serviços de transporte coletivo urbano prestados por empresas concessionárias ou permissionárias. Questão que implica direitos dos consumidores em relação aos serviços públicos e as obrigações dos órgãos públicos de, por si ou interpostas pessoas, fornecerem serviços adequados, eficientes e - quanto aos essenciais - contínuos. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Atribuição do Promotor de Justiça de Defesa do Consumidor de São Carlos. Conclusão reforçada pelo art. 435 do Manual de Atuação Funcional do Ministério Público e pelo critério da especialidade.
3. Embora seja atribuição do Promotor de Justiça do Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo cuidar das questões afetas à circulação nas vias urbanas - visto que esta interfere na função social da cidade - cabe ao Promotor de Justiça de Defesa do Consumidor zelar pela qualidade dos serviços prestados ao consumidor final, inclusive dos serviços públicos, como é o caso do transporte coletivo urbano.
4. Conflito conhecido e dirimido, reconhecendo a atribuição do suscitado: Promotor de Justiça de Defesa do Consumidor de São Carlos.
Vistos,
1. Relatório
Tratam estes
autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o Promotor
de Justiça de Meio Ambiente, Habitação e Urbanismo de São Carlos e como suscitado
o Promotor de Justiça de Direito do Consumidor de São Carlos.
Trata-se de representação civil instaurada para apurar a inexistência de ponto de ônibus nas proximidades do Fórum Civil, e Defensoria, dificultando a locomoção de pessoas com deficiência, idosos, mães com crianças pequenas e também as demais pessoas que tem que andar muito para acessar tais serviços, tornando-se necessária uma linha de ônibus que chegue até os referidos locais.
O Suscitado - Promotor de Justiça de
Defesa do Consumidor - entendeu por bem encaminhar o caso para o Suscitante -
Promotor de Justiça do Meio Ambiente, de Habitação e Urbanismo de São Carlos.
Encaminhado o
procedimento ao Suscitante - Promotor de Justiça de Meio Ambiente, Habitação e
Urbanismo de São Carlos, este declinou de sua atribuição.
É o relato do
essencial.
2. Fundamentação
O presente
conflito deve ser conhecido e dirimido, para declarar a atribuição do Suscitado
- Promotor de Justiça de Defesa do Consumidor de São Carlos para prosseguir no
presente caso.
É certo que não
é todo e qualquer serviço público que se submete à legislação consumerista; os
serviços públicos gratuitos, como, por exemplo, os referentes à educação
pública, saúde, segurança e iluminação pública estão excluídos dessa ordem.
Também não se
aplica o regramento protetivo do consumidor quando o serviço público é ofertado
uti universi.
A
relação de consumo estaria atrelada à remuneração (direta ou indireta) dos
serviços, o que evidentemente afastaria sua incidência no caso dos serviços públicos
gratuitos, ofertados à população sem contraprestação e remunerados por meio de
tributos.
Quanto a esses aspectos, não há controvérsia.
Ocorre
que, quando existente relação contratual, de rigor a caracterização de relação
de consumo, como ocorre nos serviços públicos de fornecimento de energia
elétrica, telefonia, transporte público,
entre outros. Nesse sentido, confira-se a orientação do STJ:
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXCEÇÃO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE REMUNERAÇÃO. RELAÇÃO DE CONSUMO NÃO-CONFIGURADA. DESPROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL.
1. Hipótese de discussão do foro competente para processar e julgar ação indenizatória proposta contra o Estado, em face de morte causada por prestação de serviços médicos em hospital público, sob a alegação de existência de relação de consumo.
2. O conceito de "serviço" previsto na legislação consumerista exige para a sua configuração, necessariamente, que a atividade seja prestada mediante remuneração (art. 3º, § 2º, do CDC).
3. Portanto, no caso dos autos, não se pode falar em prestação de serviço subordinada às regras previstas no Código de Defesa do Consumidor, pois inexistente qualquer forma de remuneração direta referente ao serviço de saúde prestado pelo hospital público, o qual pode ser classificado como uma atividade geral exercida pelo Estado à coletividade em cumprimento de garantia fundamental (art. 196 da CF).
4. Referido serviço, em face das próprias características, normalmente é prestado pelo Estado de maneira universal, o que impede a sua individualização, bem como a mensuração de remuneração específica, afastando a possibilidade da incidência das regras de competência contidas na legislação específica.
5. Recurso especial desprovido.
(REsp 493.181/SP, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/12/2005, DJ 01/02/2006, p. 431).
Rememore-se que a respeito do tema
recentes precedentes da Procuradoria-Geral de Justiça em sede de conflito
negativo de atribuições envolvendo as duas Promotorias de Justiça
Especializadas (Protocolados nº 101.104/15, 17.268/15 e 9.728/15).
Como se sabe, por força dos arts. 2º e 3º do CDC, qualifica-se como consumidor aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço como consumidor final; enquanto a qualidade de fornecedor deve ser identificada na situação daquele que desenvolve atividades produtivas, comerciais e de prestação de serviços, nas diversas modalidades indicadas exemplificativamente na Lei nº 8.078/90.
Além disso, ao tratar da delimitação da ideia de serviço, o § 2º do art. 3º do CDC, utilizando definição propositalmente vaga, que pode ser assimilada à hipótese de conceito jurídico indeterminado, afirma que “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.
