Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 43.380/09

(PPIC n. 1597/09)

Suscitante: 6º Promotor de Justiça da Promotoria do Patrimônio Público e Social da Capital

Suscitado: 3º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital

 

 

Ementa:

1) Conflito negativo de atribuições. Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) e Promotor de Justiça do Consumidor da Capital (suscitado).

2) Procedimento instaurado para apurar prestação de serviço possivelmente deficitária ou ineficiente por parte da CPTM, que compromete a eficiência e viola direitos básicos do consumidor.

3) Típica questão consumerista, pois o CDC é expresso no que diz respeito à necessidade de defesa e proteção do consumidor de serviços públicos.

4) A pessoa jurídica de direito público pode ser considerada fornecedora;

5) Exigência do CDC de que os serviços, públicos ou privados, sejam prestados de acordo com as normas de proteção do consumidor;

6) Determinação do CDC, em relação à Política Nacional das Relações de Consumo, de ação do Poder Público no sentido de proteger o consumidor e melhorar a qualidade dos serviços prestados;

7) Direito básico do consumidor à adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral;

8) Disposição expressa do CDC, no art. 22, de que os órgãos públicos, ainda que por meio de concessionárias e permissionárias, prestem serviços adequados, eficientes, seguros e contínuos;

9) Necessidade de atuação do Ministério Público, pela Promotoria de Defesa do Consumidor, nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações impostas pelo CDC, com possibilidade de compelir as pessoas jurídicas cumpri-las e a reparar os danos causados;

10) Conflito conhecido e dirimido. Determinação para que os autos sejam encaminhados ao Promotor de Justiça do Consumidor.

 

Vistos.

1) Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 6º Promotor de Justiça da Promotoria do Patrimônio Público e Social da Capital e como suscitado o 3º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital.

O conflito teve origem nos autos do procedimento investigatório em que figura como representante (...) e como representada a CPTM – Companhia Paulista de Trens Metropolitanos. O objeto da investigação é a “má prestação de serviço público na linha férrea do trecho da Estação Guaianazes até a Estação da Luz – superlotação dos trens – falta de preparo dos funcionários”.

Segundo o suscitante, a atribuição para apreciar os fatos é da Promotoria de Justiça do Consumidor, “levando-se em consideração que o problema decorre da prestação de serviço deficitária ou ineficiente da CPTM, cujos usuários optam pela utilização desse meio de transporte”. Acrescenta que se trata de relação de consumo e que “o transporte público coletivo depende de políticas públicas voltadas a implementar melhorias no sistema, visando atender o cidadão que não pode e não quer se utilizar do transporte particular. Essa política, ainda que deficitária, já existe, e não pode ser ampliada por meio de Ação Civil Pública, sob pena de interferência na esfera de discricionariedade do administrador, cuja possível omissão poderá ser recorrente na ocasião das eleições, quando então a população poderá rechaçar o modelo não aprovado”.

Conclui, então, que “não cabe à Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social, determinar à Companhia Paulista de Trens Metropolitanos como ela deve atuar para melhor satisfazer seus usuários, o que poderá ser feito pela ilustrada Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital”.

O 3º Promotor de Justiça do Consumidor, por sua vez, entende que “o presente expediente aponta episódio de desorganização e acerbado descaso aos cidadãos-usuários nos serviços prestados pela CPTM, referente ao trecho Luz até Guaianazes. O tema envolve a administração pública e traduz, data vênia, vulneração a direitos da cidadania, sendo a representação expressa quanto ao desrespeito ao cidadão-usuário no transporte ferroviário”.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.196).

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

Essa idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central da investigação é apurar possível inadequada prestação de serviço público de transporte de passageiros.

Trata-se de típica questão consumerista, sendo que o Código de Defesa do Consumidor, em mais de um dispositivo legal, é expresso no que diz respeito à necessidade de defesa e proteção do consumidor de serviços públicos.

