Conflito de Atribuições - Cível

 

Protocolado nº 32.407/09

(PJCCAP 530/2008 – 6ª PJ)

Suscitante: 6º Promotora de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

Suscitado: 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital

 

 

Ementa:

1) Conflito negativo de atribuições. 6ª Promotora de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) e 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital (suscitado).

2) Representação endereçada à Procuradoria Geral de Justiça, encaminhada à Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital que, por sua vez, encaminhou à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo. Remessa desta para a 5ª Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital. Nova remessa à 6ª Promotora de Justiça do Patrimônio Público e Social.

3) Representação questionando os serviços prestados pela CPTM. Prestação de serviços públicos de transporte em condições inadequadas.

3) Aplicação do Código de Defesa do Consumidor - CDC. Conceito de consumidor e fornecedor de serviços. Direitos dos consumidores em relação aos serviços públicos. Obrigações dos órgãos públicos, por si ou por suas empresas, de fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quantos aos essenciais, contínuos.

4) Conflito conhecido e dirimido, para que a suscitada (Promotora de Justiça do Consumidor) prossiga na investigação.

 

 

Vistos,

1) Relatório.

Tratam estes autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante a DD. 6ª Promotora de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, e como suscitado o 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital.

O procedimento foi instaurado em razão de representação (fls. 3/6) encaminhada ao Procurador-Geral de Justiça, na qual se noticiou as inadequadas condições de prestação dos serviços de transporte coletivo ferroviário pela CPTM – Companhia Paulista de Transporte Metropolitano.  Citou-se a título exemplificativo os serviços prestados nas Linhas F e H, notadamente no horário de “rush”, pedindo providências.

Remetida a representação à 6ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social (fl. 9), verificou esta a existência de anterior ação civil pública de responsabilidade da 1ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social, em trâmite perante a 7ª Vara da Fazenda Pública, registrada sob o nº. 576/96.

Nessa Promotoria se entendeu que as matérias de fato tratadas na representação e na ação civil pública não coincidiam, tratando de encaminhar os autos à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital (fl. 52 e verso) que, por sua vez, se negou a oficiar (fls. 54/60), com encaminhamento à Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital.

Inicialmente distribuído à 5ª Promotoria de Justiça do Consumidor, o procedimento foi encaminhado à 2ª Promotoria e posteriormente à 3ª Promotoria de Justiça do Consumidor, nas quais se verificou a existência de outros procedimentos, tratando da inadequação da prestação dos serviços nas linhas “C” e “D”, enquanto a representação em foco tratava da mesma inadequação, porém nas linhas “F” e “H”.

Retornando à 5ª Promotoria de Justiça do Consumidor, requereu-se certidão de objeto e pé relativo à ação civil pública nº. 576/96, verificando-se que a mesma foi julgada parcialmente procedente em 11.10.1996, tendo a 7ª Câmara de Direito Público negado provimento ao apelo da requerida, que recorreu ao Superior Tribunal de Justiça não obtendo êxito, contudo. Finalmente, consta da certidão que a ação se encontra em fase de execução.

Diante disso, entendeu o DD. 5º Promotor de Justiça do Consumidor que os fatos tratados na representação deveriam ser apreciados no âmbito da noticiada ação civil pública, “haja vista a exata identidade de objetos” (fl. 72), motivo pelo qual encaminhou os autos à mesma 6ª Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social.

Finalmente, recebidos os autos pela 6ª Promotora de Justiça do Patrimônio Público e Social, tratou de suscitar o conflito negativo de atribuições por entender que os fatos objeto da representação não poderiam ser tratados na ação civil pública em fase de execução, mormente porque se discute uma relação de consumo (fls. 75/79).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

         O conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

         Como anota a doutrina, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196).

         No que diz respeito à questão de fundo, como se sabe, por força dos art. 2º e 3º do CDC, qualifica-se como consumidor aquele que adquire ou utiliza produto ou serviço como consumidor final; enquanto a qualidade de fornecedor deve ser identificada na situação daquele que desenvolve atividades produtivas, comerciais e de prestação de serviços, nas diversas modalidades indicadas exemplificativamente na Lei nº 8.078/90. E dentro desse gizamento estão as pessoas jurídicas públicas, no dizer da lei, que recebeu o seguinte comentário:

“Fala ainda o art. 3º do Código de Proteção ao Consumidor que o fornecedor poder ser público ou privado, entendendo-se no primeiro caso o próprio Poder Público, por si ou então por suas empresas públicas que desenvolvam atividades de produção, ou ainda as concessionárias de serviços públicos, sobrelevando-se salientar nesse aspecto que um dos direitos dos consumidores expressamente consagrados pelo art. 6º, mas precisamente no seu inc. X, é a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.”[1]

 Além disso, ao tratar da delimitação da idéia de serviço, o § 2º do art. 3º do CDC, utilizando definição propositalmente vaga, que pode ser assimilada à hipótese de conceito jurídico indeterminado, afirma que “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração”; segue-se a isso, no mesmo dispositivo, rol exemplificativo e inclusivo voltado ao afastamento de qualquer dúvida, por indicar que também é serviço a atividade de “natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.

