Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado nº153.671/08
(Representação nº02/08)
Suscitantes: Promotores de Justiça de
Cotia
Suscitados: Promotores de Justiça de
Itapevi
Ementa: 1)Conflito
negativo de atribuições. Promotores de Justiça de Cotia (suscitantes) e
Promotores de Justiça de Itapevi (suscitados). 2)Representação.
Preservação de interesses difusos, na esfera do meio ambiente. Existência de
ação de reparação de danos movida pelos suscitantes em face da advogada,
autora da representação. Encaminhamento dos autos por substituição
automática, sob alegação de suspeição dos suscitantes. 3)Devolução
dos autos pelos suscitados, sob o argumento de que não se caracteriza causa
de impedimento ou de suspeição. 4)Interesses
difusos e coletivos, dos quais são titulares todos os integrantes da
coletividade, de modo indivisível. Inexistência de impedimento ou suspeição,
em decorrência de relações de amizade ou inimizade dos membros do Ministério
Público com membros da coletividade. 5)Necessidade
de preservação da garantia da inamovibilidade (art.128 §5º I b da CR/88). Proteção não apenas do
cargo, mas também das respectivas funções. Reconhecimento da suspeição que
implicaria, em última análise, afastamento dos suscitantes de todo e qualquer
feito no qual a advogada passasse a atuar. 6)Conflito
conhecido e dirimido, declarando caber ao Promotor de Justiça com atribuições
na área do meio ambiente, na Comarca de Cotia, atuar no feito. |
Vistos,
1)Relatório.
Tratam estes autos de representação
formulada por advogada, cujos dados encontram-se no feito, postulando a adoção
de providências para a defesa de interesses difusos relacionados ao meio
ambiente, protocolada inicialmente na Promotoria de Justiça de Embu, recebendo,
naquele órgão de execução, o nº02/08.
Noticiou
a representação que determinado indivíduo, cuja qualificação está no feito,
teria iniciado extração de madeira nas proximidades de área de proteção
ambiental (fls.5/6).
Foram
realizadas diligências iniciais em Embu, constatando-se que a área possivelmente
lesada encontra-se situada na cidade de Cotia, o que motivou a remessa dos
autos para a Promotoria de Justiça dessa comarca (fls.27 e 33).
Em
Cotia, foi determinada a remessa dos autos à Promotoria de Justiça de Itapevi.
Embora inicialmente tenha sido consignado, como fundamento para a remessa, a
existência de impedimento decorrente da instauração de processo criminal movido
pelos DD. Promotores de Justiça de Cotia
contra a autora da representação (fls.34), ficou esclarecido posteriormente que
os suscitantes em verdade são autores de ação de reparação de danos, em que a
representante, advogada mencionada, figura como ré (processo nº1326/07, Juizado
Especial Cível de Cotia, cf. fls.40).
Subsequentemente,
os DD. Promotores de Justiça de Itapevi,
que aqui figuram como suscitados, devolveram os autos à Promotoria de Justiça
de Cotia, sustentando em síntese que: (a) a ação indenizatória movida pelos
suscitantes em face da advogada, autora da representação, não gera impedimento
ou suspeição; (b) a representação em exame narra fato que diz respeito à
ocorrência de dano ambiental, interesse metaindividual; (c) o fato lesivo ao
meio ambiente deve ser apurado independentemente da identidade daquele que o
noticiou (fls.44/45).
Recebendo
os autos, os DD. Promotores de Justiça
de Cotia, inicialmente, fizeram constar que se encontram em situação de
suspeição “por motivo de foro íntimo” (fls.148), e em seguida suscitaram o
conflito negativo de atribuições, alegando, em síntese, que: (a) não cabe aos
Promotores de Justiça que recebem os autos, após a declaração de suspeição,
questionar a existência ou não do motivo alegado para o reconhecimento da falta
de isenção; (b) os art.25 e 30 do Ato Normativo nº484-CPJ, de 5 de outubro de
2006, que regula a tramitação de investigações civis, assenta a possibilidade
de declaração de impedimento ou suspeição por parte do presidente do
procedimento investigatório; (c) a suspeição existente, no caso, decorre da
inimizade capital entre os suscitantes e a autora da representação, sendo
aplicáveis os art.135 I e art.138 I do CPC; (d)
o fato de tratar-se de representação para apuração de fato lesivo a
interesse difuso (meio ambiente) não afasta a possibilidade de reconhecimento
de suspeição entre os suscitantes e a autora da representação; (e) na hipótese
de ter a investigação desfecho contrário aos interesses da autora da
representação, estarão os suscitantes sujeitos a todos os tipos de investidas
daquela, o que acarretaria risco para a credibilidade do Ministério Público na
comarca, especialmente sob a possível alegação de que agiram desta ou daquela
forma por pretenderem prejudicá-la; (f) do teor da representação é possível
inferir que não há, verdadeiramente, interesse metaindividual, mas sim conflito
entre a autora do pedido de providências e aquele que teria causado dano ao
meio ambiente (mormente considerando a existência de feitos cíveis e criminais
nos quais ambos figuram em pólos opostos); (g) em reforço de sua argumentação,
consignam que três Magistradas da comarca de Embu também vêm se dando por
suspeitas em feitos nos quais a autora da representação figura como parte ou
interessada; (h) trazem à colação doutrina assentando a possibilidade de
ocorrência de suspeição decorrente de inimizade não com a parte, mas com seu
representante legal (fls.150/163).
É
o relato do essencial.
2)Fundamentação.
É possível afirmar que o conflito
negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.
Como
anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições
quando “dois ou mais órgãos de execução
do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de
determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo
aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005,
p.196).
Do
exame dos autos, e da narrativa constante do relatório, é possível estabelecer
as questões cujo exame mostrar-se-á indispensável para solucionar o presente
conflito negativo de atribuições.
O
fundamento da afirmação dos suscitantes de que existe suspeição é a
propositura, por eles, de demanda civil, destinada à obtenção de ressarcimento
por danos sofridos, em face da autora da representação, advogada atuante na
comarca na qual oficiam. Identificaram na hipótese a tipificação da causa de
impedimento prevista no art.135 I do CPC, aplicável ao Ministério Público em
função do art.138 I do CPC.
Será
oportuno estabelecer se (i) a existência de ação civil entre pessoas
determinadas – membros do Ministério Público e advogada – é motivo suficiente
para fins de reconhecimento da causa de suspeição acima alinhavada, bem como se
(ii) é viável o reconhecimento do obstáculo à atuação não em face da parte, mas
sim de seu advogado, e (iii) se no caso em exame, tratando-se de representação
para providências em sede de interesses difusos, a existência da má relação
pessoal entre advogada (autora da representação), e os suscitantes, seria causa
bastante para obstar a atuação destes na investigação cível.
Reitere-se
que quando do encaminhamento dos autos aos suscitados, foi indicado como motivo
da ausência de isenção a existência de ação civil de reparação de danos, na
qual os suscitantes figuram como autores, e a advogada que formulou a
representação contida neste feito figura como demandada.
Recentemente
averbaram os suscitantes que a razão da suspeição é o motivo de foro íntimo,
com menção também à relação de inimizade, invocando, destarte, a aplicação do
art.135 parágrafo único c.c. o art.138 I do CPC (fls.148, 153 e 155).
Deste
modo, por método e clareza, dois fundamentos efetivamente foram indicados para
a recusa à atuação: (a) a inimizade capital entre os suscitantes e a autora da
representação (art.135 I c.c. o art.138 I do CPC); (b) e o motivo de foro
íntimo (art.135 parágrafo único c.c. o art.138 I do CPC). Os dois motivos são
decorrentes, como se infere dos autos, do desgaste no relacionamento funcional,
bem como do fato de terem, os DD. Promotores
de Justiça de Cotia, aforado ação de reparação de danos em face da advogada
antes referida.
Com
o devido respeito a entendimento diverso, deve, desde logo, ser descartada a
possibilidade de reconhecimento de suspeição pela alegação de inimizade capital
entre Promotor de Justiça e advogado de parte.
O
art.135 I do CPC reconhece como caso de suspeição a situação em que o juiz – e
por força do art.138 I do CPC o membro do Ministério Público – é “amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer
das partes”.
Deve-se
destacar que a inimizade com o patrono da parte não permite o reconhecimento
dessa causa de suspeição, dada a expressa literalidade do dispositivo legal.
A
esse propósito, pontuam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Código de Processo Civil Comentado,
9ªed., São Paulo, RT, 2006, p.350, nota n.5 ao art.135 do CPC) que “a amizade íntima ou inimizade capital deve
ser do juiz com a parte e não com o advogado desta (...). Quando a amizade
íntima ou a inimizade capital for do juiz com o advogado da parte, poderá ser
oposta a exceção, não com base no CPC 135 I, mas no CPC 135 V, sendo que o juiz
pode, também, por motivo de foro íntimo dar-se por suspeito afastando-se do
caso (CPC 135 par. ún.).”
O
caráter taxativo do rol das hipóteses de impedimento e suspeição é reconhecido
pela jurisprudência do E. STJ, como se infere dos seguintes precedentes,
indicados por Theotônio Negrão e José Roberto F. Gouvêa (CPC e legislação processual civil em vigor, 38ªed., São Paulo,
Saraiva, 2006, p.259/260, nota n.3a., ao art.135 do CPC): 4ª T., AI
520.160-AgRg, j.21.10.04, DJU 16.11.04, p.285; 1ª T., RESP 730.811, rel. Min.
José Delgado, j.2.6.05, DJU 8.8.05, p.202; 3ª T., AI 444.085-AgRg, rel. Min.
Gomes de Barros, j.28.6.05, DJU 22.8.05, p.259; RT 833/201.
De
outro lado, a alegação de motivo de foro íntimo decorre da menção à pendência
de demanda entre suscitantes e advogada, e desgaste na relação funcional
decorrente de oficiarem na mesma comarca.
A
doutrina, nesse passo, vislumbra na indicação do motivo de foro íntimo, como
causa de suspeição, a razão que apresenta o maior subjetivismo possível (cf.
Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de
Direito Processual Civil, t. II, São Paulo, Malheiros, 2001, p.225).
Isso
não afasta, entretanto, a possibilidade de controle interno quanto à sua
efetiva ocorrência, especialmente na hipótese em que reste configurado conflito
negativo de atribuições.
É
oportuno averbar que a recusa de atuação por motivo de foro íntimo, como
assevera abalizada doutrina, “não deve
advir de uma sensibilidade aguçada, de todo incompatível coma natureza das
funções ministeriais” (Emerson Garcia, Ministério
Público, cit., p.541).
É
extremamente difícil identificar o ponto no qual se encerra a excessiva
sensibilidade e tem início a efetiva impossibilidade de atuar. Esse quadro se
acentua na medida em que, embora não desejável, é essencialmente comum, e de
certa forma corriqueira, a ocorrência de embates entre os operadores do foro –
juízes, advogados e promotores de justiça – de molde a causar desgaste no
relacionamento cotidiano que os envolve, e deve pautar-se, sempre que possível,
pela firmeza na sustentação de convicções próprias, sem desprezo pela
cordialidade, pela lealdade e polidez de trato recíproco.
Dessa
forma, as regras relativas às hipóteses de impedimento e de suspeição devem ser
interpretadas de modo a não permitir excessos em seu emprego, bem como com
indispensável compatibilidade com outras normas do sistema legal.
Não é viável reconhecer,
nesse contexto, a declinada causa de suspeição, decorrente da existência de
litígio civil entre os suscitantes e a autora da representação.
Como
visto o objeto da investigação do presente procedimento administrativo é a
existência ou não de dano ambiental, bem como a identificação do respectivo
responsável.
O
resultado da apuração poderá, eventualmente, ser o arquivamento, composição de
danos mediante compromisso de ajustamento de conduta, ou, em último caso,
aforamento de ação coletiva.
Embora
a legitimação para a ação civil seja conferida ao Ministério Público ao lado de
outros legitimados, como se sabe, beneficiária da sua atuação será toda a
coletividade, na medida em que, tratando-se de interesse difuso, seus titulares
são pessoas indeterminadas ligadas por circunstâncias de fato, consistente, na
hipótese do direito ao meio ambiente sadio, em residir em determinado local.
É
natural que sejam beneficiários da atuação ministerial (e do provimento
jurisdicional eventualmente favorável), todos aqueles que residem em
determinado local – inclusive pessoas com relação às quais o autor da demanda
coletiva tenha boas ou más relações, ou mesmo parentesco. Isso não será razão
consistente, frise-se, para reconhecimento de quebra de isenção de ânimo,
sinônimo no caso de boa-fé, que deve pautar a atuação do parquet.
Aliás,
seguindo essa mesma linha de raciocínio, anota Hugo Nigro Mazzilli “em matéria de interesses difusos, desde que
a questão diga respeito indistintamente aos integrantes da comunidade, não se
há reconhecer suspeição ou impedimento do promotor ou do juiz, mesmo que também
atingidos pelo dano... A razão é simples: quanto mais abrangente o interesse
difuso, mais se aproxima do interesse público e impessoal de toda a
coletividade” (O inquérito civil,
São Paulo, Saraiva, 1999, p.90).
As
investigações civis, em sede de interesses metaindividuais, bem como as ações
civis públicas que delas decorrem, devem beneficiar (como um todo) a
coletividade titular do direito protegido, em percepção que vai além da
identificação pessoal de cada um dos integrantes dessa massa humana.
Não
bastasse isso, é relevante lembrar que o inquérito civil ou o procedimento
investigatório prévio ostentam natureza inquisitorial, sendo regidos pela regra
da oficialidade. Isso importa afirmar que mesmo ex officio, não só pode
como deve o Ministério Público agir, ao tomar conhecimento de fatos que em tese
justifiquem sua mobilização (Hugo Nigro Mazzilli, O inquérito civil, cit., p.102 e ss).
Uma
outra razão deve ser assentada.
É
necessário interpretar as regras inerentes ao impedimento e suspeição do membro
do Ministério Público de modo sistemático, em cotejo com a garantia
constitucional da inamovibilidade (art.128 §5º I b da CR/88), que deve preservar não apenas o cargo, mas também as
funções a este inerentes.
É o que se pode extrair das ponderações formuladas por Hugo Nigro Mazzilli, ao afirmar que “o verdadeiro fundamento da inamovibilidade não repousa apenas
na impossibilidade de afastar o membro do Ministério Público do seu
cargo, mas também e principalmente visa a proteger o livre exercício de suas
funções. Não se admite, sob pena de burla ao preceito constitucional,
subsistam as designações discricionárias e ilimitadas do chefe do Ministério
Público, inclusive e especialmente para que promotores e procuradores oficiem
em feitos escolhidos caso a caso, pois que na verdade tais designações subtraem
as atribuições legais do promotor do feito, para, em seu lugar, oficiar outro
da escolha e da confiança do Procurador-geral”(Regime
jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.267/268,
g.n.).
Aceita
a premissa estabelecida pelos suscitantes – de que não poderão atuar, por
suspeição decorrente de motivo de foro íntimo, nos feitos em que participe como
simples interessada ou procuradora da parte a advogada antes referida – será
lícito supor que a garantia da inamovibilidade estará em risco.
Avançando
uma hipótese que não é de todo improvável – especialmente considerando o
noticiado desgaste de relacionamento existente entre os envolvidos – bastará
que a advogada já indicada passe a atuar em feitos judiciais, nos quais o
Ministério Público intervenha, na comarca de Cotia, para obter o afastamento de
todos os Promotores de Justiça da referida comarca. Isso ocorrerá com amparo
nas mesmas razões que aqui são alegadas como fundamento para reconhecimento da
suspeição.
Uma
vez concretizada tal situação, em um só ou em vários feitos, terá sido colocado
por terra o escopo fundamental da garantia da inamovibilidade, ou seja, a
preservação das funções do membro do parquet.
Por
todas essas razões, pode-se concluir que: (a) não é razoável o reconhecimento
de motivo de suspeição do membro do Ministério Público, em razão da dificuldade
de relacionamento deste com o advogado atuante no feito, e não com a parte; (b)
em hipótese de interesses difusos e coletivos (dos quais são titulares os
integrantes da coletividade como um todo, em função da indivisibilidade do
interesse), não se estabelece motivo para impedimento ou suspeição do membro do
Ministério Público, seja para a investigação, seja para eventual ação civil
pública, em decorrência de amizade ou inimizade com integrantes da
coletividade.
3)Conclusão.
Diante do exposto, conheço do
presente conflito de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art.115 da Lei
Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao Promotor de
Justiça de Cotia com atribuições na área do meio ambiente prosseguir na
investigação, em seus ulteriores termos.
Publique-se
a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.
Providencie-se
a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de
Tutela Coletiva.
São Paulo, 29 de dezembro de 2008.
Fernando Grella Vieira
Procurador-Geral de Justiça