Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 30.094/2012

(Ref. Ação Popular nº 565.01.2011.018000-9; nº de ordem 1549/2011; 5ª Vara Cível de São Caetano do Sul)

Suscitante: 7º Promotor de Justiça de São Caetano do Sul (Patrimônio Público)

Suscitada: 4º Promotor de Justiça de São Caetano do Sul (atribuição para oficiar em finais de feitos da 5ª Vara Cível)

Ementa:

1)      Conflito negativo de atribuições. 7º Promotor de Justiça de São Caetano do Sul (suscitante) e 4º Promotor de Justiça de São Caetano do Sul (suscitada).

2)      Ação popular. Ato de divisão de serviços da Promotoria de Justiça. Previsão de atribuição da suscitada para oficiar nos “feitos cíveis” da Vara Judicial. Atribuição da suscitante para a defesa do patrimônio público.

3)      Interpretação dos atos de divisão de serviços. Análise contextual e finalista. Princípio da especialidade. As atribuições especializadas são discriminadas expressamente. Atuação especializada, como regra, relacionada à atuação como autor ou fiscal em ações civis públicas. Analogia com o art. 295, VIII e IX da Lei Complementar nº 734/93, referente às Promotorias Especializadas da Capital. Atuação como fiscal da ordem jurídica, afora os casos de ação civil pública, que recai no órgão com atribuição para oficiar em “feitos cíveis”.

4)      Conflito conhecido e dirimido, cabendo à suscitada prosseguir no feito.

Vistos.

1)Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 7º Promotor de Justiça de São Caetano do Sul (defesa do patrimônio público), e como suscitada a ocupante do cargo de DD. 4º Promotor de Justiça de São Caetano do Sul (atribuição para oficiar em finais da 5ª Vara Cível), nos autos da Ação Popular nº 565.01.2011.018000-9 (nº de ordem 1549/2011; 5ª Vara Cível de São Caetano do Sul).

Na presente ação popular o autor postula a anulação de contrato para a aquisição de cestas básicas de alimentos, elaborado pela Municipalidade, sem que tenha sido realizada licitação pública, com possíveis prejuízos ao erário.

O feito foi inicialmente distribuído à suscitada, que, cf. manifestação de fls. 179, postulou ao Juízo da 5ª Vara Cível de São Caetano do Sul sua remessa à suscitante, por entender que “a questão dele objeto insere-se nas atribuições do 7º Promotor de Justiça da Comarca – defesa do patrimônio público – com atuação na esfera dos Direitos Constitucionais do Cidadão”.

A suscitante, por seu turno, lançou a manifestação de fls. 181/188, salientando, em síntese, que sua atribuição de defesa do patrimônio público se refere à propositura de ações civis públicas e a oficiar como fiscal da lei nestas ações, não alcançando a função de oficiar como fiscal em todos os feitos em que haja qualquer discussão a respeito da possibilidade de ocorrência de dano ao erário.

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço.

Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Na situação em exame, em suma, a solução do conflito residirá em definir se deve oficiar em determinada ação popular (na qual se debate a respeito da licitude de compra de cestas básicas sem licitação) o Promotor de Justiça que tem atribuições para a defesa do patrimônio público (suscitante) ou se deve atuar naquele feito, como fiscal da lei, o Promotor de Justiça que tem atribuição para oficiar nos feitos de natureza cível da 5ª Vara Cível de São Caetano do Sul (suscitada).

A divisão de atribuições da Promotoria de Justiça de São Caetano do Sul prevê que o 4º Promotor de Justiça oficiará em finais da 5ª Vara Cível, entre outras atividades, ao passo que o 7º Promotor de Justiça tem, entre outras, a atribuição relacionada à defesa do patrimônio público “inclusive as ações civis públicas distribuídas”.

A interpretação dos atos normativos que disciplinam a divisão de serviços no âmbito das Promotorias de Justiça deve ser feita de modo contextual e finalista. A análise literal da regra, embora seja um dos elementos para sua compreensão, não é suficiente, por si só, para o equacionamento das dúvidas e conflitos.

É correta a observação de que pode ser conveniente a atuação como fiscal da lei, em ação popular, do órgão de execução com atribuições especializadas para a defesa do patrimônio público. Isso, na medida tal solução pode render ensejo tanto ao conhecimento mais abrangente dos casos relacionados ao tema na comarca, como ainda complementar as investigações que realiza e suas iniciativas processuais.

Nada obstante, é preciso indagar se essa solução, possivelmente conveniente, encontra amparo no ato regulamentar de divisão de serviços.

