Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 46.968/2011

Suscitante: 4ª Promotora de Justiça de Lins (Habitação e Urbanismo)

Suscitada: 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital

 

1)     Conflito negativo de atribuições. 4ª Promotora de Justiça de Lins (Habitação e Urbanismo - suscitante) e 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital (suscitado).

2)     Designação de Promotor de Justiça do Consumidor da Capital para recebimento de laudos técnicos de vistoria das condições de segurança de estádios de futebol, nos termos do art. 23 da Lei 10.671, de 15 de maio de 2003 (Estatuto do Torcedor). Designação fundada na maior eficiência da atuação ministerial, bem como na maior facilidade de fiscalização quanto ao cumprimento daquela norma, respeitado o princípio do promotor natural.

3)     Segurança em Estádios de Futebol. Atribuições ministeriais. Avaliação quanto à (a) existência ou não de relação de consumo (art. 3º da Lei 10.671/2003), e (b) existência ou não de situação de risco ou dano local, ou mesmo estadual ou nacional (art. 2º da Lei da Ação Civil Pública; art. 93, II, do Código do Consumidor).

4)     Responsabilidade dos organizadores da competição esportiva ou do mandante do jogo, materializa hipótese de relação de consumo, que pode repercutir só na esfera local, ou mesmo no plano estadual ou nacional. Associação dessa responsabilidade a situações de risco ou insegurança inerentes à organização do evento. Hipótese identificadora de atribuição da Promotoria do Consumidor.

5)     Responsabilidade relacionada apenas a vícios estruturais do prédio (Estádio) em que se realiza o evento, sem que se identifique relação de consumo nos termos do art. 3º da Lei 10.671/2003. Hipótese identificadora da atribuição da Promotoria de Habitação e Urbanismo.

6)     Conflito conhecido e dirimido, determinando caber à suscitante prosseguir na investigação.

Vistos.

1)   Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante a DD. 4ª Promotora de Justiça de Lins (Habitação e Urbanismo) e como suscitado o DD. 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital.

O DD. 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital (suscitado), por força de designação da Procuradoria-Geral de Justiça, recebeu laudo técnico de vistoria das condições de segurança de estádio de futebol situado na cidade de Lins, encaminhado pela Federação Paulista de Futebol, nos termos do art. 23 da Lei 10.671, de 15 de maio de 2003 (Estatuto do Torcedor).

Entendendo que, no caso em exame, as providências a serem adotadas caberiam à Promotoria de Justiça da Comarca, o suscitado encaminhou o expediente a esta última (fls. 3/7).

Por sua vez a DD. 4ª Promotora de Justiça de Lins (suscitante), com atribuição na área de Habitação e Urbanismo, provocou o conflito negativo, afirmando, em síntese, que: (a) o risco decorrente das condições do estádio de futebol vistoriado, da cidade de Lins, são regionais; (b) a atribuição para a investigação ou mesmo para a eventual propositura de ação será da Promotoria de Justiça da Capital; (c) está caracterizada a relação de consumo, devendo atuar, em função disso, a Promotoria do Consumidor da Capital (fls. 68/71)

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço.

Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação ou ação na esfera cível deve levar em consideração os dados do caso concreto.

Pois bem.

A designação do suscitado, DD. 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, nos termos da Portaria nº 8.916, de 2009, foi para “receber os laudos técnicos de vistoria das condições de segurança dos estádios, na forma do artigo 23 da Lei 10.671, de 15 de maio de 2003, a partir de outubro de 2009”, tendo em vista que referido dispositivo legal determina que “a entidade responsável pela organização da competição apresentará ao Ministério Público dos Estados e do Distrito Federal, previamente à sua realização, os laudos técnicos expedidos pelos órgãos e autoridades competentes pela vistoria das condições de segurança dos estádios a serem utilizados na competição.”

Essa designação para recebimento de laudos se funda, essencialmente, no princípio da eficiência que deve inspirar a atuação da Administração Pública, e, em certa perspectiva, a própria atividade fim do Ministério Público.

Mostra-se mais racional, prestigiando a maior eficiência na atuação ministerial, permitir que as entidades organizadoras de eventos esportivos encaminhem os laudos de vistoria a um determinado órgão do Ministério Público previamente identificado.

Solução diversa criaria maior dificuldade tanto para o cumprimento da norma do art. 23 da Lei 10.671/2003 por parte da entidade organizadora de competições desportivas, bem como para a fiscalização, por parte do MP, quanto ao respeito a esse dever legal globalmente considerado.

Isso não significa de antemão, entretanto, que caiba ao suscitado atuar em todos os casos em que esteja em discussão o problema das condições de segurança dos estádios de futebol.  Mesmo porque, assim não fosse, haveria risco de desrespeito ao princípio do promotor natural.

Em outras palavras, a designação antes referida é destinada, exclusivamente, ao recebimento dos laudos. A identificação da atribuição para atuar nos casos concretos depende das circunstâncias de cada hipótese especificamente considerada.

Mas não é só.

A atuação da Promotoria do Consumidor pressupõe a identificação de relação de consumo.

Isso ocorre, em princípio, quando há a aquisição de produto ou serviço pelo seu destinatário final (artigos 2º e 3º do Código do Consumidor - Lei 8.078/90).

Mas também se verifica, por expressa imposição legal, nos casos em que está em pauta a proteção dos interesses do torcedor, visto que nestas situações a lei equipara ao fornecedor “a entidade responsável pela organização da competição, bem como a entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo” (art. 3º do Estatuto do Torcedor, Lei 10.671/2003, g.n.).

Assim, não é incorreto afirmar que a proteção ao interesse do consumidor-torcedor está relacionada à questão da segurança no local do evento esportivo e à organização do evento.

Entretanto, tal elemento, por si só, é insuficiente para a solução da controvérsia relativa à atribuição ministerial.

Há casos em que não se faz presente relação de consumo, residindo, a situação de risco, exclusivamente nas deficiências da própria edificação. Esse quadro sinalizará, inicialmente, para o reconhecimento das atribuições da Promotoria de Habitação e Urbanismo. Exemplos de circunstâncias dessa ordem se verificam em hipóteses em que estádio ou ginásio esportivo é utilizado para eventos envolvendo grupos religiosos, comícios, apresentações musicais ou artísticas gratuitas, entre outras.

Além da questão da identificação da presença ou ausência da relação de consumo, há ainda o problema da dimensão da situação de risco ou de dano.

Casos há em que está em discussão a atuação, no plano estadual ou nacional, da entidade organizadora de Campeonato Estadual ou Nacional de Futebol, por exemplo.

Em outras situações, entretanto, mesmo estando presente a relação de consumo por expressa disposição legal, nos termos do Estatuto do Torcedor, não haverá repercussão estadual ou regional. É o que ocorre em competições locais, ainda que a presença dos torcedores no estádio desportivo se verifique graciosamente, ou seja, sem o pagamento de ingresso.

Em suma, será sempre necessário discernir: (a) primeiro, se na hipótese concreta está em jogo relação de consumo; e (b) segundo, se estiver presente a relação de consumo, se o dano ostenta amplitude estadual ou local.

A resposta positiva à primeira verificação (presença de relação de consumo) levará à identificação da atribuição da Promotoria do Consumidor. Em caso negativo, restará identificada a atribuição da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo.

A resposta positiva à segunda indagação (dano ou risco estadual) levará à identificação da competência jurisdicional e da atribuição ministerial do órgão da Capital do Estado (art. 93, II, do Código do Consumidor); ao passo que a resposta negativa, revelando hipótese de dano local, indicará a competência jurisdicional e atribuição ministerial do local do dano (art. 2º da Lei da Ação Civil Pública).

Assim, para a solução do presente conflito de atribuições, é necessário, antes de tudo, saber se está presente a relação de consumo, e depois verificar se o dano ou risco é estadual ou regional, ou então local.

Tal esclarecimento pode ser extraído do laudo da vistoria do Estádio Municipal Gilberto Siqueira Lopes, de Lins (fls. 8/63).

E, nesse particular, o que se observa no laudo é que as deficiências nele apontadas dizem respeito exclusivamente à estrutura e conservação da própria construção, e não a aspectos relacionados à organização da competição estadual ou nacional.

Frise-se, ainda uma vez, que a atribuição da Promotoria do Consumidor nessa matéria (segurança em relação aos Estádios de Futebol) tem como premissa a identificação da relação de consumo.

E para que esta ocorra é imprescindível a identificação, ao menos em tese, da possibilidade de responsabilização civil do clube mandante do jogo e da entidade organizadora do campeonato, especialmente naquilo que estiver direta ou indiretamente relacionado à segurança e à organização da competição (art. 3º da Lei 10.671/2003).

A razão para tal conclusão é que apenas tais entidades são equiparadas legalmente, pelo Estatuto do Torcedor, ao fornecedor.

De outro lado, a avaliação associada essencialmente às condições estruturais da própria edificação, sem qualquer intersecção hipotética com hipótese de responsabilidade da organização da competição desportiva ou da entidade detentora do mando do jogo caberá à Promotoria de Habitação e Urbanismo.

No caso em exame, conclui-se que:

(a) em função da identificação apenas de vícios estruturais no laudo, não se pode afirmar, de antemão, que esteja configurado dano no plano estadual, sendo mais provável (mormente considerando que o Estádio é utilizado também para outros eventos) que se concretize situação de dano ou risco meramente local;

(b) em função da identificação de vícios estruturais no laudo, e não de aspectos relacionados à organização de evento desportivo ou à conduta de entidade detentora do mando de jogos, apresenta-se com maior densidade a associação da hipótese sob investigação às atribuições da Promotoria de Habitação e Urbanismo.

Por último e não menos importante, averbe-se que, nos casos em que houver sobreposição entre atribuições das duas Promotorias especializadas (Consumidor e Habitação), não estará descartada a solução de conflitos pelo critério da prevenção.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber à suscitante, DD. 4ª Promotora de Justiça de Lins, a atribuição para oficiar no feito.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 26 de abril de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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