Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado MP nº 172.670/2016
Suscitante: 2º Promotor de Justiça
Cível do Foro Central
Suscitado: 2º Promotor de Justiça da
Promotoria de Habitação e Urbanismo da Capital
Ementa:
1. Conflito negativo de atribuições. Reintegração de posse em que são partes a Municipalidade de São Paulo e o Clube de Regatas Tietê.
2. Em sede de ação possessória, incumbe à Promotoria de Justiça Cível funcionar no feito.
3. Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento da intervenção ministerial por parte do suscitante.
Vistos,
Trata-se
de conflito negativo de atribuições provocado pelo 2º Promotor de
Justiça Cível da Capital em face do 2º Promotor de Justiça de Habitação e
Urbanismo da Capital, no bojo de ação possessória em que figuram como partes a
Municipalidade de São Paulo e o Clube de Regatas Tietê.
É possível afirmar que o
conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.
Como anota a doutrina
especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do
Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de
determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo
aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.
196).
Como se sabe, no
processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída
dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador
estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio
Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São
Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56;
Patrícia Miranda Pizzol, A competência no
processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves,
Competência no processo civil, São
Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.
Esta ideia, aliás,
estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo,
funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e
sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose
Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e
Ora, se para a
identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada
demanda a lei processual estabelece, a
priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há
razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão
ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese
concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.
Pode-se, deste modo,
afirmar que a definição do membro do parquet
a quem incumbe a atribuição para intervir como fiscal da ordem jurídica em
determinada demanda deve levar em consideração os dados do caso concreto
investigado.
Registre-se que esta Procuradoria-Geral de Justiça firmou o entendimento de que a atribuição para atuar em demandas de reintegração de posse é do membro do Ministério Público oficiante nos feitos cíveis.
De antemão, afasta-se a argumentação, por vezes trazida, de que as ações de reintegração de posse seriam uma espécie de ação coletiva passiva e por isso caberia à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo nelas funcionar.
Registre-se,
de plano, que a noção de ação coletiva passiva surgiu no ordenamento jurídico
brasileiro a partir de proposta elaborada por Ada Pellegrini Grinover,
Kazuo Watanabe e Antonio Gidi durante as Jornadas de Montevidéu (outubro 2002);
na oportunidade, elaborou-se Proposta de
A ação coletiva passiva (defendant class action do sistema norte-americano) pode ser entendida como a demanda promovida contra grupo, categoria ou classe de pessoas e que tem como peculiaridade a representatividade do polo passivo.
Na Exposição de Motivos do ANTEPROJETO DE CÓDIGO BRASILEIRO DE PROCESSOS COLETIVOS elaborada pelo Ministério da Justiça em 2.007, incorporando sugestões da Casa Civil, da Secretaria de Assuntos Legislativos, da PGFN e dos Ministérios Públicos de Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo, foi feita a seguinte explanação sobre a ação coletiva passiva:
“O Capítulo III introduz no ordenamento brasileiro a ação coletiva passiva originária, ou seja, a ação promovida não pelo, mas contra o grupo, categoria ou classe de pessoas. A denominação pretende distinguir essa ação coletiva passiva de outras, derivadas, que decorrem de outros processos, como a que se configura, por exemplo, numa ação rescisória ou nos embargos do executado na execução por título extrajudicial. A jurisprudência brasileira vem reconhecendo o cabimento da ação coletiva passiva originária (a defendant class action do sistema norte-americano), mas sem parâmetros que rejam sua admissibilidade e o regime da coisa julgada. A pedra de toque para o cabimento dessas ações é a representatividade adequada do legitimado passivo, acompanhada pelo requisito do interesse social. A ação coletiva passiva será admitida para a tutela de interesses ou direitos difusos ou coletivos, pois esse é o caso que desponta na “defendant class action”, conquanto os efeitos da sentença possam colher individualmente os membros do grupo, categoria ou classe de pessoas. Por isso, o regime da coisa julgada é perfeitamente simétrico ao fixado para as ações coletivas ativas”.
