Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 46695/17

Suscitante: 6º Promotora de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

Suscitado: 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

 

 

 

Ementa:

1.      Conflito negativo de atribuições. 6º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) e 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado).

2.      Inquérito civil instaurado para apurar cobrança de propina na Secretaria Municipal de Finanças de São Paulo, especificamente no setor de fiscalização de pagamentos de imposto sobre serviços. A opção da Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital pelo desmembramento já foi adotada, não sendo o caso, agora, de rever tal posicionamento, sob pena de grave insegurança e prejuízo às investigações. Ademais, conforme afirma o suscitante, não houve anterior desmembramento do Inquérito Civil n. 893/2013 a respeito do agente A. F. C., fato posteriormente conhecido. Assim, de rigor, que a investigação prossiga sob a presidência do suscitado. Conexão afastada.

3.      Conflito conhecido e dirimido. Atribuição do 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitado) para continuar na apuração do inquérito civil.

 

Vistos,

 

1)  Relatório.

Instaurou-se o inquérito civil n. 174/2014 para apurar cobrança de propina na Secretaria Municipal de Finanças de São Paulo, especificamente no setor de fiscalização de pagamentos de imposto sobre serviços. Figuram como representados Luis Alexandre Cardoso Magalhães, Eduardo Horle Barcellos, Carlos Augusto de Lallo Leite do Amaral e Ronilson Bezerra, e como pessoa jurídica Cyrela Empreendimentos Imobiliários (fls. 02/2-C).

Conforme manifestação de fls. 374/381, o 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital determinou a remessa dos autos ao 6º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital a fim de que a investigação seguisse em conjunto com o inquérito civil n. 893/2013.

Afirmou o suscitado que lhe foram distribuídos os inquéritos civis ns. 174 e 358/2014, concernentes à apuração do pagamento de propinas aos fiscais Luis Alexandre Cardoso Magalhães, Eduardo Horle Barcellos, Carlos Augusto de Lallo Leite do Amaral e Ronilson Bezerra, referentes à construtora MAC-CYRELLA, e que posteriormente houve a redistribuição do IC 263/2015, no qual se apurava a atuação do auditor fiscal Aloísio Ferraz de Camargo, em conluio com os demais agentes acima nomeados, sendo aquele o intermediário do recebimento de propina referente às obras da MAC-CYRELLA.

Nesse sentido, obtempera que o 6º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital tem sob sua presidência investigações e demandas judiciais relativas às condutas de exigência de vantagem indevida praticadas contra a empresa Mac-Cyrella nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e modus operandi quanto aos agentes investigados. Destarte, conclui que há conexão probatória indissociável pela prevenção.

O membro do Ministério Público suscitante arguiu, em síntese, que o caso “máfia dos fiscais” já foi apreciado no protocolado n. 25.625/2014 e que, em nenhum momento, foi apreciada a participação de Mac-Cyrela ou de Aloisio Ferraz de Camargo na presente investigação; asseverou ainda que não houve anterior desmembramento do denominado “inquérito mãe” (Inquérito Civil n. 893/2013) a respeito do agente Aloisio Ferraz de Camargo, fato posteriormente conhecido. Finaliza por assentar que quer o fato criminoso, quer suas repercussões civis, são diversas do objeto tratado no IC 893/2013 (fls. 384/388).

É o relato do essencial.

2. Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Pois bem.

Verifica-se que chegou à Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital a notícia de que determinados fiscais do Município teriam exigido vantagens ilícitas de empresas responsáveis por empreendimentos existentes na cidade de São Paulo. A informação sobre a prática dos atos ilícitos evidenciou, ainda, que essa conduta, por parte dos referidos fiscais, teria sido praticada por largo espaço de tempo, envolvendo diversas empresas e diversos empreendimentos, em centenas de oportunidades distintas.

Foi então instaurado o Inquérito Civil nº 893/2013 no qual o então 6º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital em exercício proferiu despacho, determinando o desmembramento da investigação em função tanto das empresas que teriam efetuado o pagamento da vantagem ilícita aos fiscais, como em função da diversidade de empreendimento em que isso teria ocorrido.

Assim é que em 16 de dezembro de 2013,  promoveu-se o desmembramento do IC 893/2013, pois, no entender de seu presidente, em razão do elevado número de empreendimentos e agentes públicos investigados, melhor seria que a investigação fosse cindida. O Secretário-Executivo em exercício da Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social autorizou a distribuição das peças de informação aos Promotores de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital.

Enfim, foi a orientação então tomada. Não cabe, nesse momento, questionar se deveriam ou não as investigações seguir sob o manto de um único membro do Ministério Público.

Respeitados os argumentos externados pelo suscitante e pelo suscitado, o quadro de fato que aqui se delineia, embora complexo em função de inúmeros aspectos, é possível, exclusivamente para fins da análise do conflito de atribuições, compreendê-lo de modo objetivo.

Fato é que alguns agentes públicos estabeleceram prévio conluio para praticar atos ilícitos por ocasião do exercício de suas funções, com relação a diferentes empresas e diferentes empreendimentos.

