Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 4832/2012

(Autos nº 268.01.2010.004054-6. Contr. Nº 584/2010; 3ª Vara de Itapecerica da Serra)

Suscitante: 3º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra

Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra

Ementa:

1)      Conflito negativo de atribuições. 3º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra (suscitante) e 1º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra (suscitado).

2)      Ação de usucapião. Propositura por Associação pretensamente representativa dos titulares de direitos às frações ideais (na prática verdadeiros lotes), para fins de (a) declaração da propriedade sobre o imóvel, e (b) retificação do registro com individualização dos lotes.

3)      Hipótese que, na prática, se assimila a uma ação coletiva com pretensão à tutela de interesses equiparáveis aos direitos individuais homogêneos dos adquirentes de direitos relativos às “frações ideais” (verdadeiros lotes), a despeito das irregularidades relativamente à legislação referente ao parcelamento e uso do solo.

4)      Atribuição para tutela de interesses metaindividuais de área específica. Regra geral consistente na ausência de previsão expressa, no ato de divisão de serviços, da atribuição para oficiar como fiscal da ordem jurídica em feitos individuais relacionados àquela área. Necessidade de interpretação contextual e finalista dos atos de divisão de serviços. Atribuição do órgão ministerial que atua em “feitos cíveis” para oficiar como fiscal da lei em ações individuais, ainda que relacionadas a determinado tema de especialização de interesses metaindividuais.

5)      Diversidade do caso em exame. Previsão específica no Ato Normativo de divisão de serviços, quanto às áreas especializadas de atuação em interesses metaindividuais, do advérbio de modo “inclusive”, relativamente às ações coletivas. Previsão, igualmente, de atribuição para atuação em “feitos criminais” referentes às áreas especializadas em interesses metaindividuais. Interpretação contextual e finalista indicativa de que a divisão, na hipótese em exame, tem o escopo extensivo, para além da simples propositura de ações coletivas ou instauração de inquéritos civis.

6)      Conflito conhecido e dirimido, com determinação de intervenção ministerial por parte do suscitado.

Vistos.

1)  Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 3º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra e como suscitado o DD. 1º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra.

O feito judicial no qual se verificou o conflito negativo (Autos nº 268.01.2010.004054-6. Contr. Nº 584/2010; 3ª Vara de Itapecerica da Serra) resolve-se em ação de retificação de registro cumulada com usucapião, proposta em litisconsórcio por pessoa física e por determinada entidade associativa (Associação dos Amigos da Fazenda Girassol – AGIR), atuando esta última em seu próprio nome e como representante de seus associados, que são proprietários de frações ideais de terreno (na prática verdadeiros lotes).

Ao receber os autos para manifestação, o DD. 3º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra postulou a remessa do feito ao DD. 1º Promotor de Justiça da Comarca, afirmando que este último possui atribuições na área de Habitação e Urbanismo (fls. 366).

O DD. 1º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra, por sua vez, manifestou-se pela restituição dos autos ao outro órgão de execução, salientando, em síntese, que suas atribuições se referem exclusivamente às ações coletivas em matéria de Habitação e Urbanismo, e não a todas as ações individuais em que esse tema seja tratado em caráter principal ou incidental (fls. 368/369).

Diante desse quadro, o DD. 3º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra entendeu por bem suscitar o conflito negativo de atribuições (fls. 373/379), argumentando que: (a) no presente feito, os autores pretendem a retificação de registro bem como a regularização e declaração de usucapião de imóvel situado em Itapecerica da Serra; (b) no referido imóvel foi realizado desmembramento irregular do solo; (c) a Associação autora propõe a ação representando outros titulares de direitos sobre o imóvel (frações ideais que na prática configuram verdadeiros lotes), postulando o reconhecimento do domínio sobre áreas individualizadas; (e) a finalidade da demanda é, portanto, regularizar, por via transversa e inadequada, o desmembramento imobiliário irregular; (f) diante desse quadro, deve se manifestar no feito o suscitado, que possui atribuições na área de Habitação e Urbanismo, visto que a principal questão discutida na hipótese em exame diz respeito não a interesses meramente individuais, mas sim a interesses transindividuais associados à ordem urbanística; (e) o conflito de atribuições deve ser resolvido pelo princípio da especialidade.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço.

Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação ou ação na esfera cível deve levar em consideração os dados do caso concreto.

No feito em análise o que a autora - Associação dos Amigos da Fazenda Girassol (AGIR) pretende é, em síntese, obter a declaração de propriedade (usucapião) da área mencionada na inicial, individualizando o direito real de seus associados, que afirmam serem possuidores de supostas “frações ideais” do imóvel mencionado na inicial, mas que em verdade, ao que tudo indica, são possuidores de lotes definidos e já delimitados territorialmente.

Referida Associação formula ainda pedido subsidiário (para o caso de indeferimento do pedido principal acima referido), embora a ele se refira como pedido sucessivo, a fim de que, caso não seja admitida a declaração individualizada de propriedade de lotes por parte dos seus associados, seja reconhecido o direito de propriedade da própria entidade sobre todo o imóvel.

Entre outras questões, deverão ser necessariamente examinadas, no presente feito, por exemplo: (a) a discutível legitimidade da referida Associação para mover ação judicial em benefício dos seus associados (visto que, salvo equívoco, o Estatuto da entidade – fls. 84/99 – não concede a ela poderes de representação judicial de seus associados; não foram juntadas aos autos procurações outorgadas pelos titulares de direitos possessórios; e a ação é movida em nome da própria entidade, e não dos sócios); (b) a possibilidade ou não de ser realizada a regularização, pela via transversa da declaração individualizada do direito de propriedade sobre lotes determinados (v. pedido 3.1, cf. fls. 25), de desmembramento do solo rural realizado de modo ilegal.

Dessa forma, embora se trate de ação de usucapião, é manifesta a percepção de que a discussão girará em torno do problema da observância das normas legais que regem o parcelamento do solo.

O Ato nº 044/2011- PGJ, de 30 de maio de 2011, disciplina a divisão das atribuições na Promotoria de Justiça de Itapecerica da Serra, contemplando os serviços a cargo do suscitante, DD. 3º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra, e do suscitado, DD. 1º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra, da seguinte forma:

“(...)

1º Promotor de Justiça;

a)     Feitos criminais da 1ª Vara, inclusive suas audiências;

b)     Habitação e Urbanismo, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos;

c)      Meio Ambiente, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos;

d)     Consumidor, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos;

e)     Corregedoria do Registro de Imóveis;

f)       Atendimento ao público.

(...)

3º Promotor de Justiça:

a)     Feitos cíveis e criminais judiciais da 3ª Vara, inclusive suas audiências;

b)     Feitos de final ímpar da Infância e da Juventude, compreendendo crianças e adolescentes infratores;

c)      Patrimônio Público, incluindo a repressão aos atos de improbidade, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos;

d)     Acidentes do Trabalho, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos;

e)     Atendimento ao público.

(...)”

Este Procurador-Geral de Justiça tem decidindo que as atribuições especializadas dos órgãos de execução na esfera dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, são tratadas sempre de forma explícita.

Nesses casos os atos regulamentares que fixam a divisão de serviço concedem a determinado cargo de certa Promotoria de Justiça a missão de atuar em defesa de interesse especificado (meio ambiente, consumidor, patrimônio público, habitação e urbanismo, saúde pública, idoso, etc.).

Essa espécie de previsão diz respeito às ações civis públicas propostas pelo Ministério Público, bem como à atuação, como fiscal da lei, nas ações civis públicas relacionadas àquela matéria propostas por outros legitimados.

Os demais casos não enquadrados nessas hipóteses que dizem respeito, portanto, à atuação ministerial como custos legis em outros processos de natureza individual, são atribuições a respeito das quais os atos regulamentares de divisão de serviços, em regra, não tratam especificamente. E quando não há previsão expressa, esses outros casos se enquadram sob a designação geral da função de oficiar em “feitos cíveis”.

Essa exegese, calcada na análise sistemática e finalista dos atos regulamentares de divisão de serviços entre os órgãos de execução, tem justificado, em outros casos, a conclusão de que a fixação da atribuição especializada para zelo por determinada espécie de interesse metaindividual, tanto na condição de autor como de fiscal de ações coletivas propostas por outros legitimados, não abrange a intervenção como fiscal em ações de natureza individual, por não ter sido esta mencionada expressamente.

Em outros termos, sem que tenha sido formulada no ato de divisão de serviços a especificação relativa à atuação em ações individuais na condição de fiscal da ordem jurídica, a atribuição para intervir recai na regra geral, pela qual cabe ao órgão de execução vinculado à Vara Judicial se manifestar nos “feitos cíveis” que nela tramitem, ou nos “finais” de feitos que ficarem sob sua responsabilidade.

Essa é uma manifestação, contrariu sensu, da regra de hermenêutica pela qual “Lex specialis derrogat generalis”, pois se não há previsão específica, a regra geral deve prevalecer.

A partir dessa constatação é que em outros conflitos de atribuições se decidiu que deve oficiar em ação individual, mesmo que ela apresente alguma repercussão na esfera de interesses metaindividuais de determinada área, o órgão ministerial que atua em “feitos cíveis” na Vara na qual tramita o feito, em conformidade com a divisão por finais dos autos.

No caso em exame, entretanto, algumas peculiaridades se apresentam:

(a) primeiro, a observação de que nas atribuições especializadas por área de atuação em interesses metaindividuais, o Ato Normativo de divisão de serviços da Promotoria de Justiça de Itapecerica da Serra contém dicção manifestamente extensiva, pois se refere a “feitos criminais” bem como utiliza o advérbio de modo “inclusive” ao se referir às ações civis públicas (“Habitação e Urbanismo, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos”, g.n.), deixando entrever que a intenção da norma foi estender a atuação especializada para além da hipótese consistente na propositura de ações coletivas e na instauração de inquéritos civis na temática envolvida;

(b) embora a ação em exame seja, formalmente, uma ação individual (usucapião cumulada com pedido de retificação de registro), a pretensão é praticamente coletiva, pois a Associação autora busca, em verdade, agir em nome próprio na defesa de interesses equiparáveis aos direitos individuais homogêneos dos adquirentes de “frações ideais” (verdadeiros lotes) inseridos na área da matrícula nº 34.813 do Cartório de Registro de Imóveis de Itapecerica da Serra, referida na inicial, a despeito das irregularidades relativas à legislação atinente ao parcelamento do solo.

Diante desse contexto, a solução mais adequada para o presente conflito, fundada na interpretação contextual e finalista do Ato Normativo de divisão de serviços da Promotoria de Justiça em epígrafe, é de que intervenha no feito o Promotor de Justiça com atribuições na área de Habitação e Urbanismo.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 1º Promotor de Justiça de Itapecerica da Serra, a atribuição para oficiar no feito.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 19 de janeiro de 2012.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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