Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 18.403/2012

(Ref. SIS MP 14.0341.0000050/09-8)

Suscitante: 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (Saúde Pública)

Suscitado: 5º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (Consumidor)

 

Ementa:

1)      Conflito negativo de atribuições. 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (Saúde Pública - suscitante) e 5º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (Consumidor - suscitado).

2)      Inquérito civil. Instauração, a partir de representação, para apuração de falhas nos serviços prestados pelo “Hospital Santana”, estabelecimento de saúde particular. Reclamação quanto a violações de normas de vigilância sanitária, insuficiência de profissionais, demora e mau atendimento dos pacientes.

3)      Existência de atribuições da área do Consumidor, diante da presença de relação de consumo (arts. 2º e 3º do CDC). Existência concomitante de atribuições da área da Saúde Pública (art. 442, I, do Manual de Atuação Funcional). Precedente (Pt. 91.573/2011).

4)      Aplicação da prevenção. Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitado (5º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes - Consumidor) prosseguir na investigação.

 

 

1)  Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (Saúde Pública), e como suscitado o DD. 5º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (Consumidor), relativamente ao feito em epígrafe (SIS MP 14.0341.0000050/09-8).

O presente inquérito civil foi instaurado pela Promotoria de Justiça do Consumidor de Mogi das Cruzes, nos termos da respectiva portaria, tendo em vista “informações sobre falhas nos serviços prestados pelo ‘Hospital Santana’, estabelecimento de saúde particular instalado neste Município, como: 1) violações de normas de vigilância sanitária, em especial com relação às más condições do ar-condicionado da UTI; 2) insuficiência de profissionais; 3) demora e falta de cortesia no atendimento”.

O suscitado, DD. 5º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (Consumidor), remeteu os autos ao suscitante, indicando, cf. manifestação de fls. 795/797, que: (a) a investigação diz respeito tanto à área da Saúde Pública como à área do Consumidor; (b) deverá prosseguir a investigação pela Promotoria de Saúde Pública, pois foi esta que recebeu inicialmente a representação.

O suscitante, DD. 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (Saúde Pública), manifestou-se, cf. fls. 805/809, pondo em destaque que: (a) embora inicialmente a representação tenha sido recebida pelo então 1º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes, o Inquérito Civil foi instaurado pela Promotoria do Consumidor; (b) o suscitado, Promotor de Justiça do Consumidor, está prevento para a investigação, que tramita sob sua responsabilidade desde o início, há quase dois anos.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na portaria de instauração, elaborada a partir de representação por parte de cidadão, motivou-se a instauração do Inquérito Civil em razão de “informações sobre falhas nos serviços prestados pelo ‘Hospital Santana’, estabelecimento de saúde particular instalado neste Município, como: 1) violações de normas de vigilância sanitária, em especial com relação às más condições do ar-condicionado da UTI; 2) insuficiência de profissionais; 3) demora e falta de cortesia no atendimento”.

O Manual de Atuação Funcional, aprovado pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, no seu art. 442, I, tratando de atribuições das Promotorias de Justiça de Direitos Humanos quanto à Saúde Pública estabelece o que segue:

“(...)

Art. 442. Zelar pela prevenção e reparação dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dos usuários e consumidores dos serviços e ações de saúde, relativamente:

I – à qualidade e eficiência dos serviços privados prestados pelos hospitais, clínicas, laboratórios e estabelecimentos congêneres que coloquem em risco a saúde;

(...)”

A realidade, entretanto, às vezes oferece situações limítrofes em que é manifesta a dificuldade de identificar de modo claro o órgão revestido de atribuição para investigar determinados fatos, por estarem estes naquela zona de transição entre uma e outra área especializada, ou mesmo por afetarem, concomitantemente, mais de um segmento de especialização.

Guardando vênia quanto aos argumentos apresentados pela suscitante e pelo suscitado, tal é o caso dos autos.

Não há como negar, diante da representação e dos fatos até o momento apurados no presente feito, que a provocação ao MP teve por ensejo exigir boa qualidade no atendimento aos usuários do “Hospital Santana”. Nessa perspectiva encontram-se aspectos relacionados tanto à prestação de serviços propriamente dita (atendimento aos pacientes e familiares, condições dos quartos, etc.), como ainda aspectos em que a relevância maior está centrada na questão da Saúde Pública em si mesma considerada.

Em suma, estão em discussão questões associadas ao Direito do Consumidor, como, aliás, constou da portaria de instauração, que invocou expressamente a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (fls. 3).

Não é possível negar, contudo, que o quadro concreto configura hipótese em que se faz necessário o zelo pela qualidade e eficiência dos serviços privados prestados pelo hospital já referido, visto estar em risco, em decorrência do atendimento inadequado, a saúde dos usuários, o que invoca a incidência do art. 442, I, do Manual de Atuação Funcional.

Diante desse quadro, o critério para a solução do conflito no caso em exame é a prevenção.

Estão presentes, ao mesmo tempo, atribuições da Promotoria do Consumidor (prestação de serviços de saúde em que é possível identificar, ainda que de forma não escrita, a existência de relação contratual – não se trata de hospital público) e da Promotoria da Saúde Pública (investigação sobre a qualidade de serviço prestado por hospital, com risco para a saúde dos usuários).

O Inquérito foi instaurado pela Promotoria do Consumidor há quase dois anos e, configurada a prevenção, deve o órgão suscitado prosseguir na apuração.

Ressalte-se que em conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses supraindividuais, estando presentes fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção.

Até mesmo por analogia é possível chegar ao critério da prevenção.

Note-se que no processo coletivo a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art. 2º da Lei nº 7347/85.

Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do art. 2º da Lei da Ação Civil Pública indica a prevenção como critério de solução de dúvidas a respeito da competência.

Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p. 483/484, nota nº 6 ao art. 2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

Esse raciocínio é aplicável, analogicamente, para a solução de conflitos de atribuição entre órgãos administrativos.

Ademais, o critério da prevenção é aquele que melhor atende ao interesse geral relacionado à continuidade, à eficiência, e à eficácia da atividade ministerial, ao determinar o prosseguimento da investigação por parte do órgão que já diligenciou para a apuração dos fatos.

E no caso em exame mostra-se mais adequado esse critério, considerando que o Inquérito Civil foi efetivamente instaurado pela Promotoria do Consumidor, bem como nela, até então, instruído durante quase dois anos.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 5º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (Consumidor), a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 10 de fevereiro de 2012.

 

Walter Paulo Sabella

Procurador-Geral de Justiça

Em exercício

rbl