Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 51.192/2010

(Ref. Ação Popular nº 347.01.2009.008423-1; ordem nº 1491/2009 – 3ª Vara Cível de Matão)

Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Matão (acumulando atribuições do 3º Promotor de Justiça)

Suscitado: 4º Promotor de Justiça de Matão

Ementa:

1)     Conflito negativo de atribuições. 1º Promotor de Justiça de Matão, acumulando atribuições do 3º Promotor de Justiça (suscitante) e 4º Promotor de Justiça de Matão (suscitado).

2)     Ação popular. Ato de divisão de serviços da Promotoria de Justiça. Previsão de atribuição do suscitante para oficiar nos “feitos cíveis” da Vara Judicial. Atribuição do suscitado para “Cidadania, incluindo a repressão aos atos de improbidade, a defesa do patrimônio público”.

3)     Interpretação dos atos de divisão de serviços. Análise contextual e finalista. Princípio da especialidade. As atribuições especializadas são discriminadas expressamente. Atuação especializada, como regra, relacionada à atuação como autor ou fiscal em ações civis públicas. Analogia com o art. 295, VIII e IX da Lei Complementar nº 734/93, referente às Promotorias Especializadas da Capital. Atuação como fiscal da ordem jurídica, afora os casos de ação civil pública, que recai no órgão com atribuição para oficiar em “feitos cíveis”.

4)     Não ocorrência de prevenção em decorrência de expedição de recomendação. Prevenção: configuração apenas em função da anterior atuação no feito considerado. Pressuposto da prevenção: existência concomitante de atribuições de dois órgãos, não verificada na hipótese.

5)     Eventualidade de propositura de ação civil pública, e reunião, para julgamento conjunto, com a ação popular, em virtude da conexão (art. 105 do CPC). Caso em que caberá atuar no feito um só órgão de execução, revestido de atribuição mais especializada, cf. art. 114, § 3º da Lei Complementar nº 734/93.

6)     Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitante prosseguir no feito.

Vistos.

1)Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 1º Promotor de Justiça de Matão (acumulando atribuições do 3º Promotor de Justiça), e como suscitado o DD. 4º Promotor de Justiça de Matão, nos autos da Ação Popular nº 347.01.2009.008423-1 (ordem nº 1491/2009 – 3ª Vara Cível de Matão).

De acordo com a suscitante, DD. 1º Promotor de Justiça de Matão (acumulando atribuições do 3º Promotor de Justiça), trata-se de ação popular proposta em face do Senhor Prefeito Municipal de Matão, cujo objeto gira em torno da discussão a respeito da licitude da contratação de serviços advocatícios sem prévia licitação, para fins de defesa da Municipalidade em repetitivas causas de natureza trabalhista, a despeito da ausência dos requisitos legais da singularidade do serviço e notória especialização.

Vindo os autos com vista ao suscitante, requereu este sua remessa ao 4º Promotor de Justiça, que tem atribuições em sede de direitos constitucionais do cidadão e repressão a atos de improbidade administrativa.

Entretanto, o 4º Promotor de Justiça, ao receber o feito, aduziu não ter atribuições para atuar, sem, contudo, suscitar o conflito.

Diante disso, o 1º Promotor de Justiça (acumulando as atribuições do 3º Promotor de Justiça), suscitou o conflito, afirmando que: (a) cabe ao suscitado (4º Promotor de Justiça) oficiar na ação popular, pois ele detém atribuições para atuar em feitos a respeito de direitos constitucionais do cidadão e repressão a atos de improbidade administrativa; (b) a ação popular diz respeito a contratação de advogada sem licitação, com desrespeito à Lei nº 8.666/93, havendo possibilidade de configuração de ato de improbidade previsto na Lei nº 8.429/92; (c) a contratação questionada na ação popular foi também objeto de representação endereçada ao 4º Promotor de Justiça (que rendeu ensejo à instauração do Inquérito Civil nº 011/2009) antes mesmo da propositura da ação popular, e antes que houvesse manifestação do suscitante nos autos desta; (d) há outras duas ações populares relativas a fatos idênticos (contratação de advogado sem licitação – feitos nº 1.158/2009 e 1.160/2009) tramitando na 1ª Vara de Matão, na qual oficia o suscitado (4º Promotor de Justiça); (e) atenderia melhor ao interesse público que o suscitado oficiasse no presente feito, em função das suas atribuições; (f) caso o suscitado (4º Promotor de Justiça), em função de suas atribuições na área da cidadania, venha a ajuizar ação civil pública, em função da conexão ela será reunida à ação popular, dada a prevenção do juízo da 3ª Vara de Matão, firmada na ação popular em questão (fls. 5/12).

O suscitado, DD. 4º Promotor de Justiça de Matão, por sua vez pontuou que: (a) não tem atribuições para oficiar no feito; (b) a função de oficiar nos mandados de segurança e ações populares que tramitam na 3ª Vara Cível de Matão é do suscitante (fls. 144).

