Conflito de Atribuições – Cível

 

 

 

Protocolado nº 26.924/2011

Suscitante: 4º Promotor de Justiça de Valinhos (Habitação e Urbanismo)

Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Valinhos (Cidadania)

 

 

 

 

1)     Conflito negativo de atribuições. 4º Promotor de Justiça de Valinhos (Habitação e Urbanismo - suscitante) e 2º Promotor de Justiça de Valinhos (Cidadania – suscitado).

2)     Representação. Notícia de irregularidades relativamente à utilização de bens públicos municipais. Uso indevido de clubes públicos e ilícitos praticados na esfera administrativa com plausibilidade de dano ao erário.

3)     Aplicação do critério da prevenção (art. 114, § 3º, da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

4)     Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento do 2º Promotor de Justiça de Valinhos (suscitado).

 

 

 

Vistos.

1)   Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 4º Promotor de Justiça de Valinhos (Habitação e Urbanismo) e como suscitado o DD. 2º Promotor de Justiça de Valinhos (Cidadania).

Foi endereçada representação à Promotoria de Justiça de Valinhos, noticiando que foram construídos, com utilização de recursos públicos, diversos clubes esportivos no Município de Valinhos para fins de uso pela população local. Entretanto, teria ocorrido desvio quanto à finalidade original de utilização desses clubes, visto que passaram a ser dirigidos por “apadrinhados políticos”, não sendo mais amplamente acessíveis para a comunidade em geral.

Em outras palavras, a representação noticia que foram utilizados recursos públicos na construção e manutenção de clubes que, embora públicos, não mais permitem o acesso de todos os munícipes e são utilizados como propriedade particular, havendo inclusive a exploração comercial de certos espaços (restaurantes, lanchonetes, etc.) de forma irregular e sem qualquer contrapartida em relação ao Poder Público (fls. 3/7).

Distribuído o expediente ao suscitado, DD 2º Promotor de Justiça de Valinhos (Cidadania), foram determinadas diligências iniciais (fls.27), sendo certo que, posteriormente, referido órgão ministerial declinou de dar seguimento à investigação, mediante manifestação fundamentada nos termos a seguir transcritos:

“(...)

Embora tenha determinado algumas providências (fls. 27), verifico que a representação noticia o uso indevido de bens públicos por particulares, matéria essa afeta à área de habitação e urbanismo, cuja atribuição é do 4º Promotor de Justiça de Valinhos.

(...)”

Ao receber os autos, o DD. 4º Promotor de Justiça de Valinhos (Habitação e Urbanismo) suscitou o conflito, salientando, em síntese, que o suscitado está prevento para a investigação, na medida em que os fatos noticiados na representação repercutem tanto na esfera da Habitação e Urbanismo, como ainda na esfera da defesa do Patrimônio Público (fls. 63/67).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço.

Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação ou ação na esfera cível deve levar em consideração os dados do caso concreto.

A representação que motivou a instauração da investigação noticia, com igual importância, fatos que repercutem na esfera da má utilização de bens públicos, bem como ilícitos praticados na esfera administrativa com plausibilidade para a alegação de dano ao erário.

Especificamente, segundo a representação os clubes municipais foram construídos em espaços públicos, com recursos públicos, mas são explorados por particulares de modo irregular, sem qualquer contrapartida para a Municipalidade, sem realização de licitação, etc.

É oportuno anotar que se afigura extremamente comum que, em determinada investigação, verifique-se a existência de mais de um interesse afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público. Isso decorre da própria complexidade dos interesses coletivos, cujo dinamismo faz com que nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.

Em outras palavras, é corriqueiro que haja, em certo caso, sobreposição de matérias atinentes a diferentes áreas de atuação.

A Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº 734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo pelo interesse público mais abrangente (art. 114, § 2º); (b) tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art. 114, § 3º); e (c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art. 114, § 3º).

Diante dos três critérios indicados em lei, acima referidos, cumpre examinar qual deles serviria ao caso versado nestes autos.

Tratando do tema, Hugo Nigro Mazzilli anota que “se houver mais de uma causa bastante para a intervenção do Ministério Público no feito, nele funcionará o membro da instituição incumbido do zelo do interesse público mais abrangente”, esclarecendo que para tais fins, a análise da abrangência deve ser feita no sentido do individual para o supra-individual (Regime Jurídico do Ministério Público, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 421/422).

Assim, pondere-se que em casos envolvendo conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses metaindividuais, em que desde logo fique demonstrada, de forma concreta, a presença de fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção (art. 114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

Aliás, como reforço a tal raciocínio, valeria trazer à colação também a observação de que no processo coletivo, a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art. 2º da Lei nº 7347/85. Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do mencionado art. 2º da Lei da Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito da competência: a prevenção.

Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p. 483/484, nota nº 6 ao art. 2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

Anote-se, ademais, que o critério da prevenção, quando o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com atribuições para a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende ao interesse geral, à continuidade, à eficiência, e à eficácia da atividade ministerial.

Deste modo, havendo no caso concreto interesses relacionados a mais de uma área de atuação em questões supra-individuais que têm abrangência equivalente, o órgão ministerial que iniciou a investigação e determinou diligências deve nela prosseguir.

Por último e não menos importante, diversa solução poderia ser imaginada para o presente conflito se a representação noticiasse a má utilização de bens públicos de uso comum, com meramente contingencial repercussão em relação ao erário. No caso em exame, a provocação endereçada ao Ministério Público é enfática no que diz respeito à questão do plausível dano ao erário.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, 2º Promotor de Justiça de Valinhos (Cidadania) a atribuição para oficiar no feito.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 28 de fevereiro de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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