Pode-se vislumbrar que se trata de uma ação coletiva vista pelo ângulo do polo passivo; o enfoque, portanto, não residiria no autor, no legitimado ativo, mas no polo passivo.
Não se nega que o
Ao lado da coisa julgada, a legitimidade é o
Bem se percebe que o tema é instigante e controverso; a complexidade aumenta quando se desloca a análise para o polo passivo.
Contudo, rememore-se que o litisconsórcio multitudinário ou numeroso “não abrange categorias ou grupos inteiros de pessoas, mas somente os sujeitos nominados que vieram ao litígio – e isso é que substancialmente deixa o litisconsórcio numeroso no campo da tutela individual. Além disso, a técnica processual é outra, com legitimidade também individual” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio. 3. ed. rev. atual. e ampl. Malheiros Ed., 1994. p. 349). Assim é que os sistemas processuais do mundo contemporâneo barram a formação de litisconsórcios muito numerosos sem grande afinidade entre as pretensões individuais. De tal modo, o sistema italiano, ao cuidar do litisconsórcio facultativo, permite ao juiz separar as demandas “se vi e istanza di tutte le parti, ovvero quando la continuazione della loro riunione ritarderebbe o renderebbe piú gravoso il processo, e puó rimettere al giudice inferiore le cause di sua competenza” (art. 103, segunda parte, do CPC itatiano). No mesmo sentido o Código Processual do Peru, ao afirmar que “Cuando el Juez considere que la acumulación afecte el Principio de Economía procesal, por razón de tiempo, gasto o esfuerzo humano, puede separar los procesos, los que deberán seguirse independientemente, ante sus Jueces originales” (art. 91 do CPC peruano).
Ademais, importante ressaltar que a ação coletiva passiva deveria ser proposta contra grupo, categoria ou classe. No caso das possessórias, resulta claro do § 1º do art. 554 que não se trata de ação coletiva passiva, tanto é assim que se exige que a citação seja feita nos ocupantes que forem encontrados no local e por edital nos demais, e não na figura de um representante adequada da categoria.
E mais: quando o Código de Processo Civil menciona “litígio coletivo” (arts. 178 e 565), o faz no sentido de controvérsia multitudinária, e não necessariamente de demanda coletiva, a contar com um representante adequado, quer no polo ativo, quer no polo passivo.
A distinção não é meramente acadêmica. Reflete-se no devido processo legal. Veja-se que na
Leciona a doutrina que quanto mais extenso o rol de legitimados, maior a necessidade do requisito da representatividade adequada, e que quanto maior for a extensão a terceiros do julgado coletivo, maior a necessidade de controle (GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências em matéria de legitimação e coisa julgada. In: Direito Processual Comparado, XIII World Congress of procedural Law, Salvador-Bahia, 16-22 set. 2007. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 522).
Cabe trazer à colação dois julgados acerca da matéria; o primeiro do Superior Tribunal de Justiça e o segundo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que bem analisam a questão da representatividade adequada nas ações propostas em face de diversas pessoas:
“A discussão quanto à admissibilidade de processos coletivos passivos, porém, é bastante nova. Nos diversos projetos de Códigos Coletivos existentes, há divergência quanto ao assunto. Como bem observa FREDIE DIDIER e HERMES ZANETI JR. (Curso de Direito Processual Civil, Vol. 4, 4º edição, pág. 401), entre os diversos projetos atualmente existentes para a elaboração de um Código para Processos Coletivos, há a previsão irrestrita de ações coletivas passivas no Código-Modelo para Ibero-América (arts. 32 e ss.), pelo Código de Processo Civil Coletivo elaborado por Antônio Guidi (art. 28) e pelo Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, apresentado no âmbito dos programas de pós-graduação da UERJ e UNESA (arts. 42 a 44). O Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos elaborado por Ada Pellegrini Grinover, por sua vez, prevê esta modalidade de ação apenas para a tutela de direito difusos ou coletivos, em sentido estrito, excluindo os direitos individuais homogêneos. Trata-se, portanto, de questão que ainda suscitará muito debate, no futuro.