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Na situação em exame, em suma, a solução do conflito residirá em definir se deve oficiar em determinada ação popular (na qual se debate a respeito da licitude da contratação de advogado sem licitação) o Promotor de Justiça que tem atribuições na área dos direitos constitucionais do cidadão (suscitado) ou se deve atuar naquele feito, como fiscal da lei, o Promotor de Justiça que tem atribuição para oficiar nos feitos de natureza cível da 3ª Vara de Matão (suscitante).

A divisão de atribuições da Promotoria de Justiça de Matão foi fixada pelo Ato nº 115/2008 – PGJ, de 26 de setembro de 2008. Ao suscitante, que acumula momentaneamente as funções do 3º Promotor de Justiça, foram fixadas atribuições para oficiar nos feitos cíveis da 3ª Vara, ao passo que ao suscitado, 4º Promotor de Justiça, foram estipuladas atribuições para “Cidadania, incluindo a repressão aos atos de improbidade, a defesa do patrimônio público”.

A interpretação dos atos normativos que disciplinam a divisão de serviços no âmbito das Promotorias de Justiça deve ser feita de modo contextual e finalista. A análise literal da regra, embora seja um dos elementos para sua compreensão, não é suficiente, por si só, para o equacionamento das dúvidas e conflitos.

É correta a observação de que pode ser conveniente a atuação como fiscal da lei, em ação popular, do órgão de execução com atribuições especializadas para a defesa do patrimônio público. Isso, na medida tal solução pode render ensejo tanto ao conhecimento mais abrangente dos casos relacionados ao tema na comarca, como ainda complementar as investigações que realiza e suas iniciativas processuais.

Nada obstante, é preciso indagar se essa solução, possivelmente conveniente, encontra amparo no ato regulamentar de divisão de serviços.

Em regra as atribuições especializadas dos órgãos de execução na esfera dos interesses difusos, dos interesses coletivos e dos interesses individuais homogêneos, são tratadas de forma explícita. Nesses casos, pelo que ordinariamente se observa os atos que fixam a divisão de serviço concedem a determinado cargo de certa Promotoria de Justiça a missão de atuar em defesa de interesse especificado (meio ambiente, consumidor, patrimônio público, etc.). E as regras de experiência demonstram, do mesmo modo, que essa atuação, assim fixada, diz respeito às ações civis públicas propostas pelo Ministério Público, como também à atuação, como fiscal da lei, nas ações civis públicas relacionadas àquela matéria propostas por outros legitimados.

Os demais casos não enquadrados nessas hipóteses (ou seja, de propositura de ações coletivas e atuação como fiscal da lei nas ações civis públicas propostas por outros legitimados), que dizem respeito, portanto, à atuação ministerial como custos legis em outros processos, são atribuições a respeito das quais os atos regulamentares de divisão de serviços, em regra, não tratam especificamente. Esses outros casos normalmente se enquadram sob a designação geral da função de oficiar em “feitos cíveis”.

Essa exegese, calcada na análise sistemática e finalista, seria suficiente para justificar a conclusão no sentido de que a fixação da atribuição do suscitado, em ato normativo, para “Cidadania, incluindo a repressão aos atos de improbidade, a defesa do patrimônio público”, não tendo mencionado expressamente a atuação como custos legis em ações populares, não engloba tal atribuição.

Em outros termos, sem que tenha sido formulada no ato de divisão de serviços a especificação, a atuação em ações populares na condição de fiscal da ordem jurídica recai na regra geral, pela qual cabe ao órgão de execução vinculado à Vara Judicial manifestar-se nos “feitos cíveis” que nela tramitem.

Essa é uma manifestação, contrariu sensu, da regra de hermenêutica pela qual “Lex specialis derrogat generalis”: se não há previsão específica, prevalece a regra geral.

Em outras palavras, se a atribuição especializada está relacionada, como ensina a experiência comum, à atuação do Promotor de Justiça como autor de ações coletivas, ou à atuação como fiscal da lei em ações civis públicas, a inclusão de outras atribuições dependeria de previsão expressa.

Essa lógica foi admitida pela própria Lei Orgânica Estadual do Ministério Público. Note-se que de acordo com o art. 296, caput da Lei Complementar Estadual nº 734/93, foi estabelecido que aos cargos criminais e cíveis são atribuídas todas as funções relativas à sua área de atuação, salvo as que disserem respeito a cargos especializados.

Note-se que a analogia também favorece essa solução.

Na Lei Complementar nº 734/93, há previsão específica de atribuições das Promotorias de Justiça especializadas na Comarca da Capital. No art. 295, VIII, está prevista a função do Promotor de Justiça de Mandados de Segurança para “mandados de segurança, ações populares, ‘habeas data’ e mandados de injunção ajuizados na primeira instância”; enquanto no art. 295, IX (red. Lei Complementar estadual nº 1.083, de 17 de dezembro de 2008), está prevista a função do Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social para “defesa da probidade e legalidade administrativas e da proteção do patrimônio público e social”.

