Protocolado nº. 3.488/2009

Conflito negativo de atribuições

 

Suscitante: 5º Promotor de Justiça de Itaquaquecetuba

 

Suscitado: 2º Promotor de Justiça de São José do Rio Preto

 

Conflito negativo de atribuições. Promotor de Justiça que instaura inquérito civil e extrai peças remetendo ao CAO das Promotorias de Justiça Cíveis e de Tutela Coletiva. Posterior encaminhamento ao Promotor de Justiça da Comarca onde se localiza a sede da investigada, sem prejuízo da continuidade das investigações na Promotoria de origem. Negativa do segundo em adotar providências, enviando as peças ao Promotor de Justiça que as extraiu. Conflito negativo de atribuições suscitado por este. O conflito de atribuições somente se caracteriza na hipótese de dois Membros do Ministério Público pretenderem atuar no mesmo feito ou, ao contrário, não aceitarem a atribuição. No caso, há inquérito civil regularmente instaurado e a remessa de cópias de peças que devem ser objeto de exame e providências, inclusive arquivamento, se for o caso, com submissão da decisão ao Conselho Superior do Ministério Público. Conflito não conhecido.

 

1. Relatório

 

                                                         O 5º Promotor de Justiça de Itaquaquecetuba instaurou inquérito civil, cujo objeto é a investigação da prática de propaganda enganosa por parte de empresa de treinamento em informática, que opera no município em regime de franquia. Verificado que empresa franqueadora, sediada em São José do Rio Preto, também poderia estar cometendo a ilícita prática, inclusive em descumprimento a TAC anteriormente firmado naquela Comarca, extraiu cópias de peças do Inquérito Civil nº 12/2008-5PJDC, encaminhando ao Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça Cíveis e de Tutela Coletiva (fls. 06/72), que por sua vez tratou de encaminhar à 2ª Promotoria de Justiça de São José do Rio Preto, com atribuições na área da proteção ao consumidor (fl. 73 e 05).

 

                                                         Recebendo as peças, o DD. 2º Promotor de Justiça de São José do Rio Preto fez juntar cópia de anterior promoção de arquivamento do PAPIC nº 056/2003, decidindo por restituir os autos à Promotoria de Justiça de Itaquaquecetuba, via CAO das Promotorias de Justiça Cíveis e de Tutela Coletiva, para continuidade da investigação dos fatos, com ou sem dano, naquela localidade (fls. 87/93).

 

                                                         Recebidos os autos em Itaquaquecetuba, o DD. 5º Promotor de Justiça suscitou o conflito negativo de atribuições (fls. 99/117), com documentos (fls. 118/178), em síntese dizendo que instaurou o Inquérito Civil nº 012/2008 – PJ do Consumidor, para apuração dos fatos ocorridos em Itaquaquecetuba e que ainda está em andamento, tendo por investigada a MCN – Microlins Cursos de Informática Ltda., ali sediada. As peças extraídas dizem respeito a uma possível conduta ilícita em São José do Rio Preto, inclusive descumprindo o TAC firmado com a Microlins Brasil Ltda. – Microlins Franchising, naquela urbe sediada.

 

                                                         É a síntese do necessário.

 

2. Fundamentação

 

 

                                                         Desde logo, verifica-se que não está, no caso, configurado o conflito de atribuições.

 

                                                         Como se sabe, é extremamente tênue a linha divisória que distingue a legítima apreciação, pelo Procurador-Geral de Justiça, de um conflito de atribuição concretamente considerado, e eventual manifestação emitida em situação de inexistência de caso concreto a analisar, que poderia configurar violação da independência funcional do membro do Ministério Público, estipulada expressamente como princípio no art. 127, §1º da Constituição.

 

                                                         O respeito à independência funcional, dentro do entendimento que tem prevalecido e que acabou sendo acolhido pelo legislador, é que impede, por exemplo, que recomendações do Procurador-Geral de Justiça aos demais órgãos de execução tenham caráter vinculativo, quanto aos estritos limites relacionados ao específico desempenho de suas funções de execução (cf. art. 19, inc. I, alínea “d” da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

 

                                                         Deste modo, pode-se concluir que a solução de problemas atinentes a atribuições depende de sua concreta configuração, bem como da iniciativa dos órgãos de execução envolvidos, no sentido de suscitar o conflito.

 

                                                         Essa é a razão pela qual a doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar[1] (cf. g.n.).

 

                                                         Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)”[2].

 

                                                         A questão da necessidade de respeito à independência funcional encontra bom exemplo nos casos em que há negativa do membro do Ministério Público para oficiar em determinado feito, de natureza cível. O fundamento que tem sido adotado para solução de casos desta natureza é a analogia com o art. 28 do Código de Processo Penal[3].

 

                                                         Mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

 

                                                         Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública”[4].

 

                                                         O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica”[5]. Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi”[6].

 

                                                         O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores e Procuradores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

 

                                                         Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

 

                                                         É certo que, sem a manifestação dos órgãos de execução relação a um único procedimento administrativo, não se configura o conflito de atribuições, impedindo seu conhecimento.

 

                                                         No caso em exame, há um inquérito civil que se encontra tramitando regularmente perante uma das Promotorias envolvidas (IC nº 012/2008 – PJ do Consumidor de Itaquaquecetuba). Por outro lado, não foi instaurado qualquer novo procedimento na Promotoria de Justiça do Consumidor de São José do Rio Preto relativamente às peças encaminhadas pelo Centro de Apoio Operacional, havendo apenas deliberação sobre a remessa das mesmas à Promotoria de Justiça de Itaquaquecetuba que, diga-se, já as possuiu em razão de sua extração dos próprios autos do Inquérito Civil nº 012/2008.

 

                                                         Não pode deixar de ser considerado que as peças de informação devem ser objeto de exame pela PJ do Consumidor de São José do Rio Preto, notadamente em relação ao TAC firmado com a Microlins Brasil S/C Ltda. nos idos de janeiro de 2006, já que pode, ao menos em tese, estar sendo descumprido, o que se constatará – ou não – dependendo da apreciação do caso. Para tanto, necessário o exame do caso concreto, materializado pelas cópias de peças remetidas, providência que, s.m.j., não foi tomada até o momento pelo DD. 2º Promotor de Justiça de São José do Rio Preto.

 

                                                         Obviamente que a independência funcional do Membro do Ministério Público, como se disse, impõe ampla liberdade na apreciação da hipótese, submetida apenas ao controle do C. Conselho Superior do Ministério Público, no caso de arquivamento (art. 9º e seus parágrafos da Lei nº 7.347/85).

 

3) Decisão.

 

                                                         Diante do exposto, não conheço do conflito de atribuições, determinando a remessa dos autos ao DD. 2ª Promotor de Justiça de São José do Rio Preto, para a adoção das providências cabíveis.

 

                                                         Publique-se. Comunique-se. Providencie-se remessa de cópia desta decisão para o DD. 5º Promotor de Justiça de Itaquaquecetuba, para conhecimento, bem como ao CAO das Promotorias de Justiça Cíveis e de Tutela Coletiva, por via eletrônica.

São Paulo, 19 de janeiro de 2009.

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça



[1] GARCIA. Emerson. Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196.

[2] MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487.

[3] Nesse sentido: MAZZILLI, Hugo Nigro. Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.537; Emerson Garcia, Ministério Público, op. cit., p.73)

[4] MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 33ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.121. Confira-se ainda, a respeito desse tema: ARAÚJO, Edmir Netto de.  Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.106/109.

[5] MARONGIU. Giovanni. Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969,p. 626.

[6] GIANNINI. Massimo Severo. Diritto Amministrativo, v. I, 3ªed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 12.