Conflito de Atribuições – Cível

 

 

Protocolado nº 29.933/18 (MP nº 36.0670.0001309/2018-4)

Suscitante: 11º Promotor de Justiça de Jundiaí (atribuição na área de Direitos Humanos - Saúde Pública)

Suscitado: 7º Promotor de Justiça de Jundiaí (atribuição na área de pessoa com deficiência)

 

 

Ementa:

1.    Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 11º Promotor de Justiça de Jundiaí (atribuição na área de Direitos Humanos - Saúde Pública). Suscitado: 7º Promotor de Justiça de Jundiaí (atribuição na área de pessoa com deficiência).

2.    Representação na qual se noticia que pessoa com retardo mental moderado não estaria recebendo atenção permanente.

3. A Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência (ratificada pelo Decreto Legislativo nº 186/08 e promulgada pelo Decreto nº 6.949/09) e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/15, art. 2º) promoveram a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com deficiência, como categoria diversa da deficiência intelectual.

4.  À luz da nova legislação, a definição de pessoa com deficiência não é estabelecida sob o ponto de vista exclusivo do impedimento (físico, mental, intelectual ou sensorial), mas sim pela existência de dificuldade, de longo prazo, que a impeça de se relacionar com o ambiente no qual se encontre.

5.   Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao 7º Promotor de Justiça de Jundiaí prosseguir na investigação.

 

 

Vistos,

 

 

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 11º Promotor de Justiça de Jundiaí (atribuição na área de Direitos Humanos - Saúde Pública) e como suscitado o 7º Promotor de Justiça de Jundiaí (atribuição na área de pessoa com deficiência), em face representação noticiando que Sônia Aparecida de Carvalho apresentaria retardo mental moderado, necessitando de atenção permanente, sendo certo que os familiares teriam falecido, restando único familiar sem condições de promover os cuidados de Sônia.

Ao receber a representação, o 7º Promotor de Justiça de Jundiaí, com atribuição na área de pessoa com deficiência, determinou o encaminhamento ao 11º Promotor de Justiça de Jundiaí, com atribuição na área de Direitos Humanos - Saúde Pública, por entender que se trata de pedido de providências relacionado com a área da saúde pública (fls. 03).

O 11º Promotor de Justiça de Jundiaí, com atribuição na área de Direitos Humanos - Saúde Pública, ao receber os autos, suscitou o presente conflito negativo de atribuições, afirmando a Sra. Sônia seria portadora de retardo mental moderado, hábil a caracterizar deficiência intelectual, e não transtorno ou doença mental, que seriam da atribuição da Promotoria de Justiça da Saúde Pública.

É o relatório.

Segundo a representação, a Sra. Sônia, nascida em 20 de julho de 1962, apresentaria retardo mental moderado, necessitando de atenção permanente, inexistindo familiar apto prestar cuidados à mesma. Consta, ainda, informação no sentido de que Sônia apresentaria retardo do desenvolvimento neuropsicomotor desde a infância (fls. 08).

O conflito negativo de atribuições está configurado e, pois, comporta admissibilidade.

O Manual de Atuação Funcional, aprovado pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, tratando de atribuições das Promotorias de Justiça de Direitos Humanos quanto à Saúde Pública, estabelece o que segue:

“Art. 445. Zelar pelos direitos dos portadores de transtornos mentais de qualquer natureza, em tratamento ambulatorial ou em regime de internação, observando o redirecionamento do modelo de assistência em saúde mental promovido pela Lei nº 10.216/2001, em especial os direitos fundamentais enumerados no seu art. 2º, inclusive promovendo o controle das internações psiquiátricas.”

No tocante à atuação da defesa dos direitos da pessoa com deficiência, o mesmo Manual de Atuação Funcional reza:

Art. 439. Exercer a defesa dos direitos e garantias constitucionais da pessoa com deficiência, por meio de medidas administrativas e judiciais, competindo-lhe:

I – atender as pessoas com deficiência, em local acessível, valendo-se dos recursos adequados à integral compreensão da pretensão apresentada e à orientação do atendido, deslocando-se ao seu domicílio, quando necessário, para avaliar a extensão do seu problema, inteirar-se de suas necessidades e adotar a medida mais ajustada à sua solução, bem como proceder aos encaminhamentos necessários no sentido de resolvê-los.”

A questão demanda análise cuidadosa, sendo oportuna em virtude do advento da Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/15).

O conceito de pessoa com deficiência estabelecido pela Lei Brasileira de Inclusão é o mesmo estabelecido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007) e seu Protocolo Facultativo, que foram ratificados pelos Congresso Nacional através do Decreto Legislativo nº 186/08, nos termos do art. 5º, § 3º da Constituição Federal e promulgados pelo Decreto nº 6.949/09.

Uma das modificações relevantes estabelecidas pela nova lei envolveu a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com deficiência, como categoria diversa da deficiência intelectual, conceitos que até então se identificavam no regramento interno.

Com efeito, o Decreto n. 3.298/99, responsável por regulamentar a Lei n. 7.853/89, dispondo sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, estabelece o seguinte conceito de deficiência mental no inciso IV do art. 4º:

“IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

a)    comunicação;

b)    cuidado pessoal;

c) habilidades sociais;

d) utilização da comunidade;

d) utilização dos recursos da comunidade; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)

e) saúde e segurança;

f) habilidades acadêmicas;

g) lazer; e

h) trabalho;”

Desse modo, antes da Convenção Internacional e da Lei Brasileira de Inclusão, a “deficiência mental” identificava-se, por definição legal, com o atraso intelectual ou com o desenvolvimento mental incompleto, o que, hodiernamente, está inserido no conceito de “deficiência intelectual”.

