Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 142.597/09

Autos nº 1554/2009

1ª Vara de Família e Sucessões de São José dos Campos

Suscitante: 14º Promotor de Justiça de São José dos Campos

Suscitado: 11º Promotor de Justiça de São José dos Campos

Ementa:

1)Conflito negativo de atribuições. 14º Promotor de Justiça de São José dos Campos (suscitante) e 11º Promotor de Justiça de São José dos Campos (suscitado).

2)Ação civil. Intervenção do MP como custos legis. Suspeição do Magistrado. Determinação de redistribuição do feito.

3)Alegação do suscitante de que nada obstante a redistribuição dos autos, o órgão ministerial que oficiou na Vara de origem está prevento.

4)Adequada compreensão do sentido e finalidade do “promotor natural”. Não incidência quando deixa de existir o fundamento para a atribuição. Atribuição fixada em função de numeração de feitos relacionados às Varas Judiciais.

5)Conflito conhecido e dirimido, declarando caber ao suscitante prosseguir no feito.

Vistos,

1)Relatório.

Tratam estes autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 14º Promotor de Justiça de São José dos Campos, e como suscitado o DD. 11º Promotor de Justiça de São José dos Campos.

A demanda foi proposta, sendo distribuída à 3ª Vara da Família e Sucessões de São José dos Campos, contendo pedidos de anulação de doação e devolução de aluguéis recebidos, passando o Ministério Público a intervir no feito como custos legis dada a menoridade da demandada.

No decorrer do desenvolvimento da relação processual em juízo, o Magistrado deu-se por suspeito, o que foi acolhido pela E. Presidência do Tribunal de Justiça, que designou o Juiz de Direito da 1ª Vara da Família e Sucessões de São José dos Campos para prosseguir nos autos. Houve redistribuição do feito à referida Vara Judicial.

Nesse contexto deu-se a gênese do conflito de atribuições, sendo que o suscitante, DD. 14º Promotor de Justiça de São José dos Campos, sustenta que: (a) a aceitação de suspeição de um Magistrado não gera modificação de competência; (b) não havendo modificação de competência, deve continuar a oficiar no feito o membro do Ministério Público a quem os autos foram inicialmente distribuídos, dada sua prevenção; (c) ainda que haja alteração da competência, em função de nova distribuição, isso não deve afetar a atribuição do órgão ministerial que se tornou prevento; (d) dessa forma, a redistribuição do feito do órgão judicial perante o qual tramitava (3ª Vara de Família e Sucessões de São José dos Campos) para outro (1ª Vara de Família e Sucessões de São José dos Campos), não teve o condão de alterar a atribuição que já tinha, antes, sido fixada em relação ao suscitado; (e) tal solução é a que melhor atende ao interesse público, bem como preserva o princípio do promotor natural (fls. 462/470).

O suscitado, DD. 11º Promotor de Justiça de São José dos Campos, por sua vez, aduziu que: (a) o suscitante revela sua discordância quanto ao disposto no Provimento do E. Conselho Superior da Magistratura que determina a redistribuição de feitos em casos de acolhimento de suspeição; (b) o membro do Ministério Público, entretanto, tem atribuição fixada para atuar perante determinada Vara Judicial; (c) a redistribuição dos autos provoca a fixação de atribuição de outro órgão ministerial; (d) não há razão para confundir critérios para fixação ou modificação de competência judicial, e aqueles relativos à divisão de atribuições no parquet (fls. 458/459).

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

Está configurado, no caso, o conflito de atribuições.

Isso decorre do posicionamento de diversos órgãos de execução do Ministério Público, quando “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487). No mesmo sentido Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196/197.

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

E na hipótese, o que há de essencial na argumentação do suscitante, pode ser resumido na seguinte questão: a redistribuição de feitos entre órgãos do Poder Judiciário gera alteração do órgão ministerial oficiante como custos legis?

Para maior clareza, retomemos, em síntese, a hipótese verificada neste caso: (a) o processo tramitava perante determinado órgão judicial (3º Vara de Família e Sucessões de São José dos Campos); (b) acolhida a alegação de suspeição, houve redistribuição e encaminhamento à 1ª Vara de Família e Sucessões de São José dos Campos; (c) discute-se no conflito negativo se a modificação do órgão judicial tem ou não tem o condão de provocar redistribuição do feito a outro órgão ministerial, e se, em caso positivo, isso é legítimo, tomando em perspectiva o princípio do promotor natural e a prevenção, nos termos do art. 114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93 (Lei Orgânica Estadual do Ministério Público).

