Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 172.421/16

Suscitante: 4ª Promotora de Justiça de Cubatão (Saúde Pública)

Suscitado: 3º Promotor de Justiça de Cubatão (Pessoa com Deficiência)

 

 

Ementa:

1.    Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 4ª Promotora de Justiça de Cubatão (Saúde Pública). Suscitado: 3º Promotor de Justiça de Cubatão (Pessoa com Deficiência).

2.    Fatos distintos reunidos em única representação: a) extintores de incêndio vencidos; b) ausência de acessibilidade; c) poças de água com larvas de mosquito. Potencial afetação de bens jurídicos diversos: habitação e urbanismo, saúde pública e pessoa com deficiência, a reclamar atuação de execução de diversas Promotorias de Justiça na defesa dos direitos e interesses difusos implicados.

3.    Conflito conhecido e dirimido, reconhecendo a atribuição do suscitado.

 

1)    Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante a DD. 4ª Promotora de Justiça de Cubatão, com atribuição para atuar na área da Saúde Pública, e como suscitado o DD. Promotor de Justiça de Cubatão, da Pessoa com Deficiência.

Cuida-se de notícia de fato encaminhada pelo Ministério Público do Trabalho, informando irregularidades na Secretaria Municipal de Educação de Cubatão, relacionadas com a existência de extintores de incêndio vencidos, ausência de acessibilidade e poças de água no beiral ao lado das janelas do 2º andar, com larvas de mosquito.

A Promotora de Justiça da Saúde Pública determinou a cisão do procedimento, com envio às Promotorias de Justiça da Habitação e Urbanismo e Pessoa com Deficiência.

O 3º Promotor de Justiça de Cubatão, com atribuição na área da Pessoa com Deficiência, restituiu o expediente à 4ª Promotora de Justiça, sob o fundamento de que o procedimento não poderia ter sido cindido  em quatro Promotoria de Justiça distintas, em vista dos princípios da celeridade e proteção ao cidadão, sob pena de soluções distintas em prazos diversos. Invocou o Protocolado n. 102.145/15.

A Suscitante, ao seu turno, destacou que no tocante à notícia de ausência de acessibilidade, a atribuição seria do 3º Promotor de Justiça, eis que “não há que se falar em pedido genérico e não afeto à questão de pessoa com deficiência, nem tampouco de pedido com conexão ou continência. Em verdade, todos os pedidos formulados na representação são pedidos independentes e que não se confundem.” Concluiu no sentido de que a atribuição, nos termos do artigo 439, IV, do Manual de Atuação Funcional, seria exclusivamente do suscitado.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

O conflito negativo de atribuições está configurado e, pois, comporta conhecimento.

Este procedimento foi instaurado em razão de notícia de fato encaminhada pelo Ministério Público do Trabalho, cuja cópia foi juntada a fls. 12/15, na qual de noticia o seguinte:

Condições desumanas e perigosas de trabalho, tais como: Falta de insumos básicos (água e papel higiênico); falta de material para trabalho (material de escritório, equipamentos de informática). Constantemente os funcionários tem que trazer estes insumos de casa, inclusive materiais de escritório e equipamentos de informática. Além disso, os extintores de incêndio estão vencidos, não há acessibilidade no prédio e há empoçamento de água no beiral ao lado das janelas do 2º andar, com larvas de mosquito.”

Resta evidente que a notícia de fato apontou irregularidades diversas e autônomas, afetas a distintas áreas de atuação do Ministério Público, a exigir atuação destacada, de acordo com as respectivas atribuições das unidades envolvidas.

A existência de notícia de diversas irregularidades em uma mesma representação não é suficiente para se reconhecer a prevenção ou conexão, não se podendo olvidar que a especialização de atribuições entre Promotorias de Justiça busca, da mesma forma, concretizar a eficiência e a celeridade.

Ainda que se entendesse existir conexão, a solução seria a mesma. Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto.

Insta considerar, inicialmente, que a reunião de feitos em razão da prevenção decorrente da conexão ou continência tem como razão de ser a economia processual, com o aproveitamento da prova, a maior probabilidade de acerto na solução final, evitando-se conflitos lógicos entre decisões.

Guardadas as devidas adaptações, essas ideias são aplicáveis também às hipóteses de reunião de inquéritos civis por prevenção decorrente de conexão ou continência, que tem por objetivo otimizar a investigação e, num segundo momento, evitar soluções logicamente conflitantes nas eventuais ações civis públicas, ou mesmo diante da circunstância de haver o membro do Ministério Público já apreciado questão relativa ao mesmo objeto ou a ele conexo.

Na hipótese em comento não se consegue projetar quais seriam as soluções conflitantes que poderiam ser tomadas, dada a precisa identificação das irregularidades relacionadas às diversas áreas de atuação ministerial. Basta verificar que o arquivamento lançado pela 4ª Promotoria de Justiça (fls. 28/30) em nada obstará ou conflitará providência distinta na área da Pessoa com Deficiência.

Pode-se mesmo afirmar, sem temor, que a conveniência é critério determinante para aferir se, em determinada hipótese, deverá ou não ocorrer a reunião de feitos conexos em razão da prevenção. Se uma de suas finalidades é a economia processual, e se no caso específico esta não terá lugar, dever-se-á evitar a reunião.

