Conflito de Atribuições - Cível

Protocolado nº18.199/09

(IC nº48/08)

Suscitante: Promotora de Justiça da Infância e da Juventude de Araraquara

Suscitado: Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão de Araraquara

Ementa:

1)Conflito negativo de atribuições. Promotora de Justiça da Infância e da Juventude (suscitante) e Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão (suscitado), ambos de Araraquara.

2)Inquérito civil. Notícia de descumprimento de sentença proferida em ação civil pública, com a possibilidade de danos ao patrimônio público e ocorrência de atos de improbidade administrativa.

3)Hipótese diversa daquela em que há identificação da prática de atos de improbidade administrativa no curso da investigação relacionada a interesses metaindividuais de diversa área de atuação.

4)Procedimento instaurado exclusivamente para aferir a ocorrência de ato de improbidade administrativa e lesão ao erário.

5)Conflito conhecido e dirimido. Determinação para que o suscitado prossiga na investigação.

Vistos.

1)Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante a DD. Promotora de Justiça da Infância e da Juventude, e como suscitado o DD. Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão, ambos da comarca de Araraquara.

O inquérito civil foi instaurado com cópias dos autos da ação civil pública nº 1106/04, que tramitou perante a Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Araraquara.

No feito de origem, a Municipalidade foi condenada ao cumprimento de obrigações de fazer, consistente em “no prazo de trinta dias matricular as crianças de Araraquara, relacionadas nestes autos, (...) em creches ou pré-escolas, de acordo com sua faixa etária, sob pena de pagamento de multa diária (...)”.

Em grau de recurso, a condenação foi mantida pela C. Câmara Especial do E. Tribunal de Justiça de São Paulo (Apelação Cível 140.584-0/6-00, rel. José Cardinale, j. 11.12.2006).

Como após o trânsito em julgado da condenação continuou se verificando a omissão do Poder Público Municipal quanto ao cumprimento do julgado, a suscitante, DD. Promotora de Justiça da Infância e da Juventude, postulou a extração de cópias do feito e encaminhamento ao suscitado, DD. Promotor de Justiça da Direitos Constitucionais do Cidadão, para análise quanto à eventual ocorrência de atos de improbidade administrativa praticados pelo Senhor Prefeito Municipal e pela Secretária Municipal de Educação.

Após a instauração do inquérito civil e realização de diligências, o suscitado determinou a remessa dos autos à Promotoria da Infância e da Juventude, aduzindo que: (a) a investigação do ato de improbidade pode ser realizada pela Promotoria da Infância e da Juventude; (b) encontra-se esta última preventa, pois além da questão da ocorrência ou não de improbidade, deve-se investigar a formulação de políticas públicas relacionadas à Infância e à Juventude (fls.215/220).

A suscitante, por sua vez, ao dar ensejo ao conflito negativo, afirmou que: (a) a investigação, neste inquérito civil, não tem relação alguma com as políticas públicas na área da Infância e da Juventude, pois já há condenação do Município, transitada em julgado, determinando o fornecimento de vagas para crianças em creches e pré-escolas; (b) a extração de cópias e remessa à Promotoria dos Direitos Constitucionais do Cidadão teve como razão a apuração do dano ao erário, decorrente da incidência da multa fixada na ação civil pública de origem, em virtude do não cumprimento do que ficou ali decidido.

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196).

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

Essa idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central noticiado no inquérito é a notícia de possibilidade de ocorrência de dano ao erário e ato de improbidade, provocado pela incidência da multa prevista no feito de origem, em razão do descumprimento da imposição à Municipalidade da obrigação de realização de matrículas em creches e pré-escolas.

Note-se que embora na ação civil pública proposta originariamente perante a Vara da Infância e da Juventude tenha ocorrido, efetivamente, debate em torno do empenho da Municipalidade no atendimento a direitos fundamentais da infância e políticas públicas nesse setor, no presente inquérito civil a discussão é absolutamente distinta.

O objeto da investigação, aqui, resume-se à verificação sobre a configuração ou não do ato de improbidade administrativa, inclusive com lesão ao erário, em função do não cumprimento de decisão judicial e incidência de multa. Trata-se, em tese, de hipótese de omissão do administrador público que ocasiona perda indevida de recursos, dada a multa cominatória prevista em sentença.

Dessa forma, não se mostra correto, com a devida vênia, o entendimento do suscitado, no sentido de que a Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude estaria preventa para a apreciação do caso.

Efetivamente, em outros conflitos de atribuição, desde que presentes interesses afetos a mais de uma área de atuação, tem sido adotado como critério de solução a prevenção, prevista no art. 114 §3º in fine da Lei Complementar nº 734/93.

Nessas circunstâncias tem preponderado o entendimento pelo qual sendo os interesses metaindividuais de abrangência equivalente, o órgão que primeiro conheceu do fato deve prosseguir na investigação.

Ademais, reiteradamente tem sido afirmado em decisões proferidas em outros conflitos que não se mostra adequado o raciocínio no sentido de que, em todo e qualquer caso, havendo possibilidade de dedução de pretensão para reparação de danos ao erário, ou ainda imputação de prática de atos de improbidade administrativa, deva a investigação ser conduzida sempre pelo membro do parquet que atua como Promotor dos Direitos Constitucionais do Cidadão, bem como que a ação pertinente, para a aplicação das sanções previstas na Lei nº 8429/92, seja exclusivamente por ele proposta.

Nesse sentido, nada impede que a investigação seja realizada em torno da lesão a determinado interesse difuso (v.g. ambiental, urbanístico, etc.) e a demanda judicial seja proposta, cumulando pedidos relacionados àquele interesse coletivo específico com a pretensão de aplicação de sanções relacionadas aos atos de improbidade administrativa e reparação de danos ao erário.

Diga-se mais: caso fossem propostas duas ações distintas relacionadas ao mesmo fato, uma com pretensão à tutela de específico interesse coletivo (v.g. meio ambiente, urbanismo, consumidor) e outra colimando apenas a aplicação das sanções decorrentes do ato de improbidade, provavelmente, em função da conexão de causas, dar-se-ia a reunião de feitos para instrução e julgamento conjunto (art.105 do CPC).

Mas a hipótese destes autos é distinta.

A ação civil pública proposta originariamente pela Promotoria da Infância e da Juventude de Araraquara tinha como objeto, essencialmente, compelir o Poder Público a disponibilizar vagas em creches e pré-escolas.

Já a presente investigação, reitere-se uma vez mais, cinge-se à ocorrência de improbidade e lesão ao erário, decorrentes de omissão no cumprimento de obrigação fixada judicialmente.

Dessa forma, imaginando, por hipótese, que ao final da investigação seja mesmo necessária a propositura de demanda judicial, a pretensão deduzida em juízo certamente limitar-se-á ao pedido de reparação do dano causado ao erário e aplicação de sanções pela prática de atos de improbidade administrativa.

A matéria é estritamente afeta, com a devida vênia, às atribuições do suscitado, DD. Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão de Araraquara, não se aplicando ao caso, em síntese, o critério da prevenção.

3)Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art.115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão de Araraquara, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 2 de março de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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