Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 50.943/10

Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Campos do Jordão

Suscitada: 2º Promotor de Justiça de Campos do Jordão

 

Ementa:

1) Conflito de atribuições entre o 1º Promotor de Justiça, que tem atribuições para atuar nos feitos cíveis e na defesa dos direitos constitucionais do cidadão, e o 2º Promotor de Justiça, que tem atribuições para atuar nos feitos da infância e juventude, nos termos do ATO N.º 041/05 - PGJ, DE 22 DE SETEMBRO DE 2005, que homologou a redivisão de atribuições da Promotoria de Justiça de Campos do Jordão.

2) Mandado de segurança impetrado por menor , de 17 anos de idade, com pedido de antecipação de tutela acolhido para determinar o fornecimento de medicamento de custo elevado e imprescindível ao tratamento da sua saúde.

3) Ação de caráter individual que não tem por causa de pedir a tutela de direito específico da Infância e Juventude.

4) Objeto do processo que é a tutela do direito à saúde, que é direito de todos e dever do Estado. À luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, justifica-se o pedido não apenas em função da idade da impetrante, mas sim para efetivar garantia constitucional de todos os seres humanos, independentemente de sua condição etária.

5) Atribuição, portanto, do Suscitado.

 

Vistos.

1) Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições surgido durante a tramitação, perante a 1ª Vara da Comarca de Campos do Jordão, de ação de mandado de segurança proposta por F. F. L. F., menor impúbere, em face do Município de Campos do Jordão, tendo por objeto o fornecimento de medicamento de custo elevado e imprescindível ao tratamento da sua saúde.

Ocorre que o 1º Promotor de Justiça de Campos do Jordão, que tem atribuição para atuar nos feitos da 1ª Vara Cível, bem como para atuar na defesa dos Direitos Constitucionais do Cidadão, entendeu que a atribuição para atuar no feito é do 2º Promotor de Justiça de Campos do Jordão (suscitado), por se tratar de menor em situação de risco.

Os autos, então, foram encaminhados ao 2º Promotor de Justiça de Campos do Jordão, que tem atribuições para atuar na tutela dos direitos da Infância e Juventude. Sob o argumento de que “o só fato da impetrante ser menor não demanda a atuação do Promotor de Justiça da Infância e Juventude” não é suficiente para justiçar sua intervenção. Acrescentou que “o direito à saúde (com fornecimento de medicamentos) discutido neste processo não é exclusivo dos infantes, mas sim de todos os brasileiros, menores e maiores”.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.196).

De antemão, verifica-se que está, no caso, configurado o conflito de atribuições, embora seja extremamente tênue a linha divisória que distingue a legítima apreciação, pelo Procurador-Geral de Justiça, de um conflito de atribuição concretamente considerado, e eventual manifestação emitida em situação de inexistência de caso concreto a analisar, que poderia configurar violação da independência funcional do membro do Ministério Público, estipulada expressamente como princípio constitucional no art.127 §1º da CR/88.

O respeito à independência funcional, dentro do entendimento que tem prevalecido e que acabou sendo acolhido pelo legislador, é que impede, por exemplo, que recomendações do Procurador-Geral de Justiça aos demais órgãos de execução tenham caráter vinculativo, quanto aos estritos limites relacionados ao específico desempenho de suas funções de execução (cf. art.19 I d da Lei Complementar Estadual nº734/93).

Deste modo, pode-se concluir que a solução de problemas atinentes a atribuições depende de sua concreta configuração, bem como da iniciativa dos órgãos de execução envolvidos, no sentido de suscitar o conflito.

Essa é a razão pela qual a doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.486/487).

A questão da necessidade de respeito à independência funcional encontra bom exemplo nos casos em que há negativa do membro do Ministério Público para oficiar em determinado feito, de natureza cível.

O fundamento que tem sido adotado para solução de casos desta natureza é a analogia com o art.28 do Código de Processo Penal (Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.537; Emerson Garcia, Ministério Público, cit., p.73).

Mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p.421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica”(Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969,p.626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ªed., Milano, Giuffrè, 1993, p.312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores e Procuradores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

O pedido inicial foi deduzido perante o Juízo Cível comum, mesmo porque o pedido não se justifica na condição de adolescente da autora, mas sim no alto custo econômico do medicamento por ela necessitado.

Como se vê, no caso específico não está em discussão direito específico da Infância ou Juventude. Por outras palavras, o pedido não se justifica apenas na condição de adolescente da autora, mas sim na sua hipossuficiência econômica para a aquisição do medicamento, nos termos da declaração de fls. 64 dos autos, decorrente da exigência judicial de que, sob pena de extinção do processo, fosse demonstrada a impossibilidade econômica do paciente em adquirir o medicamento (fls. 56).

A impetrante está regularmente assistida pela sua representante legal, não estando configurada a hipótese do art. 98, II, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

De outro lado, demonstrada a necessidade financeira da impetrante, que deduz pretensão legítima e constitucionalmente garantida no sentido de ser assegurado o seu direito à saúde e, em última instância, à vida.

Por fim, importante consignar que a saúde é direito de todos e dever do Estado e, à luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, justifica-se o pedido não apenas em função da idade da impetrante, mas sim para efetivar garantia constitucional de todos os seres humanos, independentemente de sua condição etária.

Posto isso, conheço do conflito de atribuições e decido que a atribuição para se manifestar nos autos é do 1º Promotor de Justiça de Campos do Jordão (suscitado).

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, 1º Promotor de Justiça de Campos do Jordão, a atribuição para oficiar nos autos.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 23 de abril de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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