Conflito de Atribuições – Cível
Protocolado nº 46.708/11 (Inquérito Civil n. 03/05)
Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Itapecerica da
Serra
Suscitado: Promotora de Justiça de Habitação e
Urbanismo de Embu das Artes
Ementa:
1. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 1º Promotor de
Justiça de Itapecerica da Serra; suscitada: Promotora de Justiça de Habitação e Urbanismo de Embu
das Artes.
2. Inquérito Civil. Conflito de atribuições. Apuração de parcelamento ilegal do solo. Venda de fração ilegal de lotes sem procedimento de registro de loteamento, em desacordo com o sistema previsto na Lei n. 6.766/79.
3) Dúvida quanto à localização do parcelamento. Informações no sentido de que o parcelamento se situa no foro onde oficia o suscitado (Embu).
4) Eventualidade de que fração do parcelamento também se situe no foro onde oficia o suscitante (Itapecirica). Critério da prevenção, por analogia daquele previsto em lei para a solução de conflitos de competência em ações coletivas (art. 2º, parágrafo único, da Lei n. 7347/85). Expressa previsão legal do critério da prevenção para a solução de conflitos de atribuições entre órgãos ministeriais (art. 114, § 3º, da Lei Complementar Estadual n. 734/93).
5) Conflito conhecido e dirimido, com determinação de caber à suscitada prosseguir no feito.
Vistos,
1) Relatório
Tratam estes
autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 1º Promotor de Justiça de Itapecerica da
Serra e como suscitada a Promotora
de Justiça de Embu das Artes.
O presente
procedimento foi instaurado em 2 de junho de 2006, diante da notícia de
eventual parcelamento/desmembramento clandestino do solo, em terreno situado na
comarca de Embu das Artes.
Segundo a
Promotora de Justiça suscitada, grande parte da área está localizada na área de
Itapecerica da Serra e o procedimento criminal tramita na referida comarca. Por
isso, determinou a remessa dos autos à Promotoria de Itapecerica da Serra.
O suscitante,
por sua vez, informa que o loteamento se situa inteira ou parcialmente na
comarca de Embu das Artes, de tal forma que as atribuições são da suscitada,
considerando a prevenção.
É
o relato do essencial.
2) Fundamentação
O
conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.
A
doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do
Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado
ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que
deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério
Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196. g.n.).
Em
outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in
abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução
do Ministério Público “(a) dois ou mais
deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias
atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos
um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que
já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público,
6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).
Embora
os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional,
o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior
quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados
aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem,
com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder
hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.
Como
anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a
autoridade administrativa superior para “distribuir
e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus
agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu
quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e
corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública”
(Direito Administrativo Brasileiro,
33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito
desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso
de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia
Zanella Di Pietro, Direito Administrativo,
19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.
O
reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano
estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado,
anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia
estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na
medida em que “questo vincolo, fondandosi
su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire
amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa
che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo
dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII,
Milano, Giuffre, 1969, p. 626).
Do
mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a
existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos,
de um “potere di risoluzione di conflitti
tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività
degli stessi” (Diritto Amministrativo,
v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).
O
reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo
algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça
são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações
processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de
qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa
atuação.
Em
outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público
atuar, mas pode e deve dizer se deve
ou não atuar, e qual o membro ou
órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.
A
solução do conflito depende, essencialmente, da verificação inicial sobre a
hipótese objeto de investigação.
Como
visto acima, o procedimento investigatório, posteriormente convolado em
Inquérito Civil, foi instaurado para apurar a ocorrência de parcelamento
irregular ou ilegal do solo, valendo como matriz legal para eventual adoção de
providências em juízo os dispositivos da Lei do Parcelamento do Solo (Lei n. 6766/79).
Na
esfera cível, não há qualquer dúvida de que, ocorrendo parcelamento ilegal ou
irregular do solo, ter-se-á a configuração da violação de interesses de ordem
supraindividual, que renderá ensejo, eventualmente, à propositura de ação civil
pública para que os responsáveis sejam compelidos a obrigações de fazer (v.g.
regularizar o empreendimento, adotar medidas de adequação urbanística), não
fazer (v.g. cessação da venda irregular de lotes), pecuniária (v.g. reparação
do dano urbanístico causado), entre outras.
Para
tanto, fazendo uma projeção hipotética da demanda que viria a ser proposta,
chegar-se-á à conclusão de que será aplicável à hipótese a Lei da Ação Civil
Pública (Lei nº7347/85), cujo art. 1º, VI, estipula, como um de seus objetos
possíveis, a pretensão, em juízo, à proteção da ordem urbanística.
Dentro
dessa linha de raciocínio, competente para eventual demanda será, caso venha a
ser proposta, o foro do local do dano, nos termos do art. 2º da Lei n. 7347/85.
Há
situações, entretanto, em que o dano coletivo se produz em mais de um foro.
Para estes casos, o parágrafo único do mencionado art. 2º da Lei da Ação Civil
Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito da
competência: a prevenção é que definirá a correta resposta para tais
indagações.
Essa
breve analogia com questões relativas à competência para o processo coletivo é
importante para o equacionamento de conflito de atribuições.
No
caso em exame, o conflito surgiu porque o suscitado vislumbrou, a partir de
informação inicialmente coligida aos autos que o parcelamento irregular do solo
teria ocorrido na cidade de Embu das Artes.
Contudo,
o suscitado (fls. 197/198) não formulou nenhuma perquirição para o
esclarecimento da questão de fato (efetiva localização do parcelamento
irregular do solo) e chegou à conclusão de que a maior parte do imóvel no qual
foi realizado o parcelamento clandestino do solo está situada, em verdade, no
Município de Itapecerica.
Vale
registrar que o parcelamento irregular realizado concomitantemente em duas
comarcas contíguas (loteamento que está parcialmente localizado em cada uma
delas) gera dano urbanístico a ambas. Nesse caso, ambos os juízos serão
funcionalmente competentes, nos termos do art. 2º da Lei da Ação Civil Pública,
para o processo e julgamento da ação que vier a ser proposta.
Ademais,
o critério da prevenção, válido para a solução de dúvidas e conflitos em
hipóteses dessa natureza, está expressamente indicado no parágrafo único do
art. 2º da Lei da Ação civil Pública.
Nesse
sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal comentada e legislação
constitucional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 483/484, nota n.
6 ao art. 2º da Lei da Ação civil Pública) que, “quando o dano ocorrer ou puder
potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é
competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do
conflito da competência pela prevenção”.
Por
analogia, assim, já seria possível chegar à conclusão de que o membro do
Ministério Público com atribuições em Habitação e Urbanismo que primeiro tomou
conhecimento do caso deveria prosseguir nas investigações.
Mas,
para além da analogia, há norma expressa determinando a adoção de tal critério
para a solução de conflitos de atribuição. É o que diz o art. 114, § 3º, da Lei
Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar nº734/93):
“Art.114 - (...)
§ 3º. Tratando-se de interesses de abrangência
equivalente, oficiará no feito o órgão do Ministério Público investido da
atribuição mais especializada; sendo todas as atribuições igualmente
especializadas, incumbirá ao órgão que por primeiro oficiar no processo ou
procedimento, ou a seu substituto legal, exercer todas as funções do Ministério
Público.” (g.n.).
Posto
isso, a conclusão é no sentido de que a atribuição é da Promotora de Justiça
suscitada, mesmo porque as regras de determinação da competência não valem
apenas para a propositura de ações judiciais. Servem, também, como orientação
para determinar o órgão competente para a instauração de inquérito civil e a
realização de termo de ajustamento de conduta. Em respeito ao princípio do
promotor natural, somente o promotor de justiça lotado no local onde ocorreu ou
deva ocorrer o dano ou o ilícito é que poderá instaurar inquérito civil para
apuração dos fatos.
Remarque-se, por oportuno, que esta Procuradoria-Geral de
Justiça já decidiu conflito negativo de atribuições envolvendo a Promotoria de
Justiça de Embu das Artes e de Cotia, em situação análoga (Protocolado n. 79.352/08).
3) Decisão
Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao suscitado, Promotor de Justiça de Embu das Artes, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.
Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.
Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.
São Paulo, 12 de abril de
2011.
Fernando Grella
Vieira
Procurador-Geral
de Justiça
/md