Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 142.090/17

(Ref. SIS MP 43.161.000951/2017-4)

Suscitante: 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital

Suscitada: Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Capital (Saúde Pública)

 

Ementa:

1)    Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital; Suscitada: Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Capital (Saúde Pública).

2)    Peças de informação voltadas a apurar eventual responsabilidade de empresa pela comercialização de medicamento com desvio de qualidade, eventuais acidentes de consumo e omissão na tomada de providências pelos órgãos públicos de fiscalização;

3)    Além de se favorecer atuação conjunta, pressupõe-se a autonomia de atuações dos diferentes órgãos especializados de execução do Ministério Público.

4)    Conflito conhecido e dirimido, determinando-se o desmembramento do feito, mediante extração de cópia de inteiro teor, e restituição do original ao Suscitado e remessa das cópias ao Suscitante, para as providências cabíveis, no âmbito de suas respectivas atribuições.

 

1)    Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital e como suscitada a Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Capital (Saúde Pública), relativamente ao feito em epígrafe (SIS MP 43.0161.0000951/2017-4).

A Promotoria de Justiça da Saúde Pública de Sorocaba recebeu representação que noticiava a presença de larva dentro do frasco do medicamento “Risperidon”, comercializado naquela localidade. Segundo a representação, o medicamento foi adquirido e utilizado em criança portadora de espectro autista, o que acabou lhe produzindo alergias respiratórias. Posteriormente, a representação foi encaminhada ao Promotor de Justiça do Consumidor de Sorocaba (fls. 34), que entendendo se tratar de lesão a direito individual, indeferiu a representação, não sem antes determinar a expedição de ofícios à Vigilância Sanitária Federal e Agência Nacional de Saúde para análise da questão (fls. 37/38).

O indeferimento da representação, porém, não foi homologado pelo CSMP, que determinou a instauração de inquérito civil com o fim de apurar o estado de saúde da vítima, bem como a possibilidade de contaminação de outros frascos do medicamento (fls. 47).

Instaurado o inquérito civil em Sorocaba, foram juntadas informações sobre a ação individual promovida pelos representantes da criança, bem como Nota Técnica da ANVISA – AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA, que noticiou a instauração de investigação com o fim de entender as possíveis raízes do problema, apurar as ações corretivas e preventivas implementadas pela empresa, bem como verificar a existência de outras queixas semelhantes, tendo a empresa concluído que o corpo estranho não seria proveniente do processo produtivo (fls. 86/87).

O inquérito civil foi objeto de promoção de arquivamento,  homologado pelo CSMP, que vislumbrando a possibilidade de grave risco à saúde pública em virtude da comercialização do medicamento no território estadual e observando que não foi determinado recall ou tampouco realizada inspeção no local de produção por qualquer órgão público, determinou a extração de cópias e remessa à Promotoria de Justiça de Direitos Humanos da Capital – Saúde Pública.

Ocorre, porém, que na Capital, o DD. 4º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital e a Promotoria de Direitos Humanos com atribuição para a defesa da Saúde Pública colocaram-se em conflito quanto à atribuição para a condução do procedimento investigatório.

Com efeito, a Promotoria da Saúde Pública sustenta ausência de prova de prejuízo difuso ou coletivo à saúde pública (fls. 04).

Por sua vez, a Promotoria do Consumidor posicionou-se no sentido de que a irregularidade do produto com finalidade medicinal, enquadra-se na hipótese do artigo 442 e 443 do Ato Normativo n. 675/2010 (Manual de Atuação Funcional) e art. 3º, inciso II, alínea “b”, item 2, do Ato Normativo n. 593/09, que criou a Promotoria de Justiça dos Direitos Humanos na área da saúde pública. Não nega a existência de relação de consumo, mas afirma que a irregularidade deve ser aferida pela Promotoria da Saúde Pública (fls. 100/105).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

A definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

No presente caso, as peças de informação foram encaminhadas por determinação do CSMP para o fim de apurar risco “em virtude da possível comercialização de medicamento controlado contaminado para número indeterminado de pessoas”, bem como elucidação das providências tomadas para retirada de comercialização do lote do medicamento contaminado e realização de inspeções no local pelos órgãos públicos de controle.

Pois bem.

A atuação do Ministério Público na área da saúde pública tem como fundamento o direito à saúde, positivado como um dos primeiros direitos sociais de natureza fundamental (art. 6º, da CF/88) e também como o primeiro dos direitos constitutivos da seguridade social (art. 194, caput, CF/88). Saúde que é ‘direito de todos e dever do Estado’ (art. 196, caput, CF/88), garantida mediante ações e serviços de pronto qualificados como ‘de relevância pública’ (parte inicial do art. 197, CF/88).

Assim, a atuação da Promotoria de Justiça na área da Saúde Pública visa assegurar ao cidadão o acesso aos serviços públicos de natureza essencial, contemplando demais ações estatais destinadas à tutela da saúde da população.

Trata-se, inegavelmente, de função institucional relacionada ao comando constitucional do art. 129, II, segundo o qual cabe ao Ministério Público “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia”.

Por sua vez, a Lei Complementar Estadual nº 734/93, que institui a Lei Orgânica do Ministério Público, em seu art. 295, dispõe: Aos cargos especializados de Promotor de Justiça, respeitadas as disposições especiais desta lei complementar, são atribuídas as funções judiciais e extrajudiciais de Ministério Público, nas seguintes áreas de atuação.

Com relação ao Promotor de Direitos Humanos e suas atribuições, estabelece o inciso XIV do artigo 295: “garantia de efetivo respeito dos Poderes Públicos e serviços de relevância pública aos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, e, notadamente, a defesa dos interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos dos idosos e das pessoas com deficiência”.