Insta considerar, inicialmente, que a reunião de feitos em razão da prevenção decorrente da conexão ou continência tem como razão de ser a economia processual, com o aproveitamento da prova, a maior probabilidade de acerto na solução final, evitando-se conflitos lógicos entre decisões.

Guardadas as devidas adaptações, essas ideias são aplicáveis também às hipóteses de reunião de inquéritos civis por prevenção decorrente de conexão ou continência, que tem por objetivo otimizar a investigação e, num segundo momento, evitar soluções logicamente conflitantes nas eventuais ações civis públicas, ou mesmo diante da circunstância de haver o membro do Ministério Público já apreciado questão relativa ao mesmo objeto ou a ele conexo.

Pode-se mesmo afirmar, sem temor, que a conveniência é critério determinante para aferir se, em determinada hipótese, deverá ou não ocorrer a reunião de feitos conexos em razão da prevenção. Se uma de suas finalidades é a economia processual, e se no caso específico esta não terá lugar, dever-se-á evitar a reunião.

É bem verdade que boa parte da doutrina reconhece na regra que prevê a reunião de feitos em razão da conexão ou continência uma imposição, e não uma faculdade (Nesse sentido, v.g., Celso Agrícola Barbi, Comentários ao CPC, vol. I, 11ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 2002, p.350, em comentários ao art.105 do CPC; bem como Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, Código de processo civil comentado, 10ª ed., São Paulo, RT, 2008, p.362, nota n.7 ao art.105 do CPC).

Mas, com o devido respeito, essa posição não pode ser aplicada em termos absolutos. A interpretação das regras processuais e procedimentais não pode perder de vista seus fins.

Ademais, embora destacados mais recentemente pela doutrina, não se pode olvidar dos princípios da eficiência, da duração razoável e efetividade que devem nortear todos os processos e procedimentos investigatórios.

Assim, é possível afirmar, por identidade de razões, que se a reunião de procedimentos investigatórios ou de ações conexas levará à inviabilidade do proveito prático desejado, dever-se-á evitar a junção de feitos. Também a interpretação analógica e extensiva levaria à solução aqui propugnada, bastando consultar a solução contida, ao propósito, na legislação processual penal.

Conexão e continência são determinantes da reunião de feitos criminais, com ressalvas, contudo, que incluem a conveniência (cf. art.80 e 82 do CPP). Tais ideias, singelamente alinhavadas, são inteiramente aplicáveis à análise da pertinência da reunião, ou não, de investigações civis a respeito de casos que apresentem, em maior ou menor grau, conexão de qualquer sorte, ainda que probatória.

Em síntese: (a) a regra da prevenção, como forma de definição de competência jurisdicional ou atribuição de órgãos ministeriais não é absoluta; (b) sua aplicação não pode descurar de valores mais relevantes, em especial, a preservação da garantia da inamovibilidade, e a regra do promotor natural; (c) não se deve promover a reunião de feitos por prevenção quando isso significar, em prognóstico formulado com amparo em peculiaridades do caso concreto, risco de maiores dificuldades que vantagens tanto para a investigação, como para ulterior ação em juízo.

Ademais, conforme já salientado em situações semelhantes por esta PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA (Protocolado nº 35.749/2014), não se verifica em cada um desses atos a mesma situação de fato, mas sim diversas situações de fato em que os mesmos agentes atuaram de forma ilícita utilizando o mesmo modo de proceder, interferindo, consequentemente, na atividade de várias e diversas empresas e empreendimentos que, ao que tudo indica também se beneficiaram dessas condutas ilícitas.

Com relação a cada um desses atos – salvo equívoco, mais de quatrocentos casos – será necessário, efetivamente, apurar de forma exauriente todos os contornos de cada fato ilícito. Além da identidade dos agentes públicos envolvidos e a semelhança com relação aos ilícitos praticados, todos os elementos dos fatos a apurar são distintos (empresas envolvidas, dados do empreendimento, valores envolvidos,  testemunhas a serem eventualmente inquiridas, etc.).

Assim, não se pode afirmar que haja conexão pelo objeto da investigação, na medida em que os fatos a serem apurados individualmente são realmente distintos.

Diante da complexidade e amplitude os fatos objeto do Inquérito Civil, das diversas pessoas naturais e jurídicas envolvidas e das consequências jurídicas, não se pode afirmar, a princípio, que os fatos em apuração deveriam estar inseridos no denominado “inquérito mãe”; com efeito, reitere-se que a opção da Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital pelo desmembramento já foi adotada, não sendo o caso, agora, de rever tal posicionamento, sob pena de grave insegurança e prejuízo às investigações. Ademais, conforme afirma o suscitante, não houve anterior desmembramento do Inquérito Civil n. 893/2013 a respeito do agente Aloisio Ferraz de Camargo, fato posteriormente conhecido.

Assim, de rigor, que a investigação prossiga sob a presidência do suscitado.

3)  Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao 1º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 18 de maio de 2017.

 

 

Gianpaolo Poggio Smanio

Procurador-Geral de Justiça

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