No estado atual da legislação quanto a processos coletivos, porém, notadamente considerando-se a regra quanto à coisa julgada formada nas ações em que se discutam direitos individuais homogêneos, não é possível admitir a apresentação, pelo réu, de pedido de declaração incidental” (REsp 1051302/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/03/2010, DJe 28/04/2010).
(...)
“Muito embora seja possível a propositura de ação em face de uma coletividade, com o objetivo de proteger interesses difusos, é certo que esta deve possuir um representante determinado e adequado, para que se afigure uma hipótese de legitimação extraordinária, em que o representante agirá em nome próprio na defesa de interesses de terceiros. No caso em tela, a ação foi ajuizada em face de todos os proprietários de imóveis desabitados e fechados, abandonados ou com acesso não permitido pelo morador em todo o Município. Trata-se, na acertada visão da Douta Procuradoria de Justiça de ‘... uma coletividade incerta e indeterminada, sem vínculos fáticos e jurídicos concretos entre seus integrantes (suposta comunhão de possuidores e proprietários de imóveis abandonados e desocupados), como neste caso, que não possui obviamente representantes legítimos.’. Ante a falta de indicação de um representante adequado para a coletividade colocada no polo passivo é que se deve considerar a petição inicial inepta e a ação carente” (Relator(a): Ponte Neto; Comarca: São José do Rio Pardo; Órgão julgador: 8ª Câmara de Direito Público; Data do julgamento: 22/07/2015; Data de registro: 22/07/2015).
Por último – mas não menos importante -, as ações
possessórias não integram o microssistema processual coletivo. Embora as
Ademais, as atribuições
especializadas dos órgãos de execução na esfera dos interesses difusos, dos
interesses coletivos e dos interesses individuais homogêneos são tratadas de
forma explícita.
Nesses casos, pelo que
ordinariamente se observa, os atos que fixam a divisão de serviço concedem a determinado
cargo de certa Promotoria de Justiça a missão de atuar em defesa de interesse
especificado (meio ambiente, consumidor, patrimônio público, etc.). E as regras
de experiência demonstram, do mesmo modo, que essa atuação, assim fixada, diz
respeito às ações civis públicas propostas pelo Ministério Público, como também
à atuação, como fiscal da lei, nas ações civis públicas relacionadas àquela
matéria propostas por outros legitimados.
Os demais casos não
enquadrados nessas hipóteses (ou seja, de propositura de ações coletivas e
atuação como fiscal da lei nas ações civis públicas propostas por outros
legitimados), que dizem respeito, portanto, à atuação ministerial como custos legis em outros processos, são
atribuições a respeito das quais os atos regulamentares de divisão de serviços,
em regra, não tratam especificamente. Esses outros casos normalmente se
enquadram sob a designação geral da função de oficiar em “feitos cíveis”.
Essa exegese, calcada na
análise sistemática e finalista, é suficiente para justificar a conclusão no
sentido de que a fixação da atribuição do suscitante, em ato normativo, para Habitação e Urbanismo, abrange as
ações civis públicas distribuídas, mas não a atuação como custos legis em ações possessórias.
Como se vê, a atribuição
especializada está relacionada à atuação do Promotor de Justiça como autor de
ações coletivas ou como fiscal da ordem jurídica em ações civis públicas.
No caso em tela, não se
trata de ação civil pública ou de ação coletiva, de tal forma que cabe ao
suscitante oficiar no feito.
Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao suscitante, 2º Promotor de Justiça Cível da Capital, prosseguir na ação, em seus ulteriores termos.
Publique-se.
Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.
Providencie-se a remessa
de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela
Coletiva.
São Paulo, 18 de janeiro de 2017.
Giapaolo
Poggio Smanio
Procurador-Geral
de Justiça
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