Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 37.925/2011

Suscitante: 7ª Promotora de Justiça de São José dos Campos (Patrimônio Público)

Suscitada: 6º Promotor de Justiça de São José dos Campos (Consumidor)

 

1)     Conflito negativo de atribuições. 7ª Promotora de Justiça de São José dos Campos (Patrimônio Público - suscitante) e 6º Promotor de Justiça de São José dos Campos (Consumidor – suscitado).

2)     Representação. Notícia de possíveis irregularidades na realização de obra pública (construção de habitações para população de baixa renda) e possíveis danos ao erário. Instauração de Procedimento Preparatório do Inquérito Civil. Necessidade de conclusão, nos termos do art. 23 do Ato Normativo 484-CPJ, de 5 de outubro de 2006

3)     Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento da 7ª Promotora de Justiça de São José dos Campos (Patrimônio Público – suscitante) na investigação.

Vistos.

1)   Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante a DD. 7ª Promotora de Justiça de São José dos Campos (Patrimônio Público) e como suscitado o DD. 6º Promotor de Justiça de São José dos Campos (Consumidor).

Foi encaminhada representação à Promotoria de Justiça de São José dos Campos, pugnando pela instauração de investigação civil por parte do Ministério Público.

Segundo a representação, teria ocorrido inadequada execução de obras públicas realizadas por empresa contratada pelo Município, havendo, ainda, malversação de recursos públicos e entrega de habitações populares a cidadãos de baixa renda com inúmeros defeitos (cf. fls. 4/10).

Embora tenha a representação sido endereçada à “Promotoria da Cidadania” (fls. 4), ela foi distribuída pela Secretaria (fls. 408) ao DD. 6º Promotor de Justiça de São José dos Campos (Consumidor), que ofereceu manifestação inicial, destacando que a representação buscava a reparação do dano ao erário municipal, devendo ser realizada a investigação por parte do órgão ministerial com atribuições para a defesa do patrimônio público (fls. 410/412).

A suscitante, DD. 7ª Promotora de Justiça de São José dos Campos (Patrimônio Público), por seu turno, ao receber o expediente, instaurou Procedimento Preparatório do Inquérito Civil (cf. portaria de fls. 2), destinado à apuração das irregularidades na execução da obra pública  e ainda do possível dano ao erário.

Após diligências iniciais a DD. 7ª Promotora de Justiça de São José dos Campos (Patrimônio Público), contudo, suscitou o conflito, aduzindo que: (a) instaurou o Procedimento Preparatório do Inquérito Civil para aferir a possibilidade de ocorrência de dano ao erário; (b) com a resposta oferecida pela Municipalidade a situação tornou-se mais clara; (c) a finalidade específica da representação é a adoção de medidas que solucionem problemas e vícios identificados na construção das habitações populares, que foram recebidas pela Municipalidade, após sua conclusão, mesmo apresentando inúmeros defeitos; (d) não há possibilidade, inicialmente, de persecução relativamente à ocorrência de atos de improbidade administrativa; (e) eventual ação civil pública terá por finalidade a proteção dos adquirentes das habitações populares, pois está evidenciada, no caso, a relação de consumo, bem como a responsabilidade da construtora em face dos adquirentes; (f) nada impedirá que o suscitado, concluindo ao final da investigação que houve ato de improbidade, encaminhe cópias dos autos à suscitante, para os necessários fins (fls. 519/526).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço.

Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação ou ação na esfera cível deve levar em consideração os dados do caso concreto.

A representação que motivou a instauração da investigação noticia, com igual importância, fatos que repercutem tanto na questão da qualidade de habitações populares destinadas a pessoas de baixa renda, como ainda na possibilidade de malversação de recursos públicos em função de inadequações na execução obra e na omissão do dever de fiscalização por parte do Município.