Não deve haver dúvida de que a melhor exegese dos conceitos de consumidor, fornecedor, produto, serviço e relação de consumo, deve ser a mais aberta e abrangente possível, de sorte a estender a proteção que pode ser extraída da legislação específica, e não restringi-la indevidamente.

A amplitude da proteção decorrente do Código do Consumidor, que parte da premissa da largueza dos respectivos conceitos, encontra-se também assente na doutrina. José Geraldo Brito Filomeno, por exemplo, demonstra essa tendência exegética, ao formular considerações sobre o conceito de consumidor:

“(...) abstraídas todas as conotações de ordem filosófica, tão-somente econômica, psicológica ou sociológica, e concentrando-nos basicamente na acepção jurídica, vem a ser qualquer pessoa física que, isolada ou coletivamente, contrate para consumo final, em benefício próprio ou de outrem, a aquisição ou a locação de bens, bem como a prestação de serviços. Além disso, há que se equiparar o consumidor a coletividade que, potencialmente, esteja sujeita ou propensa à referida contratação. Caso contrário, se deixaria à própria sorte, por exemplo, público-alvo de campanhas publicitárias enganosas ou abusivas, ou então sujeito ao consumo de produtos ou serviços perigosos ou nocivos à sua saúde ou segurança” (Manual de Direitos do Consumidor, 9ªed., São Paulo, Atlas, 2007, p.23, g.n.).

No mesmo sentido, merecem conferência as considerações lançadas em Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto, 3ªed., Rio de Janeiro, Forense, 1993, p. 27 e seguintes.

Daí ser possível visualizar desde logo uma relação de consumo entre os consumidores identificados como os usuários dos serviços de transporte público, tal como colocados na representação mencionada.

Reforçando a idéia de estarmos frente a relação de consumo, dispõe o inc. X, do art. 6º, do CDC, declarando ser direito do consumidor “a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral” no que complementado pelo art. 22 da mesma lei:

Art. 22 – Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

Parágrafo único – Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste Código.

Dessa forma, cristalino que os fatos objetos da representação se constituem mesmo em relação de consumo, por expressa determinação da Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. E se por mais não fosse, igualmente o Manual de Atuação Funcional (Ato nº. 168/98-PGJ-CGMP, de 21 de dezembro de 1998.) dispõe: “Art. 438 - Observar que os princípios do Código de Defesa do Consumidor estendem-se também aos serviços públicos, ainda que prestados por empresas concessionárias ou permissionárias.”.

Sendo assim, forçoso concluir que a atribuição é da Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital.

No entanto, uma outra razão levou o DD. 5º Promotor de Justiça do Consumidor a negar sua atribuição para a espécie, qual seja, a existência da ação civil pública nº. 576/96, da 7ª Vara da Fazenda Pública, conforme certidão de objeto e pé juntada à fl. 69, cuja petição inicial está acostada às fls. 13/48, subscrita por ilustres então Promotores de Justiça da Cidadania, em junho de 1.996. A certidão referida dá conta da fase em que se encontra a ação atualmente, ou seja, “... em fase de execução”.

Nesse passo, não há se falar em qualquer alteração do julgado, cuja execução se limitará aos termos determinados na sentença, de resto confirmada no Tribunal de Justiça e no Superior Tribunal de Justiça. Daí ser possível aventar-se a hipótese de apreciação da representação no bojo da execução da ação civil pública, apenas se os objetos forem idênticos, por economia processual.

Ocorre que o objeto da ação civil pública é específico e diz respeito à imposição de obrigação de fazer “... consistente no impedimento de transporte de pessoas penduradas – ‘pingentes’ ou posicionadas sobre os vagões ‘surfistas’; impedir também o tráfego de trens com portas abertas ou semi-abertas, bem como o tráfego de trens com lotação superior ao máximo permitido e, finalmente, impedir o comércio não autorizado por lei, no interior das estações e das composições ferroviárias, com fixação de multa diária pelo não cumprimento”. (fl. 69) A representação, além da questão do número excessivo de passageiros por trem, diz respeito a outras práticas perniciosas, chegando à própria higiene dos vagões. Inviável, pois, o exame conjunto da representação com a execução da ação civil pública que está em andamento.

Dessa forma, respeitando-se as ponderações do Suscitado, a investigação deve, efetivamente, tramitar sob os auspícios da Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital.

3) Conclusão.

         Diante do exposto, e com amparo no art. 115 da Lei Complementar Estadual nº 734/93, conheço do presente conflito negativo de atribuições, e dirimo-o, determinando caber à 5ª Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital oficiar no feito, em prosseguimento, em seus ulteriores termos.

         Publique-se a ementa. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

         Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

 

São Paulo, 31 de março de 2009.

 

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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[1] Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto, 3ªed., Rio de Janeiro, Forense, 1993, p. 30.