De início, o art. 3° da Lei n. 8.078/90, dispõe que a pessoa jurídica de direito público pode ser considerada fornecedora, isto é, participar de relação de consumo:

Art. 3º - Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

O § 2º do citado dispositivo legal, por sua vez, inclui entre os serviços que devem ser prestados de acordo com as normas de proteção do consumidor os que são fornecidos no mercado de consumo, sem distinção, mediante remuneração.

No que diz respeito à Política Nacional das Relações de Consumo, o art. 4º, incisos II e VII, são expressos ao determinar a ação do Poder Público no sentido de proteger o consumidor e melhorar a qualidade dos serviços prestados:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor;

VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos;

Quanto aos Direitos Básicos do Consumidor, o art. 6º, X, exige a eficácia na prestação dos serviços públicos em geral:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.

De forma clara e contundente, o art. 22 do CDC exige que os órgãos públicos, ainda que por meio de concessionárias e permissionárias, prestem serviços adequados, eficientes, seguros e contínuos:

Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.

O parágrafo único do art. 22 ainda estabelece que, nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código.

Na jurisprudência não há qualquer dúvida quanto à incidência da legislação consumerista em relação aos serviços públicos. Cite-se, a título de exemplo, a decisão proferida pela Terceira Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o agravo regimental no agravo de instrumento n. 1.022.587/RS: “Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor às relações mantidas entre usuário e concessionária de serviços públicos, nos termos do artigo 7º da Lei nº 8987/95” (DJe de 11/09/2008).

A doutrina especializada também não discrepa desse entendimento, exaltando a incidência das normas protetivas do consumidor, sobretudo nos casos em que o serviço é remunerado por tarifa. Nesse sentido a lição de Vidal Serrano Nunes Júnior: “O Código de Defesa do Consumidor pode ser aplicado na relação entre usuário e o titular do serviço público, seja este prestado diretamente pelo Estado, seja prestado por concessionários de serviço público.

Neste diapasão, mister ressaltar que apenas os serviços remunerados por tarifas estão sujeitos à aplicação incondicionada de todas as nuanças do CDC. Todavia, todos os serviços públicos devem observar o dispositivo como paradigma em razão do desmembramento necessário do princípio da eficiência, previsto no caput do art. 37 da Constituição Federal” (“Direito do consumidor”, in Manual de direitos difusos, Coord. de Vidal Serrano Nunes Júnior, São Paulo: Verbatim, 2009, p. 230).

Dessa forma, não se mostra correto, com a devida vênia, o entendimento do suscitado.

Acrescente-se, ainda, que nada impede que a investigação seja realizada em torno da lesão a determinado interesse difuso (v.g. ambiental, consumidor, urbanístico, etc.) e a demanda judicial seja proposta, cumulando pedidos relacionados àquele interesse coletivo específico com a pretensão de aplicação de sanções relacionadas aos atos de improbidade administrativa e reparação de danos ao erário.

Por fim, ainda que estivessem presentes interesses afetos a mais de uma área de atuação, tem sido adotado, como critério de solução, a prevenção, prevista no art. 114, § 3º, in fine, da Lei Complementar nº 734/93, o que também determinaria, no presente caso, a atribuição da Promotoria de Justiça do Consumidor.

Nessas circunstâncias tem preponderado o entendimento pelo qual sendo os interesses metaindividuais de abrangência equivalente, o órgão que primeiro conheceu do fato deve prosseguir na investigação.

Ademais, reiteradamente tem sido afirmado em decisões proferidas em outros conflitos que não se mostra adequado o raciocínio no sentido de que, em todo e qualquer caso, havendo possibilidade de dedução de pretensão para reparação de danos ao erário, ou ainda imputação de prática de atos de improbidade administrativa, deva a investigação ser conduzida sempre pelo membro do parquet que atua como Promotor dos Direitos Constitucionais do Cidadão, bem como que a ação pertinente, para a aplicação das sanções previstas na Lei nº 8429/92, seja exclusivamente por ele proposta.

Posto isso, a atribuição para prosseguir nas investigações é da Promotoria de Justiça do Consumidor.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, Promotor de Justiça do Consumidor, a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 28 de abril de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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