A interpretação das regras processuais e procedimentais não pode perder de vista seus fins. Se a aplicação de uma norma determinada leva a resultado diverso daquele que inspirou sua edição, deve ser mitigada sua incidência. Nesse sentido, pondera Patrícia Miranda Pizzol, ao comentar o art.105 do CPC de 1973, afirmando que a não observância da regra determinante da reunião de feitos conexos não deve levar ao reconhecimento de qualquer vício processual, “se o tribunal verificar que, muito embora havendo conexão, a sentença proferida, por seu conteúdo, não tem o condão de causar lesão às partes, uma vez que não há o risco de julgados contraditórios, o pronunciamento não deverá ser anulado. Pode-se fundamentar o entendimento ora esposado no princípio da instrumentalidade das formas, bem como na súmula nº 235 do STJ” (Código de Processo civil interpretado, coord. Antônio Carlos Marcado, São Paulo, Atlas, 2004, p.301).

Aliás, nesse sentido tem decidido o E. STJ, como se infere do julgado cuja ementa segue transcrita, a título de exemplificação:

 “Processo civil. Conexão. Margem de discricionariedade do juiz. Sociedade de Economia Mista. Competência da Justiça Estadual. Processamento do recurso. Não conhecimento. Segundo orientação predominante, o art.105, CPC, deixa ao juiz certa margem de discricionariedade na avaliação da intensidade da conexão, na gravidade resultante da contradição de julgados e, até, na determinação da oportunidade da reunião de processos (...) (STJ, RESP 5.270/SP, 4ªT., rel. Min. Sálvio  de Figueiredo Teixeira, j. 11.2.1992, DJU 16.3.1992, p.3100).

Essa é, também, a essência do fundamento que ensejou a edição da súmula acima mencionada, no E. STJ:

“Súmula nº 235: A conexão não determina a reunião dos processos se um deles já foi julgado”.

A interpretação sistemática também legitima tal conclusão. Sabe-se que um dos fundamentos do litisconsórcio é, em observação singela, a conexão entre as demandas cumuladas pelos litisconsortes. Em outras palavras, fossem elas propostas separadamente, seria, em tese, viável a reunião, desde que identificada a conexão. Entretanto, a lei abre ensejo para solução contrária, na hipótese do denominado “litisconsórcio multitudinário”, previsto no art. 113, § 1º, do CPC. Como prevê referido dispositivo, “o juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes na fase de conhecimento, na liquidação de sentença ou na execução, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa ou o cumprimento da sentença”.

Defendendo o acerto do legislador ao prever a possibilidade de limitação ao litisconsórcio, pondera Cândido Rangel Dinamarco que “a conveniência do cúmulo termina, porém, onde começam os embaraços mais graves, que o número muito grande de litisconsortes pode ocasionar” (Litisconsórcio, 3ªed., São Paulo, Malheiros, 1994, p.347).

Assim, é possível afirmar, por identidade de razões, que se a reunião de procedimentos investigatórios ou de ações conexas levará à inviabilidade do proveito prático desejado, dever-se-á evitar a junção de feitos. Também a interpretação analógica e extensiva levaria à solução aqui propugnada, bastando consultar a solução contida, ao propósito, na legislação processual penal.

Conexão e continência são determinantes da reunião de feitos criminais, com ressalvas, contudo, que incluem a conveniência (cf. art.80 e 82 do CPP). Tais ideias, singelamente alinhavadas, são inteiramente aplicáveis à análise da pertinência da reunião, ou não, de investigações civis a respeito de casos que apresentem, em maior ou menor grau, conexão de qualquer sorte, ainda que probatória.

Em síntese: (a) a regra da prevenção, como forma de definição de competência jurisdicional ou atribuição de órgãos ministeriais não é absoluta; (b) sua aplicação não pode descurar de valores mais relevantes, em especial, a preservação da garantia da inamovibilidade, e a regra do promotor natural; (c) não se deve promover a reunião de feitos por prevenção quando isso significar, em prognóstico formulado com amparo em peculiaridades do caso concreto, risco de maiores dificuldades que vantagens tanto para a investigação, como para ulterior ação em juízo.

Ademais, cumpre esclarecer que o precedente invocado pelo suscitado (Pt n. 102.145/15) cuidava de conflito instaurado dentro de uma mesma Promotoria de Justiça Especializada (Patrimônio Público) situação absolutamente diversa da ora enfrentada, na qual o conflito se deu entre Promotorias de Justiça com atribuições especializadas distintas.

Neste contexto, vale relembrar o que dispõe o Manual de Atuação Funcional em relação à defesa da pessoa com deficiência:

“Art. 439. Exercer a defesa dos direitos e garantias constitucionais da pessoa com deficiência, por meio de medidas administrativas e judiciais, competindo-lhe:

(...)

IV – intentar ações nas áreas de saúde, educação, formação profissional e do trabalho, lazer, previdência social, acessibilidade em geral, inclusive quanto à informação e à comunicação;

Conclui-se, portanto, que a atribuição para a continuidade das investigações, no tocante à notícia de ausência de acessibilidade na Secretaria Municipal de Educação de Cubatão, é da Promotoria de Justiça da Pessoa com Deficiência.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 3º Promotor de Justiça de Cubatão, a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a remessa dos autos originais aa Suscitado, e de cópia de inteiro teor, inclusive da presente decisão, a Suscitante.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 20 de fevereiro de 2018.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

 

 

 

 

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