Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 51.215/2010

(Autos n. 105/01)

Suscitante: 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital

Suscitado: 6º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital

 

 

 

Ementa:

1) Conflito negativo de atribuições. 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital (suscitante) e 6º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital (suscitado).

2) Procedimento que tem por objetivo investigar as condições de segurança em edificação (estádio de futebol).

3) Possível existência de relação de consumo, nos moldes do art. 2º do CDC, bem como de questão envolvendo segurança de edificação privada. Dificuldade, no caso concreto, de se identificar o interesse de maior abrangência.

4) Aplicação do critério da prevenção (art. 114, § 3º, da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

5) Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento do 6º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital (suscitado).

 

 

 

Vistos.

1) Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital e como suscitado o 6º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.

O conflito teve origem nos autos do procedimento investigatório que tem por objeto investigar as condições de segurança em edificação (estádio de futebol do Parque São Jorge e Dependências do Sport Club Corinthians Paulista), que tramitava, desde o início do ano de 2000, perante a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital. É fato que o procedimento foi arquivado em 02 de outubro de 2003, pois no entender de seu presidente não havia mais ilícitos a serem apurados (fls. 148).

O Conselho Superior do Ministério Público homologou o arquivamento (fls. 153).

Remarque-se que o procedimento retomou seu curso em maio de 2009, com novas diligências postuladas pelo suscitado.

Posteriormente, o 6º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital lançou manifestação nos autos (fls. 192/194), concluindo que “o objeto da investigação do presente inquérito civil não encontra liame para com as atribuições desta Especializada, vez que traz verdadeira relação de consumo, em face da existência de um vincula de natureza consumerista entre os torcedores e a socieadade civil e recreativa denominada SPORT CLUB CORINTHIANS PAULISTA”.

Distribuídos os autos ao 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, foi suscitado o conflito negativo de atribuições, sob o argumento de que “as atribuições da Promotoria de Justiça do Consumidor não se estendem para toda e qualquer situação alusiva à habitação e urbanização de um estádio de futebol”, embora também tenha reconhecido que “tratando-se o Campeonato Paulista, a Copa do Brasil e o Campeonato Brasileiro de competições oficiais elaboradas por entidade cuja atividade e organização transcendem ao local de um estádio de futebol, impondo o Estatuto do Torcedor, expressamente, a responsabilidade civil da entidade que organiza a competição e da pessoa física do seu respectivo dirigente, evidencia-se a atribuição da Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital”.

Em conclusão, o suscitante afirmou que “o critério da especialidade deve ser invocado para a atuação da doutra Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, que possui atribuições plenas de investigações da habitação e urbanização dos prédios existentes na sua circunscrição, dentre eles os estádios de futebol”.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.196).

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

Essa idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central da investigação é apurar as condições de segurança em edificação (estádio de futebol do Parque São Jorge e Dependências do Sport Club Corinthians Paulista).

É possível constatar a existência de relação de consumo, em função de que o conceito de consumidor adotado pelo legislador abrange as situações de “acidente de consumo”.

De outro lado, também está presente interesse afeto às atribuições da Promotoria de Habitação e Urbanismo, pois há a questão da segurança de edificação privada, que levou a referida promotoria especializada, de forma louvável, a agir de ofício para investigar referido fato.

Nesse contexto, pode-se concluir que razão assiste por ora ao suscitante, sendo oportuno que intervenha no caso a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, pois é oportuno anotar que se afigura extremamente comum que, em determinada investigação, verifique-se a existência de mais de um interesse, afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público. Isso decorre da própria complexidade dos interesses coletivos, cujo dinamismo faz com que nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.

Em outras palavras, é corriqueiro que haja, em certo caso, sobreposição de matérias atinentes a diferentes áreas de atuação.

A Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº 734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo pelo interesse público mais abrangente (art. 114, § 2º); (b) tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art. 114, § 3º); e (c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art. 114, § 3º).

Diante dos três critérios indicados em lei, acima referidos, cumpre examinar qual deles serviria ao caso versado nestes autos.

Tratando do tema, Hugo Nigro Mazzilli anota que “se houver mais de uma causa bastante para a intervenção do Ministério Público no feito, nele funcionará o membro da instituição incumbido do zelo do interesse público mais abrangente”, esclarecendo que para tais fins, a análise da abrangência deve ser feita no sentido do individual para o supra-individual (Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 421/422).

Assim, pondere-se, como esclarecimento, que em casos envolvendo conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses metaindividuais, em que desde logo fique demonstrada, de forma concreta, a presença de fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção (art. 114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

Aliás, como reforço a tal raciocínio, valeria trazer à colação também a observação de que no processo coletivo, a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art. 2º da Lei nº 7347/85. Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do mencionado art. 2º da Lei da Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito da competência: a prevenção.

Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p. 483/484, nota nº 6 ao art. 2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

Anote-se, ademais, que o critério da prevenção, quando o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com atribuições para a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende ao interesse geral, à continuidade, à eficiência, e à eficácia da atividade ministerial.

Deste modo, ainda que se conclua que no caso concreto há interesses relacionados a mais de uma área de atuação em defesa de interesses supra-individuais, ostentando abrangência equivalente, o órgão ministerial que primeiro tomou contato com o caso (que já vinha conduzindo a apuração) deve prosseguir na investigação, adotando eventualmente as providências judiciais cabíveis. Sendo assim, a atribuição é da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo.

Uma última observação, a título de obiter dictum.

Não se deve perder de vista, em casos como este, que o fundamento da atuação da Promotoria do Consumidor é a existência da relação de consumo, que nas hipóteses relacionadas ao Estatuto do Torcedor, decorre também de expressa disposição legal (art. 3º, bem como art. 40 da Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003).

A proteção ao interesse do consumidor-torcedor está relacionada à questão da segurança no local do evento esportivo, na qual se insere, entre outras coisas, o problema da segurança da edificação.

Entretanto, em outros casos em que não se fizer presente a relação de consumo, ou o problema residir exclusivamente na questão da segurança da edificação (sem qualquer liame com a relação de consumo), o quadro sinalizará para o reconhecimento das atribuições da Promotoria de Habitação e Urbanismo, como quando o estádio ou ginásio esportivo é utilizado para eventos envolvendo grupos religiosos, comícios, apresentações musicais ou artísticas gratuitas, entre outras.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, 6º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 25 de maio de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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