Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 160.824/09

Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Votuporanga

Suscitada: 4º Promotor de Justiça de Votuporanga

 

 

Ementa:

1) Conflito de atribuições – Ação voltada ao cumprimento de obrigação de fazer, com pedido de antecipação de tutela, tendo por objeto o fornecimento de medicamento de custo elevado e imprescindível ao tratamento da sua saúde.

2) Demanda que não tem por objeto a discussão de direitos de idoso em condições de risco.

3) Divisão de atribuições que prevê como atribuições do 1º Promotor de Justiça de Votuporanga atuar na tutela do idoso e ao 4º Promotor de Justiça atuar nos feitos cíveis da 4ª Vara.

4) Atribuição, portanto, do Suscitado.

Vistos.

1) Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições surgido durante a tramitação, perante a 4ª Vara de Votuporanga, de ação proposta por M. D. S. G. em face da Prefeitura Municipal, tendo por objeto o cumprimento de obrigação de fazer, com pedido de antecipação de tutela, pleiteando o fornecimento de medicamento de custo elevado e imprescindível ao tratamento da sua saúde.

Ocorre que o 4º Promotor de Justiça de Votuporanga (suscitado), que tem atribuições para atuar nas causas cíveis que tramitam perante a 4ª Vara, entendeu que a atribuição para atuar no feito é do 1º Promotor de Justiça de Votuporanga (suscitante), por se tratar da hipótese do inciso II, do art. 74, do Estatuto do Idoso (conforme fls. 24 dos autos do processo judicial).

Os autos, então, foram encaminhados ao 1º Promotor de Justiça de Votuporanga (Curador do Idoso), que suscitou o conflito negativo de atribuições, consignando que o caso dos autos envolve idoso que está regularmente assistida por competente advogada, além de não se encontrar em situação de risco. Acrescentou que o precedente invocado não se aplica ao caso.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.196).

De antemão, verifica-se que está, no caso, configurado o conflito de atribuições, embora seja extremamente tênue a linha divisória que distingue a legítima apreciação, pelo Procurador-Geral de Justiça, de um conflito de atribuição concretamente considerado, e eventual manifestação emitida em situação de inexistência de caso concreto a analisar, que poderia configurar violação da independência funcional do membro do Ministério Público, estipulada expressamente como princípio constitucional no art.127 §1º da CR/88.

O respeito à independência funcional, dentro do entendimento que tem prevalecido e que acabou sendo acolhido pelo legislador, é que impede, por exemplo, que recomendações do Procurador-Geral de Justiça aos demais órgãos de execução tenham caráter vinculativo, quanto aos estritos limites relacionados ao específico desempenho de suas funções de execução (cf. art.19 I d da Lei Complementar Estadual nº734/93).

Deste modo, pode-se concluir que a solução de problemas atinentes a atribuições depende de sua concreta configuração, bem como da iniciativa dos órgãos de execução envolvidos, no sentido de suscitar o conflito.

Essa é a razão pela qual a doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.486/487).

A questão da necessidade de respeito à independência funcional encontra bom exemplo nos casos em que há negativa do membro do Ministério Público para oficiar em determinado feito, de natureza cível.

O fundamento que tem sido adotado para solução de casos desta natureza é a analogia com o art.28 do Código de Processo Penal (Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.537; Emerson Garcia, Ministério Público, cit., p.73).

Mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p.421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica”(Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969,p.626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ªed., Milano, Giuffrè, 1993, p.312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores e Procuradores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

Analisados os documentos encaminhados à Procuradoria-Geral de Justiça, verifica-se que não está em discussão o direito do idoso, considerando que o pedido não se justifica na condição de idosa da autora, mas sim no alto custo econômico do medicamento necessitado pela autora.

Em relação ao caso concreto, importante consignar que o interesse manifestado na ação ordinária não se enquadra na hipótese do inciso II do artigo 74 do Estatuto do Idoso. Diz a lei:

Art. 74. Compete ao Ministério Público:

II – promover e acompanhar as ações de alimentos, de interdição total ou parcial, de designação de curador especial, em circunstâncias que justifiquem a medida e oficiar em todos os feitos em que se discutam os direitos de idosos em condições de risco;

A atuação da 1ª Promotoria de Justiça de Votuporanga, nos termos do Ato n. 55/2008, de 19 de maio de 2008, que homologou a modificação das atribuições dos cargos de Promotor de Justiça da Promotoria de Justiça de Votuporanga, se dá em prol do idoso (inclusive aspectos criminais), enquanto que a 4ª PJ deve atuar nos feitos cíveis da 4ª Vara.

Como se vê, no caso específico não está em discussão direito do idoso. Por outras palavras, o pedido não se justifica na condição de idosa da autora, mas sim na sua hipossuficiência econômica para a aquisição do medicamento.

Posto isso, conheço do conflito de atribuições e decido que a atribuição para se manifestar nos autos é do 4º Promotor de Justiça de Votuporanga (suscitado).

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, 4º Promotor de Justiça de Votuporanga, a atribuição para oficiar nos autos.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 7 de janeiro de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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