As expressões até então se equivaliam e diziam respeito às pessoas com desenvolvimento mental intelectual inferior à média, razão pela qual era comum inserir nessa categoria (de “deficiente mental”) os autistas, por exemplo.

Porém, a Convenção e a LBI diferenciaram o impedimento (de longo prazo) de ordem intelectual do impedimento de ordem mental, admitindo que se enquadre no conceito de pessoa com deficiência tanto aquele que possua doença ou transtorno - tais como esquizofrenia, transtorno bipolar, etc - desde que o referido impedimento mental seja de longo prazo e, em interação com uma ou mais barreiras, obstrua sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas.

Destaque-se que o novo diploma legal, espelhado na Convenção Internacional, trouxe relevante inovação de ordem principiológica, porquanto passou a estabelecer que a definição de pessoa com deficiência não deve ser analisada sob o ponto de vista único do impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial, isto é, com base exclusivamente na falta de um membro ou sentido, na existência de doença ou transtorno mental ou de atraso intelectual, mas sim pela presença de barreiras ou dificuldades que a impeçam de se relacionar, de se integrar na sociedade, isto é, de se ver incluída socialmente.

Atualmente, portanto, a definição de quem é ou não pessoa com deficiência se mede pelo grau de dificuldade para a inclusão social e não pela limitação de ordem física, mental, intelectual ou sensorial que o indivíduo possui.

Por isso, restou absolutamente superada a linha conceitual que norteava a legislação anterior, notadamente o Decreto nº 3.298/99, no sentido de definir a pessoa com deficiência com base apenas na patologia ou na incapacidade que apresenta, elencada em lei.

O novo conceito de pessoa com deficiência não estabelece causas, tendo conteúdo amplo, ligado à relação da pessoa com a deficiência que a acomete.

Desse modo, pode-se afirmar que Decreto nº 3.298/99 só poderá ser adotado se for para beneficiar a inclusão e não para promover exclusão. Se sua utilização causar qualquer empecilho à implementação do conceito fixado pela Convenção, será tido como inconstitucional.

Deveras, a proteção trazida pela Convenção Internacional e, agora, pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15), passou a imprimir a marca da anormalidade não mais à pessoa e sim ao grau de dificuldade de sua interação com o ambiente na qual se encontre.

Assim, caso determinada pessoa não se encaixe em qualquer das causas elencadas no Decreto, não poderá de imediato ser desconsiderada como pessoa com deficiência, já que ela poderá se encaixar no conceito amplo da Convenção.

Além disso, a verificação da existência e do grau de dificuldade deverá ser feito em cada caso concreto. De fato, há pessoas que possuem algum tipo de impedimento de ordem física, mental, sensorial ou intelecutal, mas que não encontram nenhum tipo de barreira, problema de adaptação ou dificuldade de integração social, não podendo, por isso apenas, ser enquadradas no conceito de pessoa com deficiência.

Uma pessoa que possua doença mental, portanto, não pode, apenas por esse fato, ser enquadrada como pessoa com deficiência, sendo necessário analisar, no caso concreto, a existência ou não de dificuldade de interação com o ambiente em que vive, bem como as condições na qual se encontre.

Assim, aquele que tem esquisofrenia mas que esteja amparado pela família e submetido a tratamento médico eficaz e que, a despeito da doença mental, consegue ter uma vida produtiva, não pode, a priori, ser enquadrada como pessoa com deficiência.

O mesmo se diga com respeito à pessoa que possua adoecimento ou transtorno psíquico mais leve, como quadro depressivo ou ansioso, reativos de caráter mais psicológicos ou alcoolismos leves, casos que não geram por si só seu enquadramento como pessoa com deficiência.

Já aquele que seja acometido por doença ou transtorno mental e que não tenha suporte familiar, que não esteja recebendo tratamento médico eficiente e que encontre dificuldades de interação com o meio social em que vive, poderá, nessas condições ser considerado pessoa com deficiência.

Colocadas essas premissas, a solução dos conflitos de atribuição envolvendo as Promotorias da Pessoa com Deficiência e da Saúde Público deve ocorrer à luz da inovação legislativa promovida pela Convenção e pela Lei Brasileira de Inclusão.

De fato, a tutela daquele que possui transtorno ou doença mental de longo prazo e que, por conta disso, encontre dificuldades de participação plena social, em condições de igualdade com os demais, em determinado caso concreto, poderá ser enquadrado como pessoa com deficiência, exigindo, por consequência, a tomada de providências da Promotoria de Justiça da Pessoa com Deficiência.

No caso específico dos autos, ao que tudo indica, a paciente Sônia está sem acompanhamento familiar, identificando-se sinais de possíveis dificuldades de convivência e de interação social, e não de falha no atendimento de saúde pública.

A aparente situação de fragilidade detectada não aponta para eventual falha no sistema de saúde, mas sim de possíveis dificuldades de convivência social e de amparo, a serem melhores investigadas.

Assim, à luz dos elementos especificamente colhidos nesse procedimento, pode-se concluir que o feito deve seguir sob a presidência da Promotoria de Justiça com atribuição na área da pessoa com deficiência, a fim de se verificar a necessidade de eventuais medidas de proteção.

 

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 7º Promotor de Justiça de Jundiaí, com atribuição na área da Pessoa com Deficiência, a atribuição para oficiar no presente procedimento.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

                 São Paulo, 20 de abril de 2018.

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

 

 

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