Conflito de Atribuições - Cível

Protocolado nº20.210/09

(IC nº95/08)

Suscitante: Promotor de Justiça da Cidadania de Araraquara

Suscitado: Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo de Araraquara

Ementa:

1)Conflito negativo de atribuições. Promotor de Justiça da Cidadania (suscitante) e Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo (suscitado), ambos de Araraquara.

2)Inquérito civil. Instauração decorrente de representação. Notícia de desafetação de áreas institucionais de loteamentos, com possibilidade de danos ao patrimônio público e ocorrência de atos de improbidade administrativa.

3)Eventualidade de identificação da prática de atos de improbidade administrativa no curso da investigação.

4)Inexistência de exclusividade, nessa hipótese, de atuação do Promotor da Cidadania. Possibilidade, em caso de propositura de ação civil, de cumulação de pretensões relativas ao interesse urbanístico, com pedido de aplicação de sanções pela prática de atos de improbidade.

5)Equivalência dos interesses tutelados. Solução do conflito pelo critério da prevenção.

6)Conflito conhecido e dirimido. Determinação para que o suscitado (prevento) prossiga na investigação.

 

Vistos.

1)Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. Promotor de Justiça da Cidadania, e como suscitado o DD. Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, ambos da comarca de Araraquara.

O inquérito civil foi instaurado por força de representação apresentada à Promotoria de Justiça de Araraquara, na qual foi noticiada a desafetação de bens de uso comum do povo, consistentes em áreas institucionais de loteamentos, mediante projeto de lei apresentado à Câmara pelo Senhor Prefeito Municipal, objetivando posteriormente a sua alienação a entidade de direito privado, qual seja a CTA – Companhia Troleibus Araraquara, sociedade de economia mista, contrariando dispositivos legais, constitucionais, e o interesse público.

Após a instauração do inquérito civil pela Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, e realização de algumas diligências, foi determinada sua remessa à Promotoria da Cidadania, sob o fundamento de tratar-se de matéria “afeta à Promotoria de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão, pois que versa sobre eventuais irregularidades consistentes na doação de bem público a entidade de direito privado, além da questão referente à prática de ato de improbidade administrativa (ausência de licitação).” (fls.67).

Ao suscitar o conflito negativo, o suscitante anotou que: (a) o principal aspecto a ser investigado diz respeito à ordem urbanística, e apenas secundariamente eventual ocorrência de dano ao patrimônio público e ato de improbidade administrativa; (b) nada impede que seja postulada aplicação de sanção por ato de improbidade pelo suscitado, no exercício das funções afetas à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo; (c) pelo critério da prevenção, dada a equivalência dos interesses tutelados pelos órgãos em conflito, deve oficiar no feito aquele que primeiro tomou conhecimento dos fatos (fls.71/76).

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196).

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

Esta idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2ºvol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central noticiado na representação é a notícia de irregularidades na desafetação de áreas institucionais de loteamento para fins de alienação a entidade privada (sociedade de economia mista).

A discussão envolverá a análise quanto à preservação ou não da ordem urbanística. Além disso, serão discutidos, eventualmente, aspectos atinentes à própria legitimidade da desafetação, e, talvez, o reconhecimento da ocorrência de danos ao patrimônio público, com a possibilidade de imposição de sanções por atos de improbidade administrativa.

Com o devido respeito a pensamento diverso, não parece correto o raciocínio no sentido de que, em todo e qualquer caso, havendo possibilidade de dedução de pretensão para reparação de danos ao erário, ou ainda imputação de prática de atos de improbidade administrativa, deva a investigação ser conduzida pelo membro do parquet que atua como Promotor da Cidadania, bem como que a ação pertinente, para a aplicação das sanções previstas na Lei nº8429/92, seja exclusivamente por ele proposta.

Nada impedirá, nesse contexto, que o suscitado investigue a questão do ponto de vista urbanístico, e posteriormente proponha demanda judicial, cumulando pedidos de providências relacionadas à proteção daquele interesse coletivo específico com a pretensão de aplicação de sanções relacionadas aos atos de improbidade administrativa e reparação de danos ao erário.

Diga-se mais: caso fossem propostas duas ações distintas relacionadas ao mesmo fato, uma com pretensão à tutela de específico interesse coletivo (no caso, interesse urbanístico) e outra colimando apenas a aplicação das sanções decorrentes do ato de improbidade, provavelmente, em função da conexão de causas, dar-se-ia a reunião de feitos para instrução e julgamento conjunto (art.105 do CPC).

De outro lado, é oportuno anotar que se afigura extremamente comum que, em determinada investigação, verifique-se a existência de mais de um interesse, afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público. Isso decorre da própria complexidade dos interesses coletivos, cujo dinamismo faz com que nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.

Em outras palavras, é corriqueiro que haja, em certo caso, sobreposição de matérias atinentes a diferentes áreas de atuação.

A Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo pelo interesse público mais abrangente (art.114 §2º); (b) tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art.114 §3º); e (c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art.114 §3º).

Diante dos três critérios indicados em lei, acima referidos, cumpre examinar qual deles serviria ao caso versado nestes autos.

Tratando do tema, Hugo Nigro Mazzilli anota que “se houver mais de uma causa bastante para a intervenção do Ministério Público no feito, nele funcionará o membro da instituição incumbido do zelo do interesse público mais abrangente”, esclarecendo que para tais fins, a análise da abrangência deve ser feita no sentido do individual para o supra-individual (Regime Jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.421/422).

Assim, pondere-se, como esclarecimento, que em casos envolvendo conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses metaindividuais, em que desde logo fique demonstrada, de forma concreta, a presença de fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção (art.114 §3º da Lei Complementar Estadual nº734/93).

Aliás, como reforço a tal raciocínio, valeria trazer à colação também a observação de que no processo coletivo, a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art.2º da Lei nº7347/85. Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do mencionado art.2º da Lei da Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito da competência: a prevenção.

Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p.483/484, nota n.6 ao art.2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

Anote-se, ademais, que o critério da prevenção, quando o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com atribuições para a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende ao interesse geral, à continuidade, à eficiência, e à eficácia da atividade ministerial.

Deste modo, se no caso concreto há interesses relacionados a mais de uma área de atuação em defesa de interesses supra-individuais, ostentando abrangência equivalente, o órgão ministerial que primeiro tomou contato com o caso (que já vinha conduzindo a apuração) deve prosseguir na investigação, adotando eventualmente as providências judiciais cabíveis.

3)Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art.115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo de Araraquara, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 18 de fevereiro de 2009.

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

rbl