Assim, se de acordo com o disposto nos art. 295, VIII e IX da Lei Complementar nº 734/93 é a própria Lei Orgânica Estadual Paulista que, ao menos na Capital, exclui das atribuições de defesa do patrimônio público e social a atuação como fiscal da ordem jurídica em ações populares, é possível afirmar que, além da regra da especialidade (só cabe à função especializada a atuação na matéria e nos feitos que lhes forem especificamente reservados), a analogia com o referido dispositivo também serve para solucionar conflitos como o que ora se apresenta.

Também não está caracterizada a prevenção, por ter o suscitado, como mencionado pela suscitante, instaurado inquérito civil para apuração dos mesmos fatos noticiados na ação popular.

A prevenção se caracteriza, tanto para o órgão judicial, como, analogicamente, para o órgão de execução do Ministério Público, pelo exercício do respectivo ofício, com anterioridade, em determinado feito. Em outras palavras, é a atuação no feito, e não o conhecimento do assunto, que define a ocorrência da prevenção.

Nesse sentido é que Cândido Rangel Dinamarco assenta, ao tratar da matéria em sede jurisdicional, que a prevenção se deve ao “fato de um juiz haver, por qualquer modo, chegado ao processo antes dos demais” (Instituições de Direito Processual Civil, t. I, São Paulo, Malheiros, 2001, p. 617). No mesmo sentido Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, Comentários ao CPC e legislação extravagante, 9. Ed., São Paulo, RT, 2006, p. 315, notas n. 1, 2 e 3 ao art. 106 do CPC, aplicáveis mutatis mutandis).

Ademais, tanto em sede jurisdicional como administrativa, a prevenção não é um critério de determinação, mas sim de fixação de competência, que tem como pressuposto que os órgãos envolvidos sejam igualmente competentes para determinado caso. Se um dos órgãos não tem atribuições para a hipótese considerada, não há falar-se em prevenção.

Nesse sentido afirma Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 7. Ed., São Paulo, Saraiva, 1996, p. 65/66, que “devemos supor dois ou mais juízos que, pelas regras gerais, seriam, em tese, igualmente competentes. Pela prevenção, apenas em um deles a competência é ‘fixada’, tornando-se os demais incompetentes.”

E no caso em exame, ficou assentado acima que a atribuição não era concorrente para oficiar como fiscal da lei na ação popular, mas sim do suscitante, que oficia nos feitos cíveis na Vara na qual tramita aquele feito.

Esse quadro não se altera em função da expedição de recomendação pelo suscitado, nos autos do inquérito civil por ele instaurado: o encaminhamento da recomendação foi atividade realizada no âmbito da investigação civil, e não na ação popular.

De outro lado eventual propositura de ação civil pública ou mesmo ação de improbidade administrativa pelo suscitado, DD. 4º Promotor de Justiça de Matão, em razão dos mesmos fatos noticiados na ação popular, em situação manifesta de conexão de ações por identidade da causa de pedir, e virtual reunião dos feitos para julgamento conjunto (art. 103 e 105 do CPC), caso ocorra, não deverá gerar as dificuldades apontadas na respeitável manifestação do suscitante.

Caso essa situação realmente ocorra, não deverão os dois órgãos de execução oficiar conjuntamente, um como autor da ação de improbidade, e outro como fiscal da lei na ação popular.

Os feitos reunidos passam a receber tratamento único: a reunião das ações ocorre para que a instrução e julgamento sejam conjuntas, nos termos do art. 105 do CPC. Passam a ser tratados como se os autos fossem unificados, com uma só sentença.

Nesse sentido Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, Comentários ao CPC e legislação extravagante, cit., p. 314, nota n. 2 ao art. 105 do CPC, para quem “devem ser julgadas pelo mesmo juiz, na mesma sentença”. Assim também o entendimento de Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, cit., p. 65.

Desse modo, havendo a reunião, não seria correto concluir que dois órgãos de execução deveriam prosseguir atuando no caso, mormente considerando que a Lei Complementar nº 734/93, no art. 114, caput, determina expressamente que “no mesmo processo ou procedimento não oficiará simultaneamente mais de um órgão do Ministério Público.”

Surgiria então a indagação a respeito de qual dos dois órgãos deveria atuar, respondida prontamente pelo art. 114, § 3º da Lei Complementar nº 734/93: diante da reunião dos feitos, caberia ao o Promotor de Justiça que exerce a atribuição mais especializada, ou seja, aquele que detém a função de defesa dos Direitos Constitucionais do Cidadão e do Patrimônio Público, autor da ação civil pública ou da ação de improbidade administrativa, seguir atuando nos feitos reunidos.

Por todos os motivos expostos, o conflito deve ser conhecido mas não será acolhido.

3)Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber à suscitante, acumulando as atribuições do DD. 3º Promotor de Justiça de Matão, seguir oficiando nos autos da ação popular como fiscal da ordem jurídica.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 03 de maio 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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