Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 53.053/2010

Suscitante: 5º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes

Suscitado: 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes

 

Ementa:

1) Conflito negativo de atribuições. 5º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (suscitante) e 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes (suscitado). Inquérito civil instaurado para apurar notícia de ocupação ilegal do solo, com inúmeras submoradias e retalhamento de área compreendida entre o Conjunto Habitacional Santo Ângelo e o Parque São Martinho, local inserido na Área de Proteção e Recuperação de Mananciais ao sul do Município de Mogi das Cruzes.

2) Inteligência do art. 2º do Ato n. 55/95 – PGJ, de 23 de março de 1995 (PT. N. 28.779/94-PGJ - apenso Pt. n. 899/93-CAO), no sentido de que o dano ao meio ambiente relacionado com o parcelamento irregular do solo em área de proteção ambiental será da atribuição do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo.

3) Muito embora se possa dizer que haja sobreposição de atribuições, percebe-se com segurança que a matéria investigada nos autos está relacionada ao membro do Ministério Público com atribuição na área da Habitação e Urbanismo, uma vez que não se encontram presentes as hipóteses que autorizam deslocar a atribuição do Promotor de Justiça da Habitação e Urbanismo para o Promotor de Justiça do Meio Ambiente, à luz do art. 3º do Ato n. 55/95 – PGJ, de 23 de março de 1995 (PT. N. 28.779/94-PGJ - apenso Pt. n. 899/93-CAO). Questão central noticiada nos autos afeta às atribuições da Promotoria de Habitação e Urbanismo. 

4) Conflito conhecido e dirimido, declarando caber ao suscitado, 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

 

Vistos.

1) Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 5º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes e como suscitado o 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes.

É dos autos que a 2ª Promotora de Justiça de Brás Cubas instaurou em dezembro de 2003 inquérito civil para apurar notícia de ocupação ilegal do solo, com inúmeras submoradias e retalhamento de área compreendida entre o Conjunto Habitacional Santo Ângelo e o Parque São Martinho, local inserido na Área de Proteção e Recuperação de Mananciais ao sul do Município de Mogi das Cruzes (fls. 2/3).

Consta dos autos parecer técnico da lavra dos assistentes técnicos do CAEX acerca das ocupações irregulares em área de recuperação e proteção de mananciais situada no distrito de Jundiapeba, no município de Mogi das Cruzes (fls. 253/278). Consta, também,  Informação Técnica DUSM/ET-AT n. 205/06, do Departamento de Uso do Solo Metropolitano, sobre a ocupação irregular localizada entre o Conjunto Habitacional Santo Ângelo, o Parque São Matinho e o Parque das Varinhas (fls. 675/682). Novos esclarecimentos técnicos foram prestados por meio da Informação Técnica n. 395/08, também do Departamento de Uso do Solo Metropolitano (fls.1173/1176).

Em virtude da instalação da Vara Especializada da Fazenda Pública na Comarca de Mogi das Cruzes, o Promotor de Justiça presidente do Inquérito Civil 01/2003 determinou a remessa dos autos à Promotoria de Justiça de Mogi das Cruzes (fls. 1388/1389).

O Promotor de Justiça Secretário da Promotoria de Justiça de Mogi das Cruzes, ao receber o expediente, determinou a remessa dos autos ao 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes, que possui atribuição na esfera da Habitação e Urbanismo (fls. 1393, v.).

Ocorre que, ao receber os autos, o 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes encaminhou-os ao membro do Ministério Público com atribuição na área ambiental (fls. 1394), que, por sua vez, suscitou o conflito negativo de atribuições (fls. 13991402).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

A doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).

Embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas, pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

Essa idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Muito embora seja comum que em determinada investigação se verifique a existência de mais de um interesse, afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público, no caso dos autos sobressai de forma clara a questão urbanística.

Observou o suscitante, com propriedade: “Conquanto o caso esteja em sede de licenciamento ambiental perante a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (v. fls. 1301/1317) necessário ressaltar que há atualmente, segundo informação oficial, 388 famílias que já ocupam a propriedade e desenvolvem uma agricultura intensiva de hortaliças” (fls.1399). Remarque-se, por oportuno, o quanto disposto no Ato n. 55/95 – PGJ, de 23 de março de 1995 (PT. N. 28.779/94-PGJ - apenso Pt. n. 899/93-CAO), que modifica e consolida as normas que regulamentam a atribuição dos Promotores de Justiça de Habitação e Urbanismo e do Meio Ambiente na hipótese de parcelamento do solo em área de proteção ambiental:

“Artigo 1º. Observar-se-á o princípio da unicidade de atuação dos Órgãos do Ministério Público na apuração e adoção das medidas judiciais e extrajudiciais em defesa do meio ambiente e do urbanismo, na hipótese de parcelamento irregular do solo em área de proteção ambiental.

Artigo 2º. O dano ao meio ambiente relacionado com o parcelamento irregular do solo em área de proteção ambiental será da atribuição do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, o qual providenciará, prontamente, nos autos da peça informativa ou do procedimento instaurado, exame pericial ou estudo técnico, sem prejuízo de outras medidas, observado o disposto no artigo 5º deste Ato.

Artigo 3º. Deslocar-se-á a atribuição para o