Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 158.714/2010

Suscitante: 6º Promotor de Justiça de Americana (Direitos Humanos - Idoso)

Suscitado: 3º Promotor de Justiça de Americana (Direitos Humanos – Saúde Pública)

 

 

Ementa:

1) Inquérito civil. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 6º Promotor de Justiça de Americana (Direitos Humanos - Idoso). Suscitado: 3º Promotor de Justiça de Americana (Direitos Humanos – Saúde Pública).

2) Representação colhida em termo de declarações. Necessidade de apuração das condições de prestação do serviço público de saúde prestado no hospital municipal. Embora a situação narrada pela autora da representação seja singular, relacionada a atendimento ocorrido de forma individual, é viável extrair dela ilações que poderiam ter, ainda que eventualmente, projeção coletiva. Atribuição do Promotor de Justiça com atribuições relativas à área de saúde pública.

3) Conflito conhecido e dirimido, declarando caber ao suscitado, 3º Promotor de Justiça de Americana, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

 

 

 

Vistos.

1) Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 6º Promotor de Justiça de Americana (Direitos Humanos - Idoso) e como suscitado o 3º Promotor de Justiça de Americana (Direitos Humanos – Saúde Pública).

O 3º Promotor de Justiça da Comarca de Americana, com atribuições na área de Saúde Pública, tomou declarações de cidadã que relatou problemas enfrentados por sua mãe, na condição de usuária do serviço público municipal de saúde. Em seguida, encaminhou o protocolado para o 6º Promotor de Justiça que, ao receber os autos, entendeu que se trata de matéria pertinente à Saúde Pública, argumentando que: “No presente caso, portanto, parece evidente que a questão objeto da solicitação de providências extrapola a área de atuação em defesa dos idosos. Na verdade, facilmente se constata que a matéria em exame envolve questão relativa à saúde pública, pois é certo que o aparelho para exame de colonoscopia não se restringe a pessoas idosas, podendo ser usado em pessoas de qualquer iade, inclusive em crianças.

De igual modo, o ‘mau atendimento’ ‘nas dependências do Hospital Municipal’ mencionado pelo colega certamente não é exclusividade dos idosos...

Portanto, as declarações colhidas pelo DD. 3º Promotor de Justiça de Americana envolvem problemática bem mais abrangente, referindo-se à saúde de um modo geral, visto que a falta do aparelho de colonoscopia noticiada pela filha de uma pessoa idosa atinge indistintamente a todos os usuários do serviço público de saúde do município e não apenas aos idosos”.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

A doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).

Embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas, pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

Essa ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Muito embora seja comum que em determinada investigação se verifique a existência de mais de um interesse, afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público, no caso dos autos sobressai de forma clara a questão da saúde pública, isto é, das condições do mencionado serviço público prestado pelo município, especialmente no âmbito do hospital municipal.

Portanto, não há como negar, no presente caso, que os fatos narrados na representação, ao menos inicialmente, dizem respeito à questão do atendimento na esfera do serviço de Saúde do Município. Embora a situação narrada pela autora da representação seja singular, relacionada a atendimento ocorrido de forma individual, é viável extrair dela ilações que poderiam ter, ainda que eventualmente, projeção coletiva.

Por todo o exposto se vê que a questão central noticiada nos autos está afeta às atribuições da Promotoria de Justiça na área de Saúde Pública.  Destarte, conclui-se que o suscitado, Promotor de Justiça com atribuição na área, deverá prosseguir na investigação.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao suscitado, 3º Promotor de Justiça de Americana, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 16 de dezembro de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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