Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 161.965/2010

(processo 361.01.2010.024136-5 – 3ª Vara Cível de Mogi das Cruzes)

Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (suscitante)

Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (suscitado)

Ementa:

1)     Conflito negativo de atribuições. 1º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (suscitante) e 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (suscitado).

2)     Pedido de retificação de registro civil. Assento de óbito do qual constou, equivocadamente, que o falecido não tinha bens a inventariar.

3)     Iniciativa que tem natureza jurisdicional, no contexto da denominada jurisdição voluntária. Atribuição, prevista em ato administrativo de divisão de serviços, para oficiar nos feitos da “Corregedoria Permanente dos Cartórios”, que se limita aos procedimentos de natureza meramente administrativa.

4)     Conflito conhecido e dirimido, declarando-se caber ao suscitado oficiar no feito.

Vistos.

1)   Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 1º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes e como suscitado a DD. 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes.

O feito de origem resolve-se em pedido de retificação de registro civil, fundado no art. 109 e seguintes da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73). Postulam os interessados, em síntese, correção do assento do óbito de Takeshi Ohashi, a fim de constar que ele deixou bens a inventariar e não, como ficou equivocadamente consignado no referido assento, que ele falecera sem bens a inventariar.

Ao receber os autos com vista, o suscitado, DD. 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes, postulou a sua remessa ao DD. 1º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (fls. 26).

Ao receber os autos, o DD. 1º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes suscitou o conflito afirmando, em síntese, que: (a) tem atribuição apenas para oficiar nos pedidos de natureza “administrativa” que tramitam perante a Corregedoria do Registro Civil, e não em todas as ações civis com reflexos em matéria de Registro Civil; (b) o raciocínio do suscitado aplica-se apenas às Promotorias de Registros Públicos da Capital, que oficiam apenas perante as Varas Especializadas de Registros Públicos; (c) o processo em epígrafe não se refere a pedido “administrativo” de retificação, mas sim a pedido jurisdicional, tramitando em Vara Cível; (d) a intervenção ministerial se verifica pela denominada “Curadoria Geral”, e não pela “Curadoria de Registros Públicos”.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação ou ação na esfera cível deve levar em consideração os dados do caso concreto.

No caso em análise, os interessados formularam – como se verifica da petição de fls. 3/4 - pedido de “retificação de registro público, observando-se o rito previsto nos arts. 109 e seguintes da Lei 6.015/73”, tendo em vista que da certidão de óbito de Takeshi Ohashi constou que ele não tinha bens a inventariar, quando na verdade os tinha.

A premissa para a solução do conflito está em saber se o pedido de retificação do assento do óbito tem natureza administrativa ou jurisdicional.

Essa questão é relevante, na medida em que o suscitante, DD. 1º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes, tem, entre suas atribuições, a função de oficiar perante a Corregedoria de Registros Públicos, enquanto o suscitado, DD. 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes, tem como atribuição, entre outras, a de oficiar em alguns finais de processos da 3ª Vara Cível de Mogi das Cruzes, sendo essa a razão pela qual recebeu os autos com vista inicialmente.

Essa definição de atribuições está assentada no Ato 050/2010 – PGJ, de 30 de agosto de 2010, que dispõe a respeito da divisão de serviços na Promotoria de Justiça de Mogi das Cruzes.

Note-se que a relevância em saber se o pedido de retificação do registro de óbito, formulado no feito de origem, tem natureza administrativa ou jurisdicional, está ligada à ideia de que, em se tratando de pedido meramente administrativo, deve tramitar perante a Corregedoria de Registros Públicos, invocando a atuação do membro do MP com essa específica atribuição. De outro lado, se tal pedido tem natureza jurisdicional, acaba por concretizar hipótese em que deve atuar o órgão ministerial que oficia na função genérica de fiscal da ordem jurídica em feito civil.

É compreensível a dificuldade, por certas vezes, de se vislumbrar o correto enquadramento sistemático dos pedidos de relacionados à modificação ou correção de registros públicos.

É que nada obstante os aspectos positivos com relação à segurança jurídica introduzidos no ordenamento por força da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), a compreensão dos caminhos para o alcance das retificações, quando se mostram necessárias, é tarefa que exige certo considerável esforço interpretativo.

Cumpre nesse sentido observar que as retificações de assento contido no Registro Civil são tratadas do art. 109 ao art. 113 da Lei de Registros Públicos.

Nesses dispositivos há várias possibilidades que podem ser sintetizadas do seguinte modo: (a) pedidos de natureza meramente administrativa, sob supervisão ministerial e jurisdicional; (b) pedidos de natureza administrativa que acabam se convertendo em procedimento jurisdicional; (c) pedidos de natureza jurisdicional que configuram hipóteses de jurisdição voluntária; (d) pedidos de natureza jurisdicional contenciosa.

