Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 35073/10

(Procedimento preparatório n. 43.0161.0000145/10-9)

Suscitante: 5º Promotor de Justiça da Capital

Suscitado: 8º Promotor de Justiça de Jundiaí

 

 

 

Ementa:

1.    Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 5º Promotor de Justiça da Capital; suscitado: 8º Promotor de Justiça de Jundiaí.

2.    Não demonstração de dano regional. Aplicação subsidiária do critério da prevenção. O fato de a empresa investigada estar sediada na comarca da Capital não é motivo suficiente para deslocar a competência, sobretudo porque na seara supraindividual a competência territorial é absoluta.

3.    As regras de determinação da competência não valem apenas para a propositura de ações judiciais. Servem, também, como orientação para determinar o órgão competente para a instauração de inquérito civil e a realização de termo de ajustamento de conduta. Em respeito ao princípio do promotor natural, somente o promotor de justiça lotado no local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano ou o ilícito é que poderá instaurar inquérito civil para apuração dos fatos e seguir nas investigações.

4.    No caso dos direitos transindividuais, pela sua dimensão social, política e jurídica, resta claro o interesse público no sentido de que a competência territorial se exprima como absoluta, justificando-se essa opção para: a) facilitar a instrução probatória; b) permitir que a demanda seja julgada pelo juiz que de alguma forma teve contato com o dano ou ameaça de dano a direito transindividual. É a lição da doutrina: “È chiaro che quando il legislatore prevede criteri di competenza per territorio inderogabili, manifesta l’esistenza di un interesse pubblicistico al rispetto di tali criteri.” (PISANI, Andrea Proto. Lezioni di Diritto Processuale Civile. 5ª Ed. Napoli: Jovene, 2006, p. 272). Veja-se, ainda: “Apenas a princípio a competência territorial tem natureza relativa, por ser determinada em função do interesse das partes. Quando determinada em função do interesse público, como quando é fixada pelas funções do juiz no processo ou por fases deste, ganha conotação funcional, tornando-se absoluta e improrrogável” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 217).

5.    Conflito conhecido e dirimido, declarando caber ao suscitado, 8º Promotor de Justiça de Jundiaí, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

 

 

 

 

Vistos,

1) Relatório.

Tratam estes autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 5º Promotor de Justiça da Capital e como suscitado o 8º Promotor de Justiça de Jundiaí.

Consta dos autos que a 8ª Promotor de Justiça de Jundiaí recebeu representação noticiando eventual danos aos consumidores decorrentes de cancelamento de show artístico que se realizaria na comarca de Jundiaí. A empresa responsável pelo evento, “Don Vitto Buffet”, tem sede na comarca da Capital. Por isso, o suscitado entendeu que as atribuições para a investigação são do suscitante.

O suscitante, por sua vez, afirmou que as atribuições não são definidas em função do local da sede da empresa, mas sim em função do local do dano, nos termos do art. 5º da Lei da Ação Civil Pública e do art. 93, I, do Código de Defesa do Consumidor.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

A doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).

Embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

Pois bem. No caso ora sob análise, não há nenhuma informação no sentido de que o dano tenha dispersão suficiente para justificar a intervenção da Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital. Resta, então, que as atribuições devem ser definidas pelo foro do local do dano.

Ao que consta, o procedimento foi inaugurado na Promotoria de Justiça de Jundiaí, local do dano.

Remarque-se, porém, que o fato de a empresa investigada estar sediada na Capital não é motivo suficiente para deslocar a competência, sobretudo porque na seara supraindividual a competência territorial é absoluta.

Registre-se, por oportuno, que as regras de determinação da competência não valem apenas para a propositura de ações judiciais. Servem, também, como orientação para determinar o órgão competente para a instauração de inquérito civil e a realização de termo de ajustamento de conduta. Em respeito ao princípio do promotor natural, somente o promotor de justiça lotado no local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano ou o ilícito é que poderá instaurar inquérito civil para apuração dos fatos.

O tema da competência chegou a ser considerado o calcanhar-de-aquiles do direito processual civil coletivo, tamanha a discussão causada para delimitar os contornos da expressão “competência funcional” e danos de âmbito “nacional” ou “regional”.

Autorizada doutrina sustenta que a competência no processo coletivo adquire peculiaridades próprias quando comparada com o sistema tradicional do processo civil, “com autonomia praticamente completa e bases próprias para especificação” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: RT, 2002, p. 215).

Observou, com sensibilidade, Elton Venturi:

 “De fato, seja em função da pouca clareza do tratamento legislativo dos critérios de fixação da competência, alicerçados em conceitos fluidos ou indeterminados (local do dano, dano local, dano regional, dano nacional), seja em função da natural problematização política que desperta, que motivou, inclusive, uma indevida porém intencional confusão entre os institutos da competência jurisdicional e da extensão subjetiva da coisa julgada, a competência jurisdicional para a tutela coletiva está a merecer análise aprofundada, tanto de lege lata como de lege ferenda” (VENTURI, Elton. Processo civil coletivo. A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos, p.266).

O processo civil coletivo, portanto, não segue a regra tradicional do processo civil individual brasileiro, que somente admite a modificação da competência pela conexão nos casos de competência relativa, e não absoluta.

Com efeito. Nada impede que a competência territorial seja qualificada como absoluta, sempre que haja um motivo de interesse público envolvido. Cabe ao direito positivo determinar os casos em que a competência é absoluta ou relativa, assim como determinar as hipóteses em que se permitirá sua modificação, uma vez que se trata de posicionamento jurídico-positivo e não lógico-jurídico.

No caso dos direitos transindividuais, pela sua dimensão social, política e jurídica, resta claro o interesse público no sentido que a competência territorial se exprima como absoluta. Nas palavras de Proto Pisani:

 “È chiaro che quando il legislatore prevede criteri di competenza per territorio inderogabili, manifesta l’esistenza di un interesse pubblicistico al rispetto di tali criteri.” (PISANI, Andrea Proto. Lezioni di Diritto Processuale Civile. Quinta edizione. Napoli: Jovene, 2006, p. 272).

Na mesma linha, Leonel:

“Apenas a princípio a competência territorial tem natureza relativa, por ser determinada em função do interesse das partes. Quando determinada em função do interesse público, como quando é fixada pelas funções do juiz no processo ou por fases deste, ganha conotação funcional, tornando-se absoluta e improrrogável” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002,  p. 217).

Justifica-se a opção pela competência absoluta pelas seguintes razões: a) facilitar a instrução probatória; b) permitir que a demanda seja julgada pelo juiz que de alguma forma teve contato com o dano ou ameaça de dano a direito transindividual.

O local do resultado coincide, muitas vezes, “com o domicílio das vítimas e da sede dos entes e pessoas legitimadas, facilitando o acesso à justiça e a produção da prova” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Da defesa do consumidor em juízo. In: Benjamin, A H V; Fink, D R; Filomeno, J G; Grinover, Ada Pellegrini; Nery Júnior, N; Denari, Z. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004 , p. 877).

Hugo Nigro Mazzilli, no mesmo rumo, ensina que o escopo de fixar o local do dano “é facilitar o ajuizamento da ação e a coleta da prova, bem como assegurar que a instrução e o julgamento sejam realizados pelo juízo que maior contato tenha tido ou possa vir a ter com o dano efetivo ou potencial aos interesses transindividuais” (MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 15ª  ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 207.

 Leonel acrescenta que a fixação da competência no local do dano tem por escopo “facilitar a instrução, pois a proximidade do juízo com relação à prova milita em favor de sua elaboração. Como nas demandas coletivas há maior interesse público e preocupação com a busca da verdade real, adequado propiciar a proximidade entre o juiz e o dinamismo dos atos de colheita das provas. Isto implica o respeito máximo ao direito constitucional de ação e à garantia do acesso à justiça e à ordem jurídica justa”(LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 220).

A intenção de fixar o foro do local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano ou o ilícito como o competente para a causa foi a de seguir o critério do resultado, “que vai coincidir, em muitos casos, com o do domicílio das vítimas e da sede dos entes e pessoas legitimadas, facilitando o acesso à justiça e a produção da prova”(GRINOVER, Ada Pellegrini. “Da defesa do consumidor em juízo”. In: Benjamin, A H V; Fink, D R; Filomeno, J G; Grinover, Ada Pellegrini; Nery Júnior, N; Denari, Z. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004 , p. 877).

Por qualquer ângulo que se observe, a conclusão é de que caberá ao suscitado analisar eventual lesão a direitos supraindividuais dos eventualmente lesados.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao suscitado, 8º Promotor de Justiça de Jundiaí, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 22 de março de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

md