Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado SEI nº 29.0001.0021519.2019-22 (Representação Civil n. MP 43.0695.0000184/2019-8)

Suscitante: 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital

Suscitado: 4º Promotor de Justiça do patrimônio Público e Social

 

 

 

 

Ementa:

1.    Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital; suscitado: 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social. Representação civil que visa apurar irregularidades no regramento para utilização do Bilhete Único por usuários do perfil “Trabalhador Beneficiário de Vale-Transporte”, no sistema de transporte público municipal.

2.    Sendo assegurado ao consumidor a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral (art. 22, CDC), eventuais irregularidades na prestação do serviço de transporte público municipal (número de veículos e intervalos nas linhas), bem como desproporção ou desigualdade na tarifa, competem à Promotoria de Justiça do Consumidor.

3.    Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitante prosseguir na investigação.

 

 

Vistos,

 

Tratam estes autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital e como suscitado o 4º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital.

O procedimento foi instaurado a partir de representação encaminhada ao Ministério Público, na qual usuário do sistema público de transportes contesta as novas regras para utilização do denominado “Bilhete Único”, diante da redução do número de integrações passíveis de utilização, de quatro para duas, conforme estabelecido no decreto municipal nº 58.639/19. A reclamação também envolve o desrespeito aos intervalos fixados entre as linhas de ônibus, fatos esses que estariam causando grande oneração aos usuários do serviço.

Encaminhado o procedimento ao suscitado, este declinou de sua atuação alegando, em síntese, que não há menção a eventuais desvios administrativos, prática de atos de improbidade ou prejuízo ao erário do Município de São Paulo, de forma que tratando-se de questão relacionada à ordem urbanística, a atuação competiria ao Promotor de Justiça da Habitação e Urbanismo.

Não obstante encaminhada a representação à Promotoria de Justiça da Habitação e Urbanismo, houve determinação para que aquela fosse enviada à Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital, em razão da matéria (relação de consumo).

Distribuída aa 5º Promotor de Justiça do Consumidor, por ele foi suscitado conflito negativo de atribuições. O suscitante afirma que a análise da situação retratada não se insere dentre as atribuições da Promotoria de Justiça do Consumidor, porquanto muito embora haja relação de consumo no que toca à relação transportador/passageiro, no caso concreto haveria análise de questão mais complexaO objeto da investigação residiria na suposta lesão a direito de determinada categoria de cidadãos (trabalhadores), ocasionada por ação do Poder Executivo Municipal, com amparo em ato normativo supostamente editado com vícios formais e materiais.

Outro fundamento a afastar a existência de relação de consumo no presente caso, é o de que o efeito patrimonial gerado pela modificação impactaria em um primeiro momento o empregador, adquirente do vale-transporte. Posteriormente, em efeito cascata, ocorreriam consequências para o trabalhador, quando a viabilidade de sua contratação vier a ser colocada em dúvida pelo patrão, em razão dos custos decorrentes do deslocamento de sua casa para o trabalho.

Ao final, alega que aparentemente a matéria em análise é de maior amplitude do que “simples” restrição a direito do usuário de transporte público, pois haveria que se apurar se eventualmente a modificação introduzida, em munícipio de dimensões gigantescas como São Paulo, vem a ferir o sistema previsto pela lei 7.418/85, instituidor de benefício (vale-transporte) já consagrado, de titularidade do trabalhador.

Por essas razões, não vislumbra atribuição da Promotoria de Justiça do Consumidor, compreendendo que a investigação deve ser realizada pelas Promotorias de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital.

É o relato do essencial.

Está configurado, no caso, o conflito de atribuições.

Por força dos arts. 2º e 3º do CDC, qualifica-se como consumidor aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço como consumidor final; enquanto a qualidade de fornecedor deve ser identificada na situação daquele que desenvolve atividades produtivas, comerciais e de prestação de serviços, nas diversas modalidades indicadas exemplificativamente na Lei nº 8.078/90. 

Ao tratar da delimitação da ideia de serviço, o § 2º do art. 3º do CDC, utilizando definição propositalmente vaga, que pode ser assimilada à hipótese de conceito jurídico indeterminado, afirma que “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.

Não há dúvidas de que não se aplica o regramento protetivo do consumidor quando o serviço público é ofertado uti universi, já que a relação de consumo estaria atrelada à remuneração (direta ou indireta) dos serviços, o que evidentemente afastaria sua incidência no caso dos serviços públicos gratuitos, ofertados à população sem contraprestação e remunerados por meio de tributos.

Porém, quando existente relação contratual, de rigor a caracterização de relação de consumo, como ocorre nos serviços públicos de fornecimento de energia elétrica, telefonia, transporte público, entre outros. Nesse sentido, confira-se a orientação do STJ:

“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXCEÇÃO DE COMPETÊNCIA. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE REMUNERAÇÃO. RELAÇÃO DE CONSUMO NÃO-CONFIGURADA. DESPROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL.

1. Hipótese de discussão do foro competente para processar e julgar ação indenizatória proposta contra o Estado, em face de morte causada por prestação de serviços médicos em hospital público, sob a alegação de existência de relação de consumo.

2. O conceito de "serviço" previsto na legislação consumerista exige para a sua configuração, necessariamente, que a atividade seja prestada mediante remuneração (art. 3º, § 2º, do CDC).

3. Portanto, no caso dos autos, não se pode falar em prestação de serviço subordinada às regras previstas no Código de Defesa do Consumidor, pois inexistente qualquer forma de remuneração direta referente ao serviço de saúde prestado pelo hospital público, o qual pode ser classificado como uma atividade geral exercida pelo Estado à coletividade em cumprimento de garantia fundamental (art. 196 da CF).

