Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº153.417/08

(Ação civil pública nº1149/01 – 1ª Vara de Lins)

Suscitante: Promotora de Justiça de Cafelândia

Suscitado: Promotor de Justiça de Getulina

 

 

Ementa:

1)Conflito negativo de atribuições. Promotora de Justiça de Cafelândia (suscitante) e Promotor de Justiça de Getulina (suscitado). Ação civil pública. Comarca de Lins. Investigação iniciada no ano de 2000, oportunidade em que todos os Promotores de Justiça declinaram de oficiar nos autos, sendo o feito remetido à Promotoria de Justiça de Cafelândia, na qual foi aparelhada a ação civil.

2)Caráter excepcional e provisório da substituição automática. Exegese dos art.165 e 166 da Lei Complementar Estadual nº734/93. Interpretação sistemática e finalista, com o escopo de preservação da garantia da inamovibilidade (art.128 §5º I b da CR/88).

3)Interpretação da regra de periodicidade, prevista em Ato da Procuradoria-Geral de Justiça, quanto ao “revezamento” em sede de substituição automática. Utilização da Tabela da Substituição para fins apenas de fixação do órgão ministerial incumbido de atuar no feito. Necessidade de observância de preceitos de boa administração, continuidade do serviço público, bem como eficácia e eficiência na atuação ministerial. Aplicação, por analogia, da regra da prevenção.

4)Alteração do quadro de integrantes da Promotoria de Justiça. Novos membros, que não tinham sede funcional na comarca, quando da constatação do óbice pessoal de atuação por parte dos membros do Ministério Público. Necessidade de preservação da regra do promotor natural, decorrente da garantia da inamovibilidade, que alcança não só cargos, mas também funções.

5)Conflito conhecido e dirimido, determinando caber a um dos Promotores de Justiça de Lins, não impedidos ou suspeitos, ainda que por força de substituição, oficiar no feito.

 

 

Vistos,

 

1)Relatório.

 

         Trata-se de conflito negativo de atribuições suscitado pela DD. Promotora de Justiça de Cafelândia, figurando como suscitado o DD. Promotor de Justiça de Getulina, nos autos da ação civil pública em epígrafe.

 

         Consta que no ano 2000 foram encaminhadas à Promotoria de Justiça de Lins, pelo E. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, cópias do processo TC 2001/004/97, noticiando irregularidades relacionadas à Administração do Município de Guaiçara, pertencente à Comarca de Lins.

 

         Os DD. Promotores de Justiça que na época eram titulares dos cargos integrantes da Promotoria de Justiça de Lins comunicaram formalmente à Procuradoria-Geral de Justiça, na oportunidade, a impossibilidade de oficiar no referido caso (fls.29), sendo então os autos encaminhados, por força de substituição automática, à Promotoria de Justiça de Cafelândia.

 

         Na Promotoria de Justiça de Cafelândia foi instaurado procedimento investigatório (protocolado nº009/2000), por força do qual, ao final, foi proposta a ação civil pública. Esta foi julgada procedente em primeira instância (sentença às fls.607/625), decisão que acabou sendo confirmada quando do julgamento de recurso de apelação pela C. 3ª Câmara de Direito Público do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (fls.763/783, apelação cível nº432.364-5/4-00, rel. des. Magalhães Coelho).

 

         Em fase de processamento do recurso de apelação interposto pelos réus, aberta vista ao Ministério Público para oferecimento de contra-razões, o DD. Promotor de Justiça de Cafelândia declinou de oficiar no feito, e postulou a remessa dos autos à Promotoria de Justiça de Getulina, aduzindo que assim o fazia por força da substituição automática fixada no Ato nº85/01-PGJ, de 18/07/2001.