Trata-se de pedido meramente administrativo, sob supervisão ministerial e jurisdicional, o deduzido a partir do art. 110 da Lei de Registros Públicos, pelo qual o interessado pode postular, perante o próprio Cartório Extrajudicial, a “correção de erros de grafia”. Nesse caso, deve ser colhida a manifestação ministerial

, submetendo-se em seguida os autos à apreciação judicial (art. 110, § 1º).

Nessa situação, assim como ocorria antigamente na tradicional atribuição ministerial de fiscalização da habilitação de casamento, o que se tem é atividade meramente administrativa, supervisionada pelo MP e pelo Poder Judiciário, sem, contudo, caráter jurisdicional.

Outra situação é aquela em que a postulação do interessado é formulada em caráter administrativo, mas a lei permite sua conversão em providência jurisdicional. É o que se verifica quando o pedido de retificação do registro civil envolve questões de fato de “maior indagação”, ou quando há impugnação do Ministério Público.

Nessas circunstâncias, deve o juiz determinar a distribuição dos autos “a um dos cartórios da circunscrição, caso em que se processará a retificação, com assistência de advogado, observado o rito sumaríssimo” (art. 110, § 4º da Lei de Registros Públicos).

Sobre essa hipótese, lembra Walter Ceneviva que se trata de circunstância em que o pedido de retificação toma “feição contenciosa” (Lei dos Registros Públicos Comentada, São Paulo, 9. Ed., Saraiva, 1994, p. 190), utilizando referido autor a expressão “contenciosa” não no sentido de existência de lide (conflito de interesses qualificado pela existência de uma pretensão e de resistência a ela), mas sim no sentido de providência jurisdicional, inserida no contexto da jurisdição voluntária.

Note-se inclusive, a título de paralelo para fins de exemplificação, que similar conversão de procedimento administrativo em jurisdicional ocorre nos casos em que o pedido de retificação simples do registro de imóvel sofre impugnação por parte de algum interessado.

Nesse contexto o procedimento instaurado inicialmente perante o Oficial do Registro de Imóveis é ultimado perante este, com a remessa dos autos ao Juiz de Direito Corregedor do Cartório de Imóveis, para fins de instrução e decisão. E mais: nesse caso, se a controvérsia girar em torno do próprio direito de propriedade, as partes serão remetidas às “vias ordinárias”, ou seja, ao contencioso (no sentido próprio) jurisdicional (art. 213, § 6º da Lei de Registros Públicos).

É nesse sentido que Maria Helena Diniz, invocando precedentes de tribunais estaduais, anota que “verificando-se impugnação fundamentada ao pedido de retificação de registro de imóvel, impõe-se o debate na via contenciosa própria, a teor do art. 213, § 4º da Lei de Registros Públicos, tornando-se inviável o procedimento administrativo, para o qual é imprescindível o acordo de todos os interessados”; bem como que “havendo contestação sobre o pedido de retificação de área no Registro de Imóveis, deve o Juiz imprimir rito ordinário ao feito, tornando-o contencioso e de natureza real” (Sistemas de Registro de imóveis, 5. Ed., São Paulo, Saraiva, 2004, p. 415).

Ainda no que diz respeito à retificação de assentos do Registro Civil, a própria lei aponta para casos em que se mostra admissível exclusivamente o processo jurisdicional contencioso. É o que se dá quando se pretende a própria alteração do estado civil do interessado.

Nesse sentido o art. 113 da Lei de Registros Públicos, ao prever que “as questões de filiação legítima ou ilegítima serão decididas em processo contencioso para anulação ou reforma do assento”.

Em síntese, e insistindo no que foi afirmado inicialmente, é necessário ter presente que as providências solicitadas em matéria de modificação de Registro Público tanto podem ter natureza simplesmente administrativa, como podem, ainda, desaguar em processo judicial, seja ele de natureza voluntária ou contenciosa.

Tornando ao caso que deu margem ao presente conflito, a providência buscada pelas requerentes foi intervenção judicial com o escopo de corrigir o assento do óbito de seu genitor, a fim de que seja explicitada a existência de bens a inventariar.

Esse pedido, distribuído a uma das Varas Cíveis da Comarca – e não através da Corregedoria Permanente do Registro Civil – preenche integralmente as principais características dos procedimentos de jurisdição voluntária, tal como tradicionalmente apontados pela doutrina, notadamente: (a) inexistência de lide (conflito de interesses qualificado pela existência de uma pretensão e pela oposição de resistência a ela); (b) ausência de partes, mas presença de requerente e eventualmente requerido; (c) não formação de coisa julgada; (d) mera administração jurisdicional de um interesse de natureza privada.

