Conflito de Atribuições (positivo) – Cível
Protocolado nº 37.113/2010
Suscitantes: 2º, 5º e 8º Promotores de Justiça de
Ribeirão Preto
Suscitado: 5º Promotor de Justiça da Capital
Ementa:
1. Conflito positivo de atribuições. Suscitantes: 2º, 5º e 8º Promotores de Justiça de Ribeirão Preto. Suscitado: 5º Promotor de Justiça da Capital.
2. Em se tratando de evento de âmbito estadual ou mesmo de âmbito nacional, nada obsta a que a Promotoria de Justiça especializada da Capital entabule, com suporte no art. 93, II, da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, termo de ajustamento de conduta, sem que com isso se possa reconhecer incompatibilidade entre os termos anteriormente firmados pelos membros do Ministério Público de Ribeirão Preto, mesmo porque eles se complementam. Possível a convivência dos termos, cada qual na sua esfera de atribuição. O compromisso de ajustamento de conduta “é garantia mínima, não limite máximo de responsabilidade”(MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, São Paulo: Saraiva, 23ª Ed, 2010, p.432).
3. Conflito conhecido, declarando caber aos suscitantes prosseguirem na investigação quanto ao ajuste de conduta que entabularam em Ribeirão Preto, e ao suscitado prosseguir na investigação acerca do ajuste de conduta firmado pela Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital.
Vistos,
1) Relatório.
Tratam estes
autos de conflito positivo de atribuições, figurando como suscitantes os 2º, 5º e 8º Promotores de Justiça de
Ribeirão Preto e como suscitado o 5º
Promotor de Justiça da Capital.
Argumentam os
suscitantes que a Promotoria de Justiça de Ribeirão Preto instaurou inquérito
civil (IC n. 093.2.042.2/06) para apurar irregularidades em estádios de futebol
localizados em Ribeirão Preto, além de medidas destinadas à garantia da
segurança de espectadores. O procedimento investigatório foi presidido pelos
Promotores de Justiça de Ribeirão Preto com atribuições nas áreas da Cidadania,
Consumidor e Criminal.
Diante de
irregularidades constatadas por profissionais do Departamento de Estruturas da
Faculdade de Engenharia da Universidade de São Paulo (USP), os suscitantes
celebraram termos de ajustamento de conduta com os responsáveis pelos estádios
locais, sendo que em alguns acordos já houve inclusive homologação pelo
Conselho Superior do Ministério Público.
Contudo,
afirmam os suscitantes que foram surpreendidos por meio da imprensa de que o 5º
Promotor de Justiça da Capital, DR. Roberto Senise Lisboa, está atuando em
situações concretas da Comarca de Ribeirão Preto.
Instado
a se manifestar acerca do conflito positivo de atribuições, à luz do princípio
do contraditório, o 5º Promotor de Justiça da Capital, DR. Roberto Senise
Lisboa, argumenta que o conflito não merece conhecimento. No seu entendimento,
quando o evento se refere a organização que não se limita ao local,
estendendo-se a toda uma região, a atribuição passa a ser da Promotoria de
Justiça da Capital.
Aduz
o suscitado que “tratando o Campeonato Paulista, a Copa do Brasil e o
Campeonato Brasileiro de competições oficiais elaboradas por entidade cuja
atividade e organização transcendem ao local de um estádio de futebol, impondo
o Estatuto do Torcedor, expressamente, a responsabilidade civil da entidade que
organiza a competição e da pessoa física do seu respectivo dirigente,
evidencia-se a atribuição da Promotoria de Justiça da Capital” (fls. 57).
Em
resumo, sustenta o suscitado que há atribuição conjunta entre os Promotores de
Justiça de Ribeirão Preto e o Promotor de Justiça do Consumidor da Capital
É
o relato do essencial.
2)Fundamentação.
É possível afirmar que o conflito positivo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.
Insta
considerar que os conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in
abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução
do Ministério Público “(a) dois ou mais
deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias
atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos
um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que
já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público,
6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).
Embora
os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional,
o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior
quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados
aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com
relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder
hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.
Como
anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a
autoridade administrativa superior para “distribuir
e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus
agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu
quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e
corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração
Pública” (Direito Administrativo
Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda,
a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423;
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito
Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.
O
reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano
estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando,
por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta
é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica
supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e
contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento
riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità
pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969, p.
626).
Do
mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a
existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos,
de um “potere di risoluzione di conflitti
tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività
degli stessi” (Diritto Amministrativo,
v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).
O
reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo
algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de
Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações
processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de
qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa
atuação.
Em
outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público
atuar, mas pode e deve dizer se deve
ou não atuar, e qual o membro ou
órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.
No
caso em análise, faz-se oportuno registrar que as condições determinadas
no termo de fls. 14/15 (Ribeirão Preto) não são incompatíveis com as constantes
do termo de compromisso de ajustamento de conduta n. 51.161.118/10 (fls. 64/67
– São Paulo); é possível a convivência dos dois termos.
É fato que a Portaria n. 8916/2009 do Procurador-Geral de
Justiça designou o Dr. Roberto Senise Lisboa, 5º Promotor de Justiça do
Consumidor, para receber os laudos técnicos de vistoria das condições de segurança
dos estádios, na forma do artigo 23 da Lei nº 10.671, de 15 de maio de
Em se tratando de evento de âmbito estadual ou mesmo de âmbito nacional, nada obsta a que a Promotoria de Justiça especializada da Capital entabule, com suporte no art. 93, II, da Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, termo de ajustamento de conduta, sem que com isso se possa reconhecer incompatibilidade entre os termos, mesmo porque eles se complementam. Leia-se o que escreveram os suscitantes:
“O termo de ajustamento de conduta firmado na Capital repisa em aspectos menos relevantes para segurança, insistindo em precauções para o combate a incêndio em uma estrutura que não possui nenhum material sujeito à combustão e instalação de equipamento, que segundo parecer do CAEX e do Comandante do Corpo de Bombeiros (gerador de energia), é absolutamente desnecessário (cópias anexas)”(fls. 04).
As
regras de determinação da competência não valem apenas para a propositura de
ações judiciais. Servem, também, como orientação para determinar o órgão
competente para a instauração de inquérito civil e a realização de termo de
ajustamento de conduta. Em respeito ao princípio do promotor natural, somente o
promotor de justiça lotado no local onde ocorreu ou deva ocorrer o dano ou o
ilícito é que poderá instaurar inquérito civil para apuração dos fatos.
O
tema da competência chegou a ser considerado o calcanhar-de-aquiles do direito
processual civil coletivo, tamanha a discussão causada para delimitar os
contornos da expressão “competência funcional” e danos de âmbito “nacional” ou
“regional”.
Autorizada doutrina sustenta que a competência no processo
coletivo adquire peculiaridades próprias quando comparada com o sistema
tradicional do processo civil, “com autonomia praticamente completa e bases
próprias para especificação” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo coletivo. São Paulo: RT, 2002, p. 215).
Observou, com sensibilidade, Elton Venturi:
“De fato, seja em função da pouca clareza do tratamento legislativo dos critérios de fixação da competência, alicerçados em conceitos fluidos ou indeterminados (local do dano, dano local, dano regional, dano nacional), seja em função da natural problematização política que desperta, que motivou, inclusive, uma indevida porém intencional confusão entre os institutos da competência jurisdicional e da extensão subjetiva da coisa julgada, a competência jurisdicional para a tutela coletiva está a merecer análise aprofundada, tanto de lege lata como de lege ferenda” (VENTURI, Elton. Processo civil coletivo. A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos, p.266).
O processo civil coletivo, portanto, não segue a regra tradicional do processo civil individual brasileiro, que somente admite a modificação da competência pela conexão nos casos de competência relativa, e não absoluta.
Com efeito. Nada impede que a competência territorial seja qualificada como absoluta, sempre que haja um motivo de interesse público envolvido. Cabe ao direito positivo determinar os casos em que a competência é absoluta ou relativa, assim como determinar as hipóteses em que se permitirá sua modificação, uma vez que se trata de posicionamento jurídico-positivo e não lógico-jurídico.
No caso dos direitos transindividuais, pela sua dimensão social, política e jurídica, resta claro o interesse público no sentido que a competência territorial se exprima como absoluta. Nas palavras de Proto Pisani:
“È chiaro che quando il legislatore prevede criteri di competenza per territorio inderogabili, manifesta l’esistenza di un interesse pubblicistico al rispetto di tali criteri.” (PISANI, Andrea Proto. Lezioni di Diritto Processuale Civile. Quinta edizione. Napoli: Jovene, 2006, p. 272).
Na mesma linha, Leonel:
“Apenas a princípio a competência territorial tem natureza relativa, por ser determinada em função do interesse das partes. Quando determinada em função do interesse público, como quando é fixada pelas funções do juiz no processo ou por fases deste, ganha conotação funcional, tornando-se absoluta e improrrogável” (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 217).
Justifica-se a opção pela competência absoluta pelas seguintes razões: a) facilitar a instrução probatória; b) permitir que a demanda seja julgada pelo juiz que de alguma forma teve contato com o dano ou ameaça de dano a direito transindividual.
O local do resultado coincide, muitas vezes, “com o domicílio das vítimas e da sede dos entes e pessoas legitimadas, facilitando o acesso à justiça e a produção da prova” (GRINOVER, Ada Pellegrini. Da defesa do consumidor em juízo. In: Benjamin, A H V; Fink, D R; Filomeno, J G; Grinover, Ada Pellegrini; Nery Júnior, N; Denari, Z. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004 , p. 877).
Hugo Nigro Mazzilli, no mesmo rumo, ensina que o escopo de fixar o local do dano “é facilitar o ajuizamento da ação e a coleta da prova, bem como assegurar que a instrução e o julgamento sejam realizados pelo juízo que maior contato tenha tido ou possa vir a ter com o dano efetivo ou potencial aos interesses transindividuais” (MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 207.
Leonel acrescenta que a fixação da competência no local do dano tem por escopo “facilitar a instrução, pois a proximidade do juízo com relação à prova milita em favor de sua elaboração. Como nas demandas coletivas há maior interesse público e preocupação com a busca da verdade real, adequado propiciar a proximidade entre o juiz e o dinamismo dos atos de colheita das provas. Isto implica o respeito máximo ao direito constitucional de ação e à garantia do acesso à justiça e à ordem jurídica justa”(LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 220).
Por óbvio que compete aos Promotores de Justiça de Ribeirão Preto investigar e propor as medidas adequadas para a tutela local de direitos supraindividuais; nesse aspecto, a competência é absoluta. Porém, muito embora a diligente e escorreita atuação local, não há prejuízo que outras condições sejam impostas, agora com vistas a uma atuação regional, em face de todos os estádios que abrigam o Campeonato Paulista, a Copa do Brasil e o Campeonato Brasileiro.
Considerando que no caso dos autos o evento atingirá número indeterminado de pessoas que compareçam ao local, possível a atuação da Promotoria de Justiça Especializada da Capital para entabular cláusulas gerais, o que não impede que os diligentes membros do Ministério Público de Ribeirão Preto firmem cláusulas específicas.
Imperativo assentar que o Decreto n. 2.181, de março de 1997, que dispõe sobre a organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), adota o seguinte entendimento: “A celebração de termo de ajustamento de conduta não impede que outro, desde que mais vantajoso para o consumidor, seja lavrado por quaisquer das pessoas jurídicas de direito público integrantes do SNDC.” A se adotar essa orientação, nada impede a convivência de dois termos de ajustamento de conduta, desde que não colidentes e que na sua essência sejam benéficos ao consumidor (v. art. 6º, §1º do Decreto 2.181/97. V. LOCATELLI, Paulo Antonio. O termo de compromisso de ajustamento de conduta na proteção dos direitos sociais. Atuação jurídica, v. 4, n. 10, p. 23-36, set. de 2002).
Remarque-se, por oportuno, que o compromisso de ajustamento de conduta “é garantia mínima, não limite máximo de responsabilidade”(MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, São Paulo: Saraiva, 23ª Ed, 2010, p.432).
Em virtude das regras acima expostas, nota-se que o conflito merece conhecimento, declarando caber aos suscitantes prosseguirem na investigação quanto ao ajuste de conduta que entabularam em Ribeirão Preto, e ao suscitado prosseguir na investigação acerca do ajuste de conduta firmado pela Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital.
3)Decisão.
Diante do exposto, conheço do presente conflito positivo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber aos suscitantes prosseguirem na investigação quanto ao ajuste de conduta que entabularam em Ribeirão Preto, e ao suscitado prosseguir na investigação acerca do ajuste de conduta firmado pela Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital.
Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.
Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.
São Paulo, 25 de maio de
2010.
Fernando Grella
Vieira
Procurador-Geral
de Justiça
ef