A esse propósito a representação foi expressa, como se infere das passagens a seguir transcritas:

“(...)

a Administração Municipal omitiu-se do seu dever de fiscalização e controle, no emprego da verba pública em relação à obra de construção das unidades habitacionais, uma vez que os problemas apresentados demonstram a péssima qualidade do serviço realizado, bem como dos materiais utilizados na obra.

(...)

A total ausência de fiscalização da obra torna-se ainda mais evidente ao observarmos que o projeto das casas previa a colocação de ‘corrimão’ na entrada das unidades, entretanto, esse item pode ser encontrado em apenas algumas unidades.

(...)

Mesmo após as diversas reclamações dos moradores acerca dos problemas apresentados, a Municipalidade não tomou qualquer medida visando a averiguação e solução dos fatos, salientando-se que as casas foram entregues a apenas três meses, ou seja, evidentemente a obra ainda se encontra dentro do ‘período de garantia’ em que a empresa está obrigada a reparar qualquer problema estrutural apresentado.

(...)

Os fatos e situações até o presente narrados, respaldados pela documentação ora anexada, ensejam a crença de que irregularidades no uso de verba pública ocorreram, tendo em vista a péssima qualidade do serviço realizado e dos materiais utilizados na obra de construção das casas.

Assim, comprovada a ocorrência de ato que enseja irregularidades administrativas e possíveis ilícitos, serve a presente para requerer a abertura de procedimento investigatório para apuração dos fatos aqui narrados, avaliando a ocorrência de irregularidades na execução da obra por parte da empresa contratada, bem como a omissão e/ou negligência da Prefeitura Municipal de São José dos Campos na fiscalização da mesma...

(...)“

Não há dúvida de que a situação subjacente noticiada nos autos – possível aquisição onerosa de moradias populares com defeitos e má qualidade – pode configurar, em tese, relação de consumo, justificando a atuação do Ministério Público em defesa de interesses individuais homogêneos.

No Col. STJ, a esse propósito, é possível identificar a existência de julgados admitindo a caracterização da relação de consumo relativamente a mutuários do Sistema Financeiro da Habitação, bem como sua defesa, na perspectiva de interesses individuais homogêneos em matéria de direito do consumidor, por parte do Ministério Público. Confiram-se os seguintes precedentes: REsp 635807/CE, 3ª Turma, rel. Min. NANCY ANDRIGHI, 05/05/2005; REsp 586307/MT, 1ª Turma, rel. Min. LUIZ FUX, j. 14/09/2004; AgRg no Ag 253686/SP, 4ª Turma, rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, j. 11/04/2000.

O aspecto relevante, entretanto, é que a representação aponta expressamente, e com ênfase, para a ocorrência do dano ao erário, seja por suposta malversação de recursos relativos às obras nela noticiadas, seja ainda por omissão quanto ao dever de fiscalização, por parte do poder público municipal, quanto à execução do objeto do contrato entabulado com empresa vencedora de licitação.

Nada obstante tenham sido fornecidas informações iniciais por parte da Municipalidade através da Secretaria de Habitação, há notícia de que a obra ainda não foi recebida definitivamente, impondo-se a continuidade da fiscalização e eventuais providências da Administração Pública relativamente ao inadimplemento das obrigações por parte da empresa contratada (fls. 420/422).

Não bastasse isso, como a suscitante deliberou pela instauração do Procedimento Preparatório do Inquérito Civil que tem como objeto, conforme a portaria respectiva, a apuração de irregularidades na execução da obra e eventual dano ao erário, este procedimento deve ser concluído.

Nesse sentido é o que dispõe o art. 23, § 3º do Ato Normativo 484-CPJ, de 5 de outubro de 2006, exigindo a conclusão do Procedimento Preparatório mediante instauração de Inquérito Civil, promoção de arquivamento ou ajuizamento de ação civil.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber à suscitante, 7ª Promotora de Justiça de São José dos Campos (Patrimônio Público – suscitante) a atribuição para oficiar no feito.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 24 de março de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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