Há, portanto, perfeita sintonia entre a Constituição Federal e a Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo, no sentido de que cabe ao Promotor de Justiça de Direitos Humanos a garantia de efetivo respeito dos Poderes Públicos e serviços de relevância pública aos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual, e, notadamente, a defesa dos interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos dos idosos e das pessoas com deficiência.

É nesse contexto que deve ser compreendido o Ato Normativo nº 593/09, que, dentre outras determinações, dispõe sobre a criação da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos na área da saúde.

Referido Ato Normativo estabelece, em seu art. 3º, inciso II, o seguinte:

Art. 3º - Compete também à Promotoria de Justiça de Direitos Humanos:

(...)

II – na área da saúde:

a) zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nas Constituições Federal e Estadual e nas demais normas pertinentes, que disciplinam a promoção, defesa e recuperação da saúde, individual ou coletiva, promovendo as medidas necessárias à sua garantia;

b) zelar pela prevenção e reparação dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dos usuários e consumidores dos serviços e ações de saúde, relativamente:

 1) à qualidade e eficiência dos serviços privados prestados pelos hospitais, clínicas, laboratórios e estabelecimentos congêneres, que coloquem em risco à saúde;

 2) aos produtos com finalidades terapêuticas ou medicinais, desde que haja suspeita de falsificação, corrupção, adulteração, alteração, ou qualquer outra irregularidade correlata, tomando as medidas necessárias à sua garantia;

c) zelar pelo cumprimento das diretrizes do Sistema Único de Saúde, do Código de Defesa do Consumidor, da Lei nº 8.080/90, da Lei nº 8.142/90, do Código de Saúde do Estado de São Paulo e da legislação correlata relativa à matéria prevista nesse ato;

 d) zelar pelo cumprimento das diretrizes e regras do SNT – Sistema Nacional de Transplante e do SET – Sistema Estadual de Transplantes, especialmente no que diz respeito à obediência da lista dos candidatos a transplante e aos requisitos legais para que seja efetivada a doação post mortem ou a retirada de pessoa falecida, o transporte e o transplante de órgãos, tecidos ou parte do corpo humano;

e) zelar pela observância das regras sobre disposição em vida ou doação de órgão, tecidos ou partes do corpo humano vivo para transplante quando não há necessidade de autorização judicial, nos casos do procedimento cirúrgico ser destinado a cônjuge ou parente até o quarto grau, inclusive;

 f) estimular a criação e o efetivo funcionamento dos Conselhos de Saúde Municipais e Estadual, bem como a realização das Conferências de Saúde, buscando, em colaboração com aqueles órgãos e com outras entidades ou organizações empenhadas na política de saúde, resultados qualitativos e quantitativos para a garantia do direito individual e coletivo à saúde.

De outro lado, também é função institucional do Ministério Público, com amparo na Constituição Federal e no Código de Defesa do Consumidor, bem como no art. 103, VIII, da Lei Complementar Estadual nº 734/93, promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção, a prevenção e a reparação dos danos causados ao consumidor.

Cabe ao Promotor de Justiça do Consumidor a defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos relacionados com o consumidor (artigo 295, VII, da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

Posto isso, pode-se dizer que a atribuição para eventual investigação da empresa SUPERA RX MEDICAMENTOS LTDA, sob o aspecto determinado pelo CSMP - risco à saúde da população mediante a comercialização de medicamento contaminado -, é da Promotoria de Direitos Humanos, na área de Saúde Pública, bem como da Promotoria do Consumidor.

Como tem sido destacado em diversos conflitos de atribuições submetidos ao Procurador-Geral de Justiça, se afigura extremamente comum que, em determinada investigação, seja verificada a existência de mais de um interesse, afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público. Isso decorre da própria complexidade dos interesses coletivos, cujo dinamismo faz com que nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.

Não há que se negar que a realidade oferece situações limítrofes, em que há dificuldade de se identificar, de modo claro, o órgão investido de atribuição para investigar determinados fatos, por estarem estes naquela zona de transição entre uma e outra área especializada, ou mesmo por afetarem, concomitantemente, mais de um segmento de especialização.

Em outras palavras, é corriqueiro que haja, em certo caso, sobreposição de matérias atinentes a diferentes áreas de atuação.

De fato, cabe à Promotoria de Justiça na área da Saúde Pública promover as medidas necessárias para garantir a efetiva atuação direta ou indireta do Poder Público, especialmente na fiscalização das ações e dos serviços relacionados a área da saúde, especialmente, no caso concreto, quanto à qualidade e à eficácia do medicamento disponibilizado à rede hospitalar e ao mercado de consumo. Ou seja, é possível, por exemplo, se for o caso, verificar se o Poder Público tem tomado providências para evitar que o produto com finalidade terapêutica ou medicinal com suspeita de irregularidade continue a ser disponibilizado no mercado de consumo e se foram tomadas as medidas sancionatórias se confirmada a prática irregular.

De outro lado, a tutela do consumidor propriamente dito, como, por exemplo, em face de eventuais acidentes de consumo, cabe à Promotoria de Justiça de Defesa do Consumidor.

Conclui-se, portanto, que a investigação deve ser cindida, de molde a prosseguir perante os dois órgãos ministeriais em conflito.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do pedido de reconsideração, no âmbito do já instaurado conflito negativo de atribuições, e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber tanto ao suscitado quanto ao suscitante examinar a representação, no âmbito de suas respectivas atribuições.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a extração de cópia de inteiro teor, e restituição do original ao Suscitado e remessa das cópias ao Suscitante.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 19 de janeiro de 2018.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

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