 

         Naquela oportunidade, o DD. Promotor de Justiça de Cafelândia afirmou que “nos termos do ato n.85/01-PGJ, de 18 de julho de 2001, que homologa a tabela de substituição automática dos Promotores de Justiça da 35ª Circunscrição Judiciária, sediada em Lins, ‘na hipótese de suspeição ou impedimento dos quatro Promotores de Justiça de Lins, a substituição dá-se: a) no primeiro quadrimestre do ano, pelo PJ de Cafelândia; b) no segundo quadrimestre do ano, pelo PJ de Getulina, e no terceiro quadrimestre do ano, pelo PJ de Promissão. Isso posto, declino de oficiar no presente feito e requeiro seja ele remetido ao Promotor de Justiça de Getulina, atual substituto automático dos Promotores de Justiça de Lins” (fls.703).

 

         O DD. Promotor de Justiça de Getulina, por seu turno, declinou de oficiar no feito, ao receber os autos, aduzindo que “a despeito de a referida tabela (de substituição) conter previsão de um Promotor de Justiça substituto diferente a cada quadrimestre, o certo é que, uma vez definido o membro do Ministério Público que irá atuar em substituição ao promotor natural, tal designação deverá permanecer até a conclusão do feito, salvo se sobrevier causa de impedimento ou suspeição.” (fls.704).

 

         Tais entendimentos foram reiterados em ulteriores manifestações (fls.707/708, e 709), bem como posteriormente ao retorno dos autos à comarca de Lins, após o julgamento do recurso de apelação no E. TJSP (fls.931 e 939), oportunidade em que a DD. Promotora de Justiça de Cafelândia, reiterando argumentos lançados anteriormente nos autos, suscitou o conflito negativo de atribuições (fls.939).

 

         É o relato do essencial.

 

2)Fundamentação.

 

         É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

 

         Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196).

 

         Da narrativa acima consignada, relativa à dinâmica apresentada neste feito, é possível observar, singelamente, que: (a) os Promotores de Justiça que atuavam em Lins, quando do recebimento de cópias de feito oriundo do E. Tribunal de Contas do Estado noticiaram sua impossibilidade de atuar naquela investigação; (b) em razão disso os autos foram encaminhados à Promotoria de Justiça de Cafelândia, na qual foi instaurado procedimento investigatório, e ulteriormente proposta ação civil pública; (c) apenas em fase de tramitação de recurso de apelação é que surgiu a discussão que rendeu ensejo ao conflito negativo de atribuições.

 

         A discussão travada pela suscitante e pelo suscitado, em síntese, cinge-se à seguinte questão: uma vez remetidos os autos, por força de impedimento ou de suspeição, para substituto automático, deverá ser observada a periodicidade prevista no Ato da Procuradoria-Geral de Justiça que estabelece a Tabela de Substituição Automática, ou então, diversamente, uma vez recebidos os autos pelo substituto, ficará ele prevento para atuar naquele caso?

 

         A esse propósito, não há disciplina legal expressa.

 

         A substituição automática é regulada pelos art.165 e 166 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual Paulista nº734/93).

 

         É relevante notar que ela se opera, nos termos dos dispositivos mencionados, em caráter provisório, decorrendo, de acordo com os três incisos do art.166 da Lei Complementar nº734/93, das seguintes situações: (a) suspeição ou impedimento declarado pelo membro do Ministério Público ou contra ele reconhecido; (b) falta ao serviço; (c) quando o membro do Ministério Público, em razão de férias individuais, licença ou qualquer afastamento, deixar o exercício do cargo antes da chegada do seu substituto.

 

         Demonstrando o caráter excepcional e sempre provisório da substituição automática, o §3º do art.166 da Lei Complementar nº734/93 estabelece que “cessam as funções do membro do Ministério Público que estiver exercendo a substituição automática, no caso do inciso I, deste artigo, quando apresentar-se o designado; e, nos casos dos incisos II e III, com a apresentação do substituído, do designado ou do convocado”.

 

         Destaque-se, ademais, que a natureza provisória e excepcional da substituição automática é a única forma de reconhecer sua compatibilidade com a garantia constitucional da inamovibilidade (art.128 §5º I b da CR/88), que deve preservar não apenas o cargo, mas também as funções que lhe são inerentes.

 

         É o que se pode extrair das ponderações formuladas por Hugo Nigro Mazzilli, ao afirmar que “o verdadeiro fundamento da inamovibilidade não repousa apenas

na impossibilidade de afastar o membro do Ministério Público do seu cargo, mas também e principalmente visa a proteger o livre exercício de suas funções. Não se admite, sob pena de burla ao preceito constitucional, subsistam as designações discricionárias e ilimitadas do chefe do Ministério Público, inclusive e especialmente para que promotores e procuradores oficiem em feitos escolhidos caso a caso, pois que na verdade tais designações subtraem as atribuições legais do promotor do feito, para, em seu lugar, oficiar outro da escolha e da confiança do Procurador-geral”(Regime jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.267/268, g.n.).

 

         É relevante notar que na hipótese em exame, a atuação ministerial se concretizou com a assunção do caso pelo zeloso membro do Ministério Público que na época (ano 2000) ocupava o cargo de Promotor de Justiça de Cafelândia. Assim prosseguiu o feito até que, no momento de oferecimento de contra-razões a recurso de apelação interposto pela defesa, surgiu discussão sobre a quem caberia continuar atuando.

 

         Torna-se necessário, em situações assim delineadas, interpretar adequadamente a previsão do Ato da Procuradoria-Geral de Justiça, que institui (com fundamento no art.165 I da Lei Complementar nº734/93) a Tabela da Substituição Automática dos Promotores de Justiça, prevendo revezamento periódico (quadrimestral) entre os integrantes de uma mesma Circunscrição Judiciária.

 

         Como se sabe, em sede de exegese de normas há vários métodos de interpretação, como a gramatical ou literal, a sistemática, a histórica, e a finalista ou teleológica.

 

         É pacífico o entendimento de que nenhum deles deve ser utilizado isoladamente, e que cada um deles ostenta relativo valor. Não há dúvida, do mesmo modo, que a interpretação literal sempre é a que, isoladamente, fornece argumentos menos consistentes para a correta solução, do ponto de vista da hermenêutica, a respeito da dúvida quanto à percepção do correto sentido de certo texto normativo.

 

         No caso em exame, é meramente literal a interpretação no sentido de que a cada período de substituição automática os autos deveriam ser encaminhados a um substituto diferente.

 

         A conclusão assim amparada mostra-se nitidamente insuficiente.

 

         Anote-se que adoção de tal solução militaria contrariamente à racionalidade e eficácia da atuação ministerial, na medida em que é possível afirmar, com razoável probabilidade de acerto e partindo de máximas de experiência, que a atuação do Ministério Público é revestida de maior eficiência quando há continuidade, dentro do possível, quanto ao órgão encarregado de acompanhar certo feito.

 

         Em contrapartida, o entendimento de que a Tabela de Substituição Automática serve para identificar o órgão ministerial ao qual incumbirá atuar a partir de certo momento - aplicando-se a periodicidade apenas nesse momento inicial -, prestigia a continuidade do serviço público e a maior eficácia no exercício das funções institucionais do parquet.

 

         Essa asserção decorre do reconhecimento daquilo que ordinariamente ocorre: os resultados das intervenções ministeriais, nos casos de maior complexidade, normalmente são melhores quando o mesmo órgão acompanha o caso do seu início ao seu fim.

 

         A adequação da solução por último exposta (permanência da atuação do mesmo órgão) decorre, portanto, da necessidade de observância ao princípio da eficiência da Administração Pública (art.37 caput da CR/88), que, segundo Hely Lopes Meirelles, “exige que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional” (Direito Administrativo Brasileiro, 34ªed., São Paulo, Malheiros, 2008, p.98).

 

         Confira-se, no mesmo sentido: Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 25ªed., São Paulo, Malheiros, 2008, p.122/123; e ainda Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ªed., São Paulo, Atlas, 2006, p.98.

 

         A questão poderia ser enfocada, ademais, sob a perspectiva do respeito à regra da continuidade do serviço público, visto que, como assenta Edmir Netto de Araújo, “não seria lógico que se instituísse um serviço para não funcionar” (Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Saraiva, 2005, p.107).

 

         Tal conclusão, extraível dos preceitos inerentes à boa administração, pode também ser assentada por força de aplicação analógica das regras de prevenção.

 

         Anote-se que a própria Lei Orgânica do Ministério Público adota o critério da prevenção como uma das formas de solução de conflitos de atribuição, nos casos em que haja concurso de promotores revestidos de atribuições igualmente especializadas, como se infere do art.114 §3º in fine, da Lei Complementar Estadual nº734/93.

 

         No mesmo sentido, é oportuno trazer à colação a observação de que no processo coletivo, a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art.2º da Lei nº7347/85. Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do mencionado art.2º da Lei da Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito da competência: a prevenção.

 

         Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p.483/484, nota n.6 ao art.2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

 

         Deste modo, o critério da prevenção, quando o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com atribuições similares para a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende ao interesse geral, à continuidade da atividade ministerial, à eficiência, e à eficaz e pronta resposta às demandas que a sociedade direciona ao parquet.

 

         Em síntese: tanto pela interpretação sistemática e teleológica das regras inerentes à substituição automática (art.165 e 166 da Lei Complementar nº734/93; e ato regulamentar que institui a Tabela de Substituição), bem como por força da aplicação analógica da regra da prevenção, chega-se à conclusão de que uma vez recebido o feito pelo substituto, deverá ele prosseguir até que o substituído possa retomar o exercício da atribuição.

 

         As considerações acima, entretanto, acabam por tornar-se relativamente superadas na hipótese em análise, por uma simples razão.

 

         Como é possível observar às fls.29 dos autos, todos os Promotores de Justiça de Lins, titulares dos quatro cargos existentes na referida comarca no ano de 2000, declinaram de atuar no feito, oficiando em razão disso à Procuradoria-Geral de Justiça.

 

         Ocorre que hoje, a Promotoria de Justiça de Lins conta com cinco cargos de Promotores de Justiça. Excetuando-se o DD. 1º Promotor de Justiça, bem como a DD. 4ª Promotora de Justiça de Lins, seus demais membros - ou seja, os DD. 2º Promotor de Justiça, 3º Promotor de Justiça, e 5º Promotor de Justiça de Lins - não estavam na comarca por ocasião do reconhecimento da impossibilidade de atuação no feito.

 

         Desses integrantes da Promotoria que não atuavam na comarca por ocasião do declínio de atribuições realizado coletivamente, o DD. 5º Promotor de Justiça de Lins possui atribuições na área da cidadania, matéria à qual se refere a presente ação civil pública.

 

         Reconhecido o caráter provisório da substituição automática, deve-se ter presente que, como dispõe o art.166 §3º da Lei Complementar nº734/93, cessam as funções do membro do Ministério Público que estiver exercendo a substituição automática, “com a apresentação do substituído”.

 

         Deste modo, havendo na Promotoria de Lins membros da instituição que não se encontram impedidos ou suspeitos, visto que passaram a integrá-la posteriormente à declinação de atribuições verificada nestes autos, nos idos, de 2000; bem como tendo um destes Promotores de Justiça atribuição na área da cidadania, é natural que a eles seja deferido o encargo de oficiar nos autos, dentro da divisão de serviços ordinariamente aplicável, ou mesmo em substituição automática.

 

3)Decisão.

 

         Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art.115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber a um dos Promotores de Justiça de Lins, com atribuições na esfera da Cidadania, ou, persistindo o motivo de impedimento ou suspeição, ao seu substituto automático da referida Comarca, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

 

         Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

 

         Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 17 de dezembro de 2008.

 

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça