Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado nº 158.653/11
(Procedimento n. 43.0195.0000359/2011-4-)
Suscitante: Promotor de Justiça do Consumidor de
Araraquara
Suscitado: 5º Promotor de Justiça do Consumidor da
Capital
Ementa:
1. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: Promotor de
Justiça do Consumidor de Araraquara; suscitado: 5º Promotor de Justiça do
Consumidor da Capital.
2. Compreensão da
regra de competência do foro do local do dano (art. 2º da LACP) e do foro da
capital do Estado, nos casos de dano regional (art. 93, II do CDC).
Interpretação teleológica. Dano regional que deve ser compreendido como
hipótese em que a situação se estende a praticamente todo o território do
Estado. Dano local que pode compreender mais de uma comarca, ou algumas de
determinada região, fazendo prevalecer a competência de um dos foros do local
do dano, por prevenção. Aplicação, por analogia, com relação à fixação de
atribuições do MP.
3. Inexistência de dano de âmbito regional a legitimar a atuação da Promotoria Especializada da Capital. As regras de determinação da competência não valem apenas para a propositura de ações judiciais. Servem, também, como orientação para determinar o órgão competente para a instauração de inquérito civil e a realização de termo de ajustamento de conduta. Em respeito ao princípio do promotor natural, somente o promotor de justiça lotado no local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano ou o ilícito é que poderá instaurar inquérito civil para apuração dos fatos e seguir nas investigações.
4. No caso dos direitos
transindividuais, pela sua dimensão social, política e jurídica, resta claro o
interesse público no sentido de que a competência territorial se exprima como
absoluta, justificando-se essa opção para: a) facilitar a instrução probatória;
b) permitir que a demanda seja julgada pelo juiz que de alguma forma teve
contato com o dano ou ameaça de dano a direito transindividual.
5. Ausência de elementos aptos a demonstrar dispersão suficiente para justificar a intervenção da Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital. Inaplicabilidade do art. 93, II, da Lei n. 8.078/90.
6. Requerimento que pede “Estudos para REDUÇÃO do preço da Praça de Pedágio do km 282 da SP/310 (Rodovia Washington Luiz). (cada região com sua especificidade)”.
7. Conflito conhecido e dirimido, declarando caber ao suscitante, Promotor de Justiça do Consumidor de Araraquara, prosseguir investigação, em seus ulteriores termos.
Vistos,
1) Relatório
Tratam estes
autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o Promotor de Justiça do Consumidor de
Araraquara e como suscitado o 5º Promotor
de Justiça do Consumidor da Capital.
O presente
procedimento foi instaurado porque a Câmara Municipal de Matão encaminhou à
Procuradoria-Geral de Justiça cópia do Requerimento n. 153/2011, aprovado em
Sessão Ordinária realizada no dia 2 de maio de 2011, pleiteando:
“1- Alteração do Índice de reajuste
dos contratos de IGP-M para INPC ou IPC-A; (previsto no Anexo 4 em todos os
Editais)
2- Reequilíbrio Econômico do Contrato
(item 29, sub-item 29.6.1 de todos os Editais) baseado na cláusula de
composição das tarifas (Anexo 4 de todos os Editais) especificamente no que diz
respeito ao número da demanda de tráfego apresentada à época, comparativamente
com os reais números de veículos pedagiados na presente data.
3-Estudos para REDUÇÃO do preço da
Praça de Pedágio do km 282 da SP/310 (Rodovia Washington Luiz). (cada região
com sua especificidade)”.
A cópia do
requerimento foi encaminhada à Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital,
que, por sua vez, assim se manifestou:
“Tendo em vista que a Moção aprovada
pela Câmara Municipal de Matão se refere direta e exclusivamente à praça de
pedágio localizada naquela Comarca, encaminhe-se o presente expediente à douta
Promotoria de Justiça de Matão, para as providências cabíveis” (fls. 09).
O nobre
Promotor de Justiça do Consumidor de Matão, então, decidiu suscitar o conflito
negativo de atribuições, sob o argumento de que o dano não seria exclusivamente
local, de tal forma que a atribuição seria do suscitado por força do disposto
no art. 93, II, do CDC.
É
o relato do essencial.
2) Fundamentação
A
doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do
Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado
ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que
deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério
Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196. g.n.).
Em
outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in
abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução
do Ministério Público “(a) dois ou mais
deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias
atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos
um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que
já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público,
6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).
Embora
os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional,
o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior
quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados
aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem,
com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder
hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.
Como
anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a
autoridade administrativa superior para “distribuir
e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus
agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu
quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e
corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração
Pública” (Direito Administrativo
Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda,
a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p.
421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito
Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.
O
reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano
estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado,
anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia
estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na
medida em que “questo vincolo, fondandosi
su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire
amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa
che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo
dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII,
Milano, Giuffre, 1969, p. 626).
Do
mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a
existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos,
de um “potere di risoluzione di conflitti
tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività
degli stessi” (Diritto Amministrativo,
v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).
O
reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo
algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de
Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações
processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de
qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa
atuação.
Em
outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público
atuar, mas pode e deve dizer se deve
ou não atuar, e qual o membro ou
órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.
No
caso em análise, impende saber se há ou não dano de âmbito regional a legitimar
a atuação da Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital.
As
regras de determinação da competência não valem apenas para a propositura de
ações judiciais. Servem, também, como orientação para determinar o órgão
competente para a instauração de inquérito civil e a realização de termo de
ajustamento de conduta. Em respeito ao princípio do promotor natural, somente o
promotor de justiça lotado no local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano ou o
ilícito é que poderá instaurar inquérito civil para apuração dos fatos.
O
tema da competência chegou a ser considerado o calcanhar-de-aquiles do direito
processual civil coletivo, tamanha a discussão causada para delimitar os
contornos da expressão “competência funcional” e danos de âmbito “nacional” ou
“regional”.
Autorizada doutrina sustenta que a competência no processo
coletivo adquire peculiaridades próprias quando comparada com o sistema
tradicional do processo civil, “com autonomia praticamente completa e bases
próprias para especificação” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: RT, 2002, p. 215).
Observou, com sensibilidade, Elton Venturi:
“De fato, seja em função da pouca clareza do tratamento legislativo dos critérios de fixação da competência, alicerçados em conceitos fluidos ou indeterminados (local do dano, dano local, dano regional, dano nacional), seja em função da natural problematização política que desperta, que motivou, inclusive, uma indevida porém intencional confusão entre os institutos da competência jurisdicional e da extensão subjetiva da coisa julgada, a competência jurisdicional para a tutela coletiva está a merecer análise aprofundada, tanto de lege lata como de lege ferenda” (VENTURI, Elton. Processo civil coletivo. A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos, p. 266).
O processo civil coletivo, portanto, não segue a regra tradicional do processo civil individual brasileiro, que somente admite a modificação da competência pela conexão nos casos de competência relativa, e não absoluta.
Com efeito. Nada impede que a competência territorial seja qualificada como absoluta, sempre que haja um motivo de interesse público envolvido. Cabe ao direito positivo determinar os casos em que a competência é absoluta ou relativa, assim como determinar as hipóteses em que se permitirá sua modificação, uma vez que se trata de posicionamento jurídico-positivo e não lógico-jurídico.
No caso dos direitos transindividuais, pela sua dimensão social, política e jurídica, resta claro o interesse público no sentido que a competência territorial se exprima como absoluta. Nas palavras de Proto Pisani:
“È chiaro che quando il legislatore prevede criteri di competenza per territorio inderogabili, manifesta l’esistenza di un interesse pubblicistico al rispetto di tali criteri.” (PISANI, Andrea Proto. Lezioni di Diritto Processuale Civile. Quinta edizione. Napoli: Jovene, 2006, p. 272).
Na mesma linha, Leonel:
“Apenas a princípio a competência territorial tem natureza relativa, por ser determinada em função do interesse das partes. Quando determinada em função do interesse público, como quando é fixada pelas funções do juiz no processo ou por fases deste, ganha conotação funcional, tornando-se absoluta e improrrogável” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 217).