Não deve haver dúvida de que a melhor exegese dos conceitos de consumidor, fornecedor, produto, serviço e relação de consumo, deve ser a mais aberta e abrangente possível, de sorte a estender a proteção que pode ser extraída da legislação específica, e não restringi-la indevidamente.
A amplitude da proteção decorrente do Código do Consumidor, que parte da premissa da largueza dos respectivos conceitos, encontra-se também assente na doutrina. José Geraldo Brito Filomeno, por exemplo, demonstra essa tendência exegética, ao formular considerações sobre o conceito de consumidor:
“(...) abstraídas todas as conotações de ordem filosófica, tão-somente econômica, psicológica ou sociológica, e concentrando-nos basicamente na acepção jurídica, vem a ser qualquer pessoa física que, isolada ou coletivamente, contrate para consumo final, em benefício próprio ou de outrem, a aquisição ou a locação de bens, bem como a prestação de serviços. Além disso, há que se equiparar o consumidor a coletividade que, potencialmente, esteja sujeita ou propensa à referida contratação. Caso contrário, se deixaria à própria sorte, por exemplo, público-alvo de campanhas publicitárias enganosas ou abusivas, ou então sujeito ao consumo de produtos ou serviços perigosos ou nocivos à sua saúde ou segurança” (Manual de Direitos do Consumidor, 9ªed., São Paulo, Atlas, 2007, p.23, g.n.).
No mesmo sentido, merecem conferência as considerações lançadas em Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto, 3ªed., Rio de Janeiro, Forense, 1993, p. 27 e seguintes.
Daí ser possível visualizar, desde logo, uma relação de consumo entre os consumidores identificados como os usuários dos serviços de transporte.
A má qualidade de serviços de transporte coletivo urbano prestados por empresas concessionárias ou permissionárias é questão que implica direitos dos consumidores em relação aos serviços públicos e as obrigações dos órgãos públicos de, por si ou interpostas pessoas, fornecerem serviços adequados, eficientes e - quanto aos essenciais - contínuos, que reclama a aplicação do Código de Defesa do Consumidor e, pois, a intervenção da Promotoria de Justiça do Consumidor.
Reforçando a ideia de estarmos frente a uma relação de consumo, dispõe o inc. X, do art. 6º, do CDC, declarando ser direito do consumidor “a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral”, no que complementado pelo art. 22 da mesma lei:
“Art. 22 – Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único – Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código”.
E, de outra parte, reforçando a conclusão quanto à atribuição da Promotoria de Justiça do Consumidor milita o critério da especialidade e o art. 435 do Manual de Atuação Funcional (Ato n. 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010) que, ao tratar dos cuidados a serem adotados pelos Promotores de Justiça do Consumidor, assim dispõe:
“(...)
Art. 435. Observar que os princípios do Código de Defesa do Consumidor estendem-se também aos serviços públicos, ainda que prestados por empresas concessionárias ou permissionárias.
(...)”
O mesmo Ato Normativo, ao cuidar dos deveres do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, prevê o que segue:
“(...)
Art. 472. Zelar pela circulação urbana e, respeitada a legislação respectiva, adotar as medidas administrativas ou judiciais cabíveis ao tomar conhecimento, por qualquer meio, de atividades públicas ou privadas que impeçam ou dificultem o direito de locomoção.
(...)”
Tais dispositivos não fixam atribuições dos cargos especializados de Promotor de Justiça do Consumidor e de Habitação e Urbanismo, pois estas são fixadas por lei (art. 295, VII e X da Lei Complementar n. 734/93), complementadas pelos respectivos atos de divisão de serviço. Entretanto, servem como baliza para esclarecer questões relativas à atuação funcional, especialmente por enfatizarem cuidados a serem adotados pelos órgãos de execução nas respectivas áreas de atuação.
Assim é que na hipótese concreta dos autos em que a questão está estritamente ligada à qualidade da prestação do serviço que, no presente caso restou diminuída em razão do descumprimento de itinerário de transporte coletivo, a demandar a intervenção da Suscitada - Promotoria de Justiça do Consumidor.
Dessa forma, é possível concluir, com a devida vênia ao entendimento em sentido contrário, que embora seja atribuição da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo cuidar das questões afetas à circulação nas vias urbanas - visto que esta interfere na função social da cidade -, cabe a Promotoria de Justiça do Consumidor zelar pela qualidade dos serviços prestados ao consumidor final, inclusive os serviços públicos, como é o caso do transporte coletivo urbano.
Sendo assim, forçoso concluir que a atribuição para presidir a presente investigação é do Promotor de Justiça com atribuição na área do consumidor.
3. Decisão
Ante
o exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com
fundamento no art. 115, da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público,
declarando caber ao Suscitado, Promotor de Justiça de Defesa do Consumidor de
São Carlos, a atribuição para oficiar nos autos.
Publique-se
a ementa. Comuniquem-se os interessados. Cumpra-se, providenciando-se a remessa
dos autos. Remeta-se cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional
Cível e de Tutela Coletiva.
São Paulo, 07 de novembro de 2016.
Gianpaolo Poggio Smanio
Procurador-Geral de Justiça
Efsj