Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 33.698/17

Suscitante: 4º Promotor de Justiça de São Caetano do Sul (Saúde Pública)

Suscitado: 8º Promotor de Justiça de São Caetano do Sul (Pessoa com Deficiência)

 

 

Ementa: Conflito negativo de atribuição. Saúde Pública. Pessoa com Deficiência. Irregularidades no atendimento de saúde pública pela rede municipal. Autismo.

1. “Autismo é deficiência (art. 1º, § 2º, Lei n. 12.764/12)” (Protocolado n. 6.384/16).

2. Deficiência do serviço público de saúde prejudicial ao tratamento de pessoa com autismo.

3. A situação evidenciada nos autos – paciente autista internada em clínica, sob custeio do erário municipal, não vem recebendo do poder público os medicamentos necessários, por falha do poder público – indica a atribuição do Promotor de Justiça da área de proteção da pessoa com deficiência.

 

 

 

                   Põem-se em situação de conflito os ilustres 4º e 8º Promotores de Justiça de São Caetano do Sul sobre reclamação referente ao atendimento de saúde pública à pessoa portadora de autismo pela rede municipal.

                   É o breve relatório.

                   Inicialmente anoto que resolvendo conflito de atribuição precedente firmou-se a premissa de que “autismo é deficiência (art. 1º, § 2º, Lei n. 12.764/12)” (Protocolado n. 6.384/16).

                   Se a tanto não bastasse esse entendimento, reporto-me à fundamentação da solução de conflito de atribuição que versou a questão à luz da Lei nº 13.146/15:

“No caso dos autos registre-se de antemão que o conceito de pessoa com deficiência, estabelecido pela Lei Brasileira de Inclusão, é o mesmo estabelecido pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2007) e seu Protocolo Facultativo, que foram ratificados pelos Congresso Nacional através do Decreto Legislativo nº 186/08, nos termos do art. 5º, § 3º da Constituição Federal e promulgados pelo Decreto nº 6.949/09.

Uma das modificações relevantes estabelecidos pela nova lei envolveu a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com deficiência, como categoria diversa da deficiência intelectual, conceitos que até então se identificam no regramento interno.

Com efeito, o Decreto n. 3.298/99, responsável por regulamentar a Lei n. 7.853/89, dispondo sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, estabelece o seguinte conceito de deficiência mental no inciso IV do art. 4º:

‘IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

a)     comunicação;

b)     cuidado pessoal;

c) habilidades sociais;

d) utilização dos recursos da comunidade;

e) saúde e segurança;

f) habilidades acadêmicas;

g) lazer; e

h) trabalho;

Desse modo, antes da Convenção Internacional e da Lei Brasileira de Inclusão, a ‘deficiência mental’ identificava-se, por definição legal, com o atraso intelectual ou com o desenvolvimento mental incompleto, o que, hodiernamente, está inserido no conceito de ‘deficiência intelectual’.

As expressões até então se equivaliam e diziam respeito às pessoas com desenvolvimento mental intelectual inferior à média, razão pela qual era comum inserir nessa categoria (de ‘deficiente mental’) os autistas, por exemplo.

Porém, a Convenção e a LBI diferenciaram o impedimento (de longo prazo) de ordem intelectual do impedimento de ordem mental, admitindo que se enquadre no conceito de pessoa com deficiência tanto aquele que possua doença ou transtorno - tais como esquizofrenia, transtorno bipolar, etc - desde que o referido impedimento mental seja de longo prazo e, em interação com uma ou mais barreiras, obstrua sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas.

Destaque-se que o novo diploma legal, espelhado na Convenção Internacional, trouxe relevante inovação de ordem principiológica, porquanto passou a estabelecer que a definição de pessoa com deficiência não deve ser analisada sob o ponto de vista único do impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial, isto é, com base exclusivamente na falta de um membro ou sentido, na existência de doença ou transtorno mental ou de atraso intelectual, mas sim pela presença de barreiras ou dificuldades que a impeçam de se relacionar, de se integrar na sociedade, isto é, de se ver incluída socialmente.

Atualmente, portanto, a definição de quem é ou não pessoa com deficiência se mede pelo grau de dificuldade para a inclusão social e não pela limitação de ordem física, mental, intelectual ou sensorial que o indivíduo possui.

Por isso, restou absolutamente superada a linha conceitual que norteava a legislação anterior, notadamente o Decreto nº 3.298/99, no sentido de definir a pessoa com deficiência com base apenas na patologia ou na incapacidade que apresenta, elencada em lei.

O novo conceito de pessoa com deficiência não estabelece causas, tendo conteúdo amplo, ligado à relação da pessoa com a deficiência que a acomete.

Desse modo, pode-se afirmar que Decreto nº 3.298/99 só poderá ser adotado se for para beneficiar a inclusão e não para promover exclusão. Se sua utilização causar qualquer empecilho à implementação do conceito fixado pela Convenção, será tido como inconstitucional.

Deveras, a proteção trazida pela Convenção Internacional e, agora, pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15), passou a imprimir a marca da anormalidade não mais à pessoa e sim ao grau de dificuldade de sua interação com o ambiente na qual se encontre.

Assim, caso determinada pessoa não se encaixe em qualquer das causas elencadas no Decreto, não poderá de imediato ser desconsiderada como pessoa com deficiência, já que ela poderá se encaixar no conceito amplo da Convenção.

Além disso, a verificação da existência e do grau de dificuldade deverá ser feito em cada caso concreto. De fato, há pessoas que possuem algum tipo de impedimento de ordem física, mental, sensorial ou intelecutal, mas que não encontram nenhum tipo de barreira, problema de adaptação ou dificuldade de integração social, não podendo, por isso apenas, ser enquadradas no conceito de pessoa com deficiência.

Uma pessoa que possua doença mental, portanto, não pode, apenas por esse fato, ser enquadrada como pessoa com deficiência, sendo necessário analisar, no caso concreto, a existência ou não de dificuldade de interação com o ambiente em que vive, bem como as condições na qual se encontre.

Assim, aquele que tem esquizofrenia mas que esteja amparado pela família e submetido a tratamento médico eficaz e que, a despeito da doença mental, consegue ter uma vida produtiva, não pode, a priori, ser enquadrada como pessoa com deficiência.

O mesmo se diga com respeito à pessoa que possua adoecimento ou transtorno psíquico mais leve, como quadro depressivo ou ansioso, reativos de caráter mais psicológicos ou alcoolismos leves, casos que não geram por si só seu enquadramento como pessoa com deficiência.

Já aquele que seja acometido por doença ou transtorno mental e que não tenha suporte familiar, que não esteja recebendo tratamento médico eficiente e que encontre dificuldades de interação com o meio social em que vive, poderá, nessas condições ser considerado pessoa com deficiência.

Colocadas essas premissas, a solução dos conflitos de atribuição envolvendo as Promotorias da Pessoa com Deficiência e da Saúde Público deve ocorrer à luz da inovação legislativa promovida pela Convenção e pela Lei Brasileira de Inclusão.

De fato, a tutela daquele que possui transtorno ou doença mental de longo prazo e que, por conta disso, encontre dificuldades de participação plena social, em condições de igualdade com os demais, em determinado caso concreto, poderá ser enquadrado como pessoa com deficiência, exigindo, por consequência, a tomada de providências da Promotoria de Justiça da Pessoa com Deficiência.

Desse modo, o doente/portador de transtorno mental, quando deficiente, nos termos da Convenção da Lei Brasileira de Inclusão, deve ser tutelado individual e coletivamente pela Promotoria da Pessoa com Deficiência.

De outro lado, a tutela daquele que possui doença/transtorno mental, mas que não enfrenta, no caso concreto, obstáculos e impedimentos de longo prazo para plena participação social, não podendo, dessa forma, ser enquadrado no conceito de pessoa com deficiência, v.g. os casos que envolvam quadros depressivos, quadros de ansiedade, alcoolismo leve e toxicomania isolada, se encontram dentro da esfera de atribuição da Promotoria de Justiça da Saúde Pública, desde que demandem a requisição de cuidados na Rede de Saúde Mental - desde a atenção básica ao suporte dos Centros de Atendimento Psicossocial.

No caso específico dos autos, os elementos constantes do procedimento indicam que Camila de Paula encontra-se desassistida e desprovida de tratamentos adequados, o que acaba por obstruir sobremaneira as chances de gozar de participação social efetiva. A hipótese cuida de negligência familiar no que se refere aos direitos. O que se verifica, portanto, é a recusa no cumprimento de obrigações pela família, denotando-se a restrição a direitos em virtude da deficiência que porta o interessado.

Destarte, à luz dos elementos especificamente colhidos nesse procedimento, pode-se concluir que o feito deve seguir sob a presidência do suscitado, evidenciando assim a necessidade de intervenção do membro do Ministério Público com atribuição na área da Pessoa com Deficiência” (Protocolado n. 21.720/17).

                   Ora, a situação evidenciada nos autos – paciente autista internada em clínica, sob custeio do erário municipal, não vem recebendo do poder público os medicamentos necessários, por falha do poder público – indica a atribuição do Promotor de Justiça da área de proteção da pessoa com deficiência.

                   Face ao exposto, dirimo o presente conflito negativo de atribuições declarando a atribuição do suscitado.

                   Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se o encaminhamento dos autos. Remeta-se cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

                   São Paulo, 24 de março de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

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