Justifica-se a opção pela competência absoluta pelas seguintes razões: a) facilitar a instrução probatória; b) permitir que a demanda seja julgada pelo juiz que de alguma forma teve contato com o dano ou ameaça de dano a direito transindividual.
O local do resultado coincide, muitas vezes, “com o domicílio das vítimas e da sede dos entes e pessoas legitimadas, facilitando o acesso à justiça e a produção da prova” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Da defesa do consumidor em juízo. In: Benjamin, A H V; Fink, D R; Filomeno, J G; Grinover, Ada Pellegrini; Nery Júnior, N; Denari, Z. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004 , p. 877).
Hugo Nigro Mazzilli, no mesmo rumo, ensina que o escopo de fixar o local do dano “é facilitar o ajuizamento da ação e a coleta da prova, bem como assegurar que a instrução e o julgamento sejam realizados pelo juízo que maior contato tenha tido ou possa vir a ter com o dano efetivo ou potencial aos interesses transindividuais” (MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 207.
Leonel acrescenta que a fixação da competência no local do dano tem por escopo “facilitar a instrução, pois a proximidade do juízo com relação à prova milita em favor de sua elaboração. Como nas demandas coletivas há maior interesse público e preocupação com a busca da verdade real, adequado propiciar a proximidade entre o juiz e o dinamismo dos atos de colheita das provas. Isto implica o respeito máximo ao direito constitucional de ação e à garantia do acesso à justiça e à ordem jurídica justa” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 220).
Remarque-se, por oportuno, que a interpretação das regras a respeito do que seja dano regional não pode ser, com a devida vênia com relação a entendimento diverso, meramente gramatical, mas sim teleológica. Os critérios utilizados pelo legislador, definindo a competência do foro do local do dano ou da Capital do Estado, conforme a situação tenha dimensão local ou regional, seguramente levam em consideração a probabilidade de maior eficiência do processo coletivo na coleta de provas, e, conseguintemente, o contato direto do órgão jurisdicional com os fatos.
Isso nos leva a propender no sentido de que o simples fato de estarem abrangidos, no caso concreto, vários Municípios de certa região do Estado não é suficiente à configuração da dimensão estadual do dano ou risco aferido, de sorte a deslocar a competência para o foro da respectiva capital.
Não fosse assim, chegar-se-ia a um resultado que certamente não foi o desejado pelo legislador, qual seja, estabelecer como juízo competente aquele que está dissociado, até mesmo fisicamente, do contexto da situação de dano ou risco e da coleta da prova em eventual ação judicial.
Principalmente em função do fato de que o requerimento encaminhado pela Câmara Municipal de Matão frisa a necessidade de “estudos para REDUÇÃO do preço da Praça de Pedágio do km 282 da SP/310 (Rodovia Washington Luiz). (cada região com sua especificidade)”.
De outro lado, não há nos autos, até o momento, informação de que outros municípios estão na mesma situação.
Em síntese, não há nos autos informação no sentido de que o dano alcança todo o Estado ou um número significativo de municípios. Isso faz com que a atribuição para oficiar na investigação seja de qualquer uma das Promotorias que se enquadram no contexto do local do dano (art. 2º da Lei da Ação Civil Pública), e não da que tem função de oficiar na capital.
Colhe-se do exposto que melhor se afigura atribuir ao suscitante a presidência da investigação, uma vez que isso facilitará a instrução probatória, além de permitir que a demanda seja julgada pelo juiz que de alguma forma teve contato com o dano ou ameaça de dano a direito transindividual, sobretudo para se atender ao postulado de redução da tarifa da Praça de Pedágio do km 282 da SP/310 (Rodovia Washington Luiz).
Em virtude das regras acima expostas, nota-se competir ao Promotor
de Justiça do Consumidor de Araraquara prosseguir na
investigação, em seus ulteriores termos.
3) Decisão
Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao suscitante, Promotor de Justiça do Consumidor de Araraquara, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.
Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.
Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.
São Paulo, 22 de novembro de
2011.
Fernando Grella
Vieira
Procurador-Geral
de Justiça
/md