Em regra as atribuições especializadas dos órgãos de execução na esfera dos interesses difusos, dos interesses coletivos e dos interesses individuais homogêneos, são tratadas de forma explícita.

Nesses casos, pelo que ordinariamente se observa os atos que fixam a divisão de serviço concedem a determinado cargo de certa Promotoria de Justiça função de defesa de interesse especifico (meio ambiente, consumidor, patrimônio público, etc.).

E as regras de experiência demonstram, do mesmo modo, que essa atuação, assim fixada, diz respeito às ações civis públicas propostas pelo Ministério Público, assim como também à atuação, como fiscal da lei, nas ações civis públicas relacionadas àquela matéria propostas por outros legitimados.

Os demais casos não enquadrados nessas hipóteses (atuação como fiscal da lei em outras ações em que aquela matéria específica seja debatida – meio ambiente, consumidor, patrimônio público, etc.), que dizem respeito, portanto, à atuação ministerial como custos legis em outros processos, são atribuições a respeito das quais os atos regulamentares de divisão de serviços, em regra, não tratam especificamente. Esses outros casos normalmente se enquadram sob a designação geral da função de oficiar em “feitos cíveis”.

Essa exegese, calcada na análise sistemática e finalista, seria suficiente para justificar a conclusão no sentido de que a fixação da atribuição da suscitante, em ato normativo, para a defesa do patrimônio público, não tendo mencionado expressamente a atuação como custos legis em ações populares, não engloba tal atribuição.

Em outros termos, sem que tenha sido especificada no ato de divisão de serviços, a atribuição para atuar em ações populares na condição de fiscal da ordem jurídica recai na regra geral, pela qual cabe ao órgão de execução vinculado à Vara Judicial manifestar-se nos “feitos cíveis” que nela tramitem.

Essa é uma manifestação, contrariu sensu, da regra de hermenêutica pela qual “Lex specialis derrogat generalis”: se não há previsão específica, prevalece a regra geral.

Em outras palavras, se a atribuição especializada está relacionada, como ensina a experiência comum, à atuação do Promotor de Justiça como autor de ações civis públicas, ou à atuação como fiscal da lei em ações civis públicas, a inclusão de outras atribuições dependeria de previsão expressa.

Do contrário, seria necessário concluir, por exemplo, que todo e qualquer processo (individual ou coletivo) em que determinada matéria (meio ambiente, consumidor, patrimônio público, etc.) é debatida, teria, necessariamente, que levar à intervenção como fiscal da lei por parte do Promotor de Justiça que tem atribuições especializadas na Comarca.

Ocioso se mostra frisar que solução dessa natureza levaria a um altíssimo grau de subjetivismo na definição das atribuições, e até mesmo a dificuldades de cunho operacional para a identificação do órgão ministerial a quem cabe atuar em certo feito.

Essa lógica foi admitida pela própria Lei Orgânica Estadual do Ministério Público.

Note-se que de acordo com o art. 296, caput da Lei Complementar Estadual nº 734/93, foi estabelecido que aos cargos criminais e cíveis são atribuídas todas as funções relativas à sua área de atuação, salvo as que disserem respeito a cargos especializados.

Note-se que a analogia também favorece essa solução.

Na Lei Complementar nº 734/93, há previsão específica de atribuições das Promotorias de Justiça especializadas na Comarca da Capital.

No art. 295, VIII, está prevista a função do Promotor de Justiça de Mandados de Segurança para “mandados de segurança, ações populares, ‘habeas data’ e mandados de injunção ajuizados na primeira instância”; enquanto no art. 295, IX (red. Lei Complementar estadual nº 1.083, de 17 de dezembro de 2008), está prevista a função do Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social para “defesa da probidade e legalidade administrativas e da proteção do patrimônio público e social”.

Assim, se de acordo com o disposto nos art. 295, VIII e IX da Lei Complementar nº 734/93 é a própria Lei Orgânica Estadual Paulista que, ao menos na Capital, exclui das atribuições de defesa do patrimônio público e social a atuação como fiscal da ordem jurídica em ações populares, é possível afirmar que, além da regra da especialidade (só cabe à função especializada a atuação na matéria e nos feitos que lhes forem especificamente reservados), a analogia com o referido dispositivo também serve para solucionar conflitos como o que ora se apresenta.

Por esses motivos, caberá à suscitada oficiar como fiscal da lei no presente feito.

3)Decisão.                                

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber à suscitada, DD. 4º Promotor de Justiça de São Caetano do Sul, seguir oficiando nos autos da ação popular como fiscal da ordem jurídica.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 1º de março de 2012.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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