4. Referido serviço, em face das próprias características, normalmente é prestado pelo Estado de maneira universal, o que impede a sua individualização, bem como a mensuração de remuneração específica, afastando a possibilidade da incidência das regras de competência contidas na legislação específica.

5. Recurso especial desprovido.”

(REsp 493.181/SP, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/12/2005, DJ 01/02/2006, p. 431).

Não deve haver dúvida de que a melhor exegese dos conceitos de consumidor, fornecedor, produto, serviço e relação de consumo, deve ser a mais aberta e abrangente possível, de sorte a estender a proteção que pode ser extraída da legislação específica, e não restringi-la indevidamente.

A amplitude da proteção decorrente do Código do Consumidor, que parte da premissa da largueza dos respectivos conceitos, encontra-se também assente na doutrina. José Geraldo Brito Filomeno, por exemplo, demonstra essa tendência exegética, ao formular considerações sobre o conceito de consumidor:

“(...) abstraídas todas as conotações de ordem filosófica, tão-somente econômica, psicológica ou sociológica, e concentrando-nos basicamente na acepção jurídica, vem a ser qualquer pessoa física que, isolada ou coletivamente, contrate para consumo final, em benefício próprio ou de outrem, a aquisição ou a locação de bens, bem como a prestação de serviços. Além disso, há que se equiparar o consumidor a coletividade que, potencialmente, esteja sujeita ou propensa à referida contratação. Caso contrário, se deixaria à própria sorte, por exemplo, público-alvo de campanhas publicitárias enganosas ou abusivas, ou então sujeito ao consumo de produtos ou serviços perigosos ou nocivos à sua saúde ou segurança” (Manual de Direitos do Consumidor, 9ªed., São Paulo, Atlas, 2007, p.23, g.n.).

No mesmo sentido, merecem conferência as considerações lançadas em Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto, 3ªed., Rio de Janeiro, Forense, 1993, p. 27 e seguintes.

Daí ser possível visualizar, desde logo, uma relação de consumo entre os consumidores identificados como usuários dos serviços de transporte.

Reforçando a ideia de estarmos frente a uma relação de consumo, dispõe o inc. X, do art. 6º, do CDC, declarando ser direito do consumidor “a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral”, no que complementado pelo art. 22 da mesma lei:

“Art. 22 – Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único – Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código”.

Em suma, no caso do Poder Público, são dois os critérios para se reconhecer a incidência do Código de Defesa do Consumidor: (a) a forma de pagamento da remuneração e (b) a natureza do serviço desempenhado.

No tocante à forma de pagamento, para que incida o Código de Defesa do Consumidor, o administrado deve efetuar diretamente o pagamento, estando excluídas todas as relações jurídicas em que ocorra o pagamento por intermédio de impostos ou taxa. Incidiria, contudo, a tutela consumerista quando houvesse por parte do administrado o pagamento de tarifa ou preço público.

Com efeito, “o Estado responde como fornecedor quando presta serviço mediante a cobrança de preço público. Destarte, todo serviço público prestado mediante custeamento por meio de tributo não está sujeito ao CDC” (Vidal Serrano Nunes Júnior e Antonio Carlos Alves Pinto Serrano, Manual de Direitos Difusos. Editora Verbatim: São Paulo, 2009, p. 214).

Assim, os serviços públicos quando prestados de forma divisível e específica, remunerados por tarifa, ficam vinculados ao regime protetivo do Código do Consumidor, sendo esse o caso do serviço público de transporte municipal.

Trazidas essas premissas ao caso concreto, verifica-se que o objeto da representação envolve suposta irregularidade na prestação desse serviço e prejuízo ao consumidor, tanto no aspecto relacionado à tarifa, bem como no aspecto relacionado ao número de veículos e intervalos entre linhas.

Com efeito, nos termos da representação, a modificação no número de integrações - de quatro para duas - para embarque no serviço de transporte coletivo público de passageiros na cidade de São Paulo, afetaria tão somente os consumidores usuários do “Bilhete Único” com perfil “Trabalhador Beneficiário de Vale Transporte”.

Alega-se na representação, assim como em outras anexadas aos autos, que a diminuição no número de integrações, aliada à diminuição do número de linhas e de veículos no sistema público de transporte, obrigaria esse usuário a fazer mais integrações e embarques, implicando no pagamento de mais passagens, o que afetaria o preço final da tarifa, além de estabelecer cobrança desproporcional e não isonômica em referência aos usuários do bilhete comum.

Havendo, portanto, alegação de ilegalidade no regramento que orienta a utilização do “Bilhete Único” para determinado perfil de usuário do sistema de transporte público urbano municipal, resta evidente que a atribuição para a adoção de eventuais providências é da Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital.

Destaque-se que as alegações de que a questão concreta tem elevado efeito patrimonial e que há violação ao sistema instituído pela Lei federal nº 7.418/85 (Vale-transporte) por meio de ato normativo eivado de inconstitucionalidade, não justificam o deslocamento do procedimento para a Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social, especialmente porque não há, até o momento, notícia da prática de ato de improbidade administrativa.

Além disso, eventual inconstitucionalidade no regramento municipal pode ser objeto de controle difuso no âmbito dos instrumentos que prestigiam a tutela dos interesses difusos lato sensu.

Dessa forma, cristalino que os fatos objeto da representação orbitam a relação de consumo e a adequada prestação do serviço público de transporte.

Sendo assim, forçoso concluir que a atribuição é da Promotoria de Justiça com atribuição na área do consumidor.

Face ao exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115, da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante, 5ª Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, a atribuição para oficiar nos autos.

Publique-se a ementa. Comuniquem-se os interessados. Remeta-se cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 25 de abril de 2019.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça