Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 49.948/2011

Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital

Suscitado: 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital

 

 

 

Ementa:

1) Conflito negativo de atribuições. 1º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital (suscitante) e 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital (suscitado).

2) Procedimento que tem por objetivo investigar as condições de segurança em edificação (estádio de futebol Nicolau Alayon).

3) Designação de Promotor de Justiça do Consumidor da Capital para recebimento de laudos técnicos de vistoria das condições de segurança de estádios de futebol, nos termos do art. 23 da Lei 10.671, de 15 de maio de 2003 (Estatuto do Torcedor). Designação fundada na maior eficiência da atuação ministerial, bem como na maior facilidade de fiscalização quanto ao cumprimento daquela norma, respeitado o princípio do promotor natural.

4) Segurança em Estádios de Futebol. Atribuições ministeriais. Avaliação quanto à existência ou não de relação de consumo (art. 3º da Lei 10.671/2003).

5) Responsabilidade dos organizadores da competição esportiva ou do mandante do jogo, materializa hipótese de relação de consumo, que pode repercutir só na esfera local, ou mesmo no plano estadual ou nacional. Associação dessa responsabilidade a situações de risco ou insegurança inerentes à organização do evento. Hipótese identificadora de atribuição da Promotoria do Consumidor.

6) Responsabilidade relacionada apenas a vícios estruturais do prédio (Estádio) em que se realiza o evento, sem que se identifique relação de consumo nos termos do art. 3º da Lei 10.671/2003. Hipótese identificadora da atribuição da Promotoria de Habitação e Urbanismo.

7) Precedente: Protocolado nº 46.968/2011.

8) Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento do 1º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo (suscitante).

 

 

Vistos.

1) Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 1º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital e como suscitado o 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital.

O conflito teve origem nos autos do procedimento investigatório que tem por objeto investigar as condições de segurança em edificação (estádio de futebol Nicolau Alayon, localizado em São Paulo), instaurado em face do encaminhamento, à Promotoria do Consumidor, do Laudo de Vistoria de Engenharia.

O Laudo de Vistoria foi encaminhado em face do que determina o art. 23 da Lei n. 10.671, de 15 de maio de 2003, bem como em face da Portaria n. 8.916, de 28 de outubro de 2009, que designou o 5º Promotor de Justiça do Consumidor para receber os laudos técnicos de vistoria das condições de segurança dos estádios.

O 5º Promotor de Justiça do Consumidor, então, consignou que:

“A atribuição da Promotoria de Justiça do Consumidor não se estende para toda e qualquer situação alusiva à habitação e urbanização de um estádio de futebol” (fls. 10) e deliberou que “o critério da especialidade deve ser invocada para que a atuação da douta Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo ocorra a respeito do exame do conteúdo dos laudos estruturais, pois ela possui atribuições plenas de investigações da habitação e urbanização dos prédios existentes na sua circunscrição, dentre eles os estádios de futebol”.

Por isso, determinou a remessa das peças de informação à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital que, todavia, suscitou o conflito negativo.

Em síntese, o 1º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital consignou seu entendimento no sentido de que deve ser aplicado o critério da prevenção. Além disso, aduziu que:

“O suscitado foi designado para receber os laudos técnicos de vistoria das condições de segurança dos estádios, na forma do art. 23 da Lei 10.671, de 15 de maio de 2003 (Portaria n. 8.916, de 28.10.2009). Por esse motivo que a Federação Paulista encaminhou o laudo.

A Procuradoria-Geral de Justiça decidiu, então, por ocasião da designação feita pela Portaria n. 8916/09, que o 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital é o Promotor Natural para tutelar as condições de segurança dos estádios de futebol. Logo, à exceção dos casos que já tramitam por outras Promotorias de Interesses Difusos e Coletivos, a sobredita decisão fixa a atribuição do suscitado e da Promotoria do Consumidor para toda e qualquer atuação nessa área” (fls. 05).

É o relato do essencial.

 

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.196).

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

Essa ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central da investigação é apurar as condições de segurança em edificação em estádio de futebol.

A designação do suscitado, DD. 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, nos termos da Portaria nº 8.916, de 2009, foi para “receber os laudos técnicos de vistoria das condições de segurança dos estádios, na forma do artigo 23 da Lei 10.671, de 15 de maio de 2003, a partir de outubro de 2009”, tendo em vista que referido dispositivo legal determina que “a entidade responsável pela organização da competição apresentará ao Ministério Público dos Estados e do Distrito Federal, previamente à sua realização, os laudos técnicos expedidos pelos órgãos e autoridades competentes pela vistoria das condições de segurança dos estádios a serem utilizados na competição.”

Essa designação para recebimento de laudos se funda, essencialmente, no princípio da eficiência que deve inspirar a atuação da Administração Pública, e, em certa perspectiva, a própria atividade fim do Ministério Público.

Mostra-se mais racional, prestigiando a maior eficiência na atuação ministerial, permitir que as entidades organizadoras de eventos esportivos encaminhem os laudos de vistoria a um determinado órgão do Ministério Público previamente identificado.

Solução diversa criaria maior dificuldade tanto para o cumprimento da norma do art. 23 da Lei 10.671/2003 por parte da entidade organizadora de competições desportivas, bem como para a fiscalização, por parte do MP, quanto ao respeito a esse dever legal globalmente considerado.

Isso não significa de antemão, entretanto, que caiba ao suscitado atuar em todos os casos em que esteja em discussão o problema das condições de segurança dos estádios de futebol.  Mesmo porque, assim não fosse, haveria risco de desrespeito ao princípio do promotor natural.

Em outras palavras, a designação antes referida é destinada, exclusivamente, ao recebimento dos laudos. A identificação da atribuição para atuar nos casos concretos depende das circunstâncias de cada hipótese especificamente considerada.

Mas não é só.

A atuação da Promotoria do Consumidor pressupõe a identificação de relação de consumo.

Isso ocorre, em princípio, quando há a aquisição de produto ou serviço pelo seu destinatário final (artigo 2º e 3º do Código do Consumidor - Lei 8.078/90).

Mas também se verifica, por expressa imposição legal, nos casos em que está em pauta a proteção dos interesses do torcedor, visto que nestas situações a lei equipara ao fornecedor “a entidade responsável pela organização da competição, bem como a entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo” (art. 3º do Estatuto do Torcedor, Lei 10.671/2003, g.n.).

Assim, não é incorreto afirmar que a proteção ao interesse do consumidor-torcedor está relacionada à questão da segurança no local do evento esportivo e à organização do evento.

Entretanto, tal elemento, por si só, é insuficiente para a solução da controvérsia relativa à atribuição ministerial.

Há casos em que não se faz presente relação de consumo, residindo, a situação de risco, exclusivamente nas deficiências da própria edificação. Esse quadro sinalizará, inicialmente, para o reconhecimento das atribuições da Promotoria de Habitação e Urbanismo. Exemplos de circunstâncias dessa ordem se verificam em hipóteses em que estádio ou ginásio esportivo é utilizado para eventos envolvendo grupos religiosos, comícios, apresentações musicais ou artísticas gratuitas, entre outras.

A resposta positiva à questão (presença de relação de consumo) levará à identificação da atribuição da Promotoria do Consumidor. Em caso negativo, restará identificada a atribuição da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo.

Assim, para a solução do presente conflito de atribuições, é necessário, antes de tudo, saber se está presente a relação de consumo, e depois verificar se o dano ou risco é estadual ou regional, ou então local.

Tal esclarecimento pode ser extraído do laudo da vistoria do Estádio Nicolau Alayon, localizado em São Paulo (fls. 14/113).

E, nesse particular, o que se observa no laudo é que as deficiências nele apontadas dizem respeito exclusivamente à estrutura e conservação da própria construção, e não a aspectos relacionados à organização da competição estadual ou nacional.

Frise-se, ainda uma vez, que a atribuição da Promotoria do Consumidor nessa matéria (segurança em relação aos Estádios de Futebol) tem como premissa a identificação da relação de consumo.

E para que esta ocorra é imprescindível a identificação, ao menos em tese, da possibilidade de responsabilização civil do clube mandante do jogo e da entidade organizadora do campeonato, especialmente naquilo que estiver direta ou indiretamente relacionado à segurança e à organização da competição (art. 3º da Lei 10.671/2003).

A razão para tal conclusão é que apenas tais entidades são equiparadas legalmente, pelo Estatuto do Torcedor, ao fornecedor.

De outro lado, a avaliação associada essencialmente às condições estruturais da própria edificação, sem qualquer intersecção hipotética com hipótese de responsabilidade da organização da competição desportiva ou da entidade detentora do mando do jogo caberá à Promotoria de Habitação e Urbanismo.

No caso em exame, conclui-se que:

(a) em função da identificação apenas de vícios estruturais no laudo, não se pode afirmar, de antemão, que esteja configurado dano no plano estadual, sendo mais provável (mormente considerando que o Estádio é utilizado também para outros eventos) que se concretize situação de dano ou risco meramente local;

(b) em função da identificação de vícios estruturais no laudo, e não de aspectos relacionados à organização de evento desportivo ou à conduta de entidade detentora do mando de jogos, apresenta-se com maior densidade a associação da hipótese sob investigação às atribuições da Promotoria de Habitação e Urbanismo.

Por último e não menos importante, averbe-se que, nos casos em que houver sobreposição entre atribuições das duas Promotorias especializadas (Consumidor e Habitação), não estará descartada a solução de conflitos pelo critério da prevenção.

Sendo assim, a atribuição é da 1ª Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.

 

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitante, 1º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 29 de abril de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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