Nesse sentido: Antônio Carlos Marcato, Procedimentos Especiais, 10. Ed., São Paulo, Atlas, 2004, p. 23; Cândido Rangel Dinamarco, Instituições de Direito Processual Civil, t. I, 6. Ed., São Paulo, Malheiros, 2009, p. 325 e ss; Leonardo Grecco, Jurisdição voluntária moderna, São Paulo, Dialética, 2003, p. 23; entre outros.

É nesse sentido que Walter Ceneviva (Lei dos Registros Públicos Comentada, cit., p. 187), sobre essa hipótese, anota que “a retificação de nome é de cunho preponderantemente administrativo, como decidido pelo TJSP, distinguindo duas formas permitidas pela Lei 6.015: 1ª) se se tratar de simples correção de erros de grafia, o processo se faz no próprio cartório do registro civil, podendo eventualmente exigir ação sumaríssima; 2ª) se a correção não for simplesmente de erros de grafia, o processo se instaurará no foro judicial”.

A situação versada no feito que deu margem ao presente conflito se encaixa na segunda hipótese apontada pela doutrina, no excerto acima transcrito, ou seja, de providência de caráter jurisdicional, inserida no contexto da jurisdição voluntária.

Anote-se, aliás, que esse panorama já foi reconhecido pelo Col. STJ ao decidir conflito de competência, deixando explícita a natureza jurisdicional (embora, em princípio, não contenciosa) do pedido de retificação de assento de óbito, conforme ementa a seguir transcrita:

“(...)

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. CERTIDÃO DE ÓBITO. FORO COMPETENTE. COMARCA DA LAVRATURA DO ASSENTO OU DO DOMICÍLIO DO AUTOR. ART. 109, § 5º, DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS.

1. A ação para retificação de registro civil (registro de óbito) pode ser proposta em comarca diversa daquela em que foi lavrado o assento a ser retificado (art. 109, § 5º, da Lei 6.015/1973), não havendo óbice para ajuizamento da demanda no foro de domicílio do autor, pessoa interessada na retificação.

2. Conflito de competência conhecido para declarar competente o Juízo de Direito da 2ª Vara de Família da Regional do Méier, Rio de Janeiro/RJ, o suscitante. (CC 96309 / RJ, 2ª Seção, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 22/04/2009, DJe 29/04/2009, RSTJ vol. 215 p. 380).

(...)”

Ora, como o caso em exame trata de pedido de natureza jurisdicional voluntária (não contencioso), em nossa percepção foi corretamente distribuído como feito cível, e não como feito da Corregedoria Permanente do Registro Civil.

E nessa linha de raciocínio, a atribuição para intervir no feito não é do órgão ministerial que oficia perante a Corregedoria do Registro Civil, mas sim daquele que atua, como fiscal da ordem jurídica, nos processos cíveis em que haja interesse específico a legitimar a intervenção ministerial.

Raciocínio diverso nos levaria a concluir, equivocadamente, que: (a) todos os feitos em que há discussão a respeito de matéria que pode de algum modo repercutir no âmbito dos Registros Civis de Pessoas Físicas, Jurídicas, ou de Imóveis, deveriam tramitar perante o Juízo Corregedor Permanente respectivo; (b) nessa mesma lógica, sempre oficiaria em tais feitos o órgão do MP com atribuições para atuar junto às Corregedorias Permanentes.

Essa conclusão seria manifestamente inaceitável, pois conduziria à afirmação de que, por exemplo, todas as ações de usucapião, ou ainda todas as ações de investigação de paternidade, deveriam tramitar perante o Juízo Corregedor Permanente.

Aliás, em reforço ao que vem sendo aqui consignado, também seria inviável tal conclusão a partir da observação de que as atribuições da Corregedoria Permanente são de natureza administrativa, e não jurisdicional. Daí não ser possível, portanto, a distribuição de feito jurisdicional (no exemplo acima invocado, ações de usucapião ou ações de investigação de paternidade) ao Juízo Corregedor Permanente.

Acrescente-se, ainda, que situação peculiar é aquela que se verifica na Comarca da Capital, em que existem Varas com competência específica em matéria de Registros Públicos.

Ademais, nada obstante nas demais comarcas algumas Varas tenham também competências para apreciar as questões administrativas das Corregedorias Permanentes dos Cartórios Extrajudiciais, essa competência não se confunde com a competência jurisdicional para apreciação dos feitos de jurisdição contenciosa ou voluntária, ainda que afetos à matéria que envolva Registros Públicos.

Caberá ao suscitado, portanto, oficiar no caso, visto que recebeu inicialmente o feito cível a fim de intervir como fiscal da ordem jurídica.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes, a atribuição para oficiar no feito.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 22 de dezembro de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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