Conflito de Atribuições – Cível

Inquérito civil n. 12/04 (Protocolado n. 38.185/2010)

Suscitante: Promotor de Justiça do Meio Ambiente de Aparecida

Suscitado: Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo de Aparecida

 

 

Ementa: Inquérito civil. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: Promotor de Justiça do Meio Ambiente de Aparecida. Suscitado: Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo de Aparecida. Investigação instaurada para apurar ocupação de área de preservação permanente por construções de modo irregular. Predomínio do interesse ambiental. Conflito conhecido e dirimido, declarando caber ao suscitante, Promotor de Justiça do Meio Ambiente, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

 

Vistos,

1)Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o Promotor de Justiça do Meio Ambiente de Aparecida e como suscitado o Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo de Aparecida.

Nota-se que o procedimento preparatório n. 12/04, posteriormente convertido em inquérito civil, foi instaurado para apurar eventual ocupação de área de preservação permanente por construções de modo irregular (barracos) (fls. 07).

O procedimento foi instaurado a partir de ofícios encaminhados pela Polícia Militar do Estado de São Paulo à Promotoria de Justiça de Aparecida, os quais noticiavam invasão às margens do Rio Paraíba do Sul, com supressão de vegetação nativa, em área de preservação permanente (fls.3/12).

Consta dos autos que o membro do Ministério Público então oficiante, por entender que a questão de fundo estava relacionada, senão exclusivamente, ao menos precipuamente à atribuição ambiental, encaminhou o procedimento preparatório ao Promotor de Justiça do Meio Ambiente (fls. 32).

De acordo com a vistoria realizada pelo Departamento de Obras da Prefeitura de Aparecida no local do dano, foram constatadas seis construções de madeira, com cerca de bambu (fls. 148).

Nos termos da manifestação de fls. 172/175, o DD. Promotor de Justiça, DR. (...), suscitou conflito negativo de atribuições, porque, segundo seu entendimento, a matéria sob investigação está relacionada à área da Habitação e Urbanismo e não ao Meio Ambiente.

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

A doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).

Embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas, pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

Essa idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central da investigação é a proteção ao meio ambiente. Logo, a questão principal apurada no presente procedimento está afeta às atribuições da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente.

Observou o suscitado, com propriedade, que “nem mesmo há um loteamento e/ou um desmembramento (ainda que clandestino) propriamente dito na área (não houve alienações de lotes por quem quer que fosse), pois meramente invadida por um pequeno grupo de devastadores de APP” (fls. 32).

O Instituto de Criminalística, ao vistoriar o local, informou a existência de 4 (quatro) barracos (fls. 41/42). Posteriormente, a Polícia Militar esclareceu que em uma das ocupações “a construção que lá existia foi demolida e os materiais foram removidos”(fls. 82)

A Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo pelo interesse público mais abrangente (art.114 §2º); (b) tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art.114 §3º); e (c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art.114 §3º).

Muito embora seja comum que em determinada investigação se verifique a existência de mais de um interesse, afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público, no caso dos autos sobressai de forma clara a questão ambiental. Nem se poderia afirmar que o artigo 3º, II, do Ato n. 55/95, de 23 de março de 1995 (PT. N. 28.779/94-PGJ - apenso Pt. n. 899/93-CAO), responsável por modificar e consolidar as normas que regulamentam a atribuição dos Promotores de Justiça de Habitação e Urbanismo e do Meio Ambiente na hipótese de parcelamento do solo em área de proteção ambiental, desloca a atribuição para o Promotor de Justiça do Meio Ambiente “desde que não haja moradias com ocupação, embora tenha ocorrido desmatamento, movimentação de terra, abertura de ruas, demarcação de lotes e quadras, e edificações”.

Ora, se assim é, bastaria que houvesse uma única moradia ocupada para que se reconhecesse a atribuição do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, o que aberraria aos princípios lógicos mais elementares.

Por todo o exposto se vê que a questão central noticiada nos autos está afeta às atribuições da Promotoria do Meio Ambiente, pois não há que se falar em lesão ao direito da habitação e urbanismo na conduta praticada pelos invasores.

Por tudo isto se conclui que o suscitante, Promotor de Justiça com atribuição na área do meio ambiente, deverá prosseguir na investigação.

3)Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao suscitante, Promotor de Justiça do Meio Ambiente de Aparecida, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 14 de abril de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

ef