Não há espaço para debate, em sede de solução de conflitos de atribuições entre órgãos do Ministério Público, quanto à legitimidade ou não do ato normativo regulamentar do Poder Judiciário que prevê a redistribuição do feito na hipótese de suspeição.

Essa observação se faz oportuna, tendo em vista que, como se infere do r. despacho judicial de fls. 454, “conforme Provimento 792/02 do Conselho Superior da Magistratura, de 29/11/2002, em seu artigo 1º ‘Os processos cuja suspeição do Magistrado tenha sido acolhida pelo Conselho Superior da Magistratura, serão redistribuídos sempre que a designação do Juiz que substituirá o anterior recair em Magistrado de outra Vara de igual competência da mesma Comarca ou Foro”.

E a razão, para tanto, é objetiva: uma vez verificada a remessa de um processo por um órgão judicial a outro, essa situação se prolongará até que em momento eventual e futuro, em conformidade com as regras processuais relativas à declaração de incompetência, seja esta reconhecida.

Tanto é assim que até mesmo nos casos de incompetência absoluta, o sistema processual prevê que apenas os atos decisórios serão anulados (art. 113, § 2º do CPC). Além disso, considerada ainda a possibilidade de desconstituição da sentença de mérito (art. 485, II do CPC), é oportuno lembrar que a não propositura da ação rescisória no prazo decadencial de dois anos contados do respectivo trânsito em julgado torna inexpugnável a decisão prolatada pelo juízo absolutamente incompetente.

Daí ser possível afirmar que a incompetência não se presume, devendo ser alegada e reconhecida. Enquanto isso não se verifica, deve ser presumida a competência do órgão judicial encarregado de determinado feito, sendo eficazes os atos assim praticados.

De outro lado, as atribuições dos órgãos ministeriais em conflito, para atuar como fiscais da lei, nos termos do art. 82 do CPC, são fixadas em função da numeração dos processos e procedimentos que tramitam nas Varas de Famílias e Sucessões mencionadas anteriormente.

Se, por força de redistribuição, o feito deixa de tramitar perante determinado Juízo, cessa o motivo que, por força dos atos de divisão de serviços entre órgãos do Ministério Público, rendia ensejo à atuação de certo membro do parquet.

Não se vislumbra, nessa circunstância, com o devido respeito ao entendimento diverso sustentado pelo zeloso suscitante, violação ao princípio do promotor natural, cuja adequada compreensão envolve, evidentemente, os escopos relacionados ao reconhecimento doutrinário e legislativo do referido princípio.

Configura o promotor natural garantia imediata do Promotor de Justiça, e mediata da sociedade conjuntamente considerada, assegurando-se que a atuação ministerial se concretizará por parte daquele órgão previamente determinado, segundo critérios estabelecidos pela lei e por atos normativos da Administração Superior da instituição.

É assente a doutrina no sentido de que, por tal princípio, e em decorrência de sua relação com a garantia da inamovibilidade, protege-se tanto a permanência do agente no cargo como o exercício das respectivas atribuições por seu titular (Hugo Nigro Mazzilli, (Regime jurídico do Ministério Público, 5ª ed. , São Paulo, Saraiva, 2001, p. 278).

Em outras palavras, a finalidade dessa diretriz é evitar que o Promotor seja ilegalmente afastado de seu cargo ou de suas atribuições.

Contudo, não é isso o que se verifica quando surgem fatos novos, que provocam a modificação do órgão encarregado de atuar em determinado processo judicial ou procedimento administrativo.

Assim, se os atos que regulamentam, no plano administrativo, a divisão de serviços entre órgãos ministeriais, estabelecem que determinado membro da instituição oficiará em feitos (finais) de certa Vara, isso significa, a contrario sensu, que se os autos deixam de tramitar perante tal juízo, cessará, por conseguinte, a atribuição daquele membro do parquet.

Não há, nesse passo, qualquer violação ao princípio do promotor natural ou à garantia da inamovibilidade, frise-se novamente: tais garantias destinam-se a proteger atribuições efetivamente existentes, não aquelas que, por motivo superveniente, deixaram de existir.

Entendimento diverso, como aquele sustentado pelo suscitante, com a devida vênia, desconsidera a premissa de que, na hipótese, as atribuições ministeriais foram atreladas à tramitação dos feitos perante determinado órgão judicial.

3)Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante, DD. 14º Promotor de Justiça Cível de São José dos Campos, prosseguir no feito em seus ulteriores termos.

Publique-se a ementa. Comunique-se.

Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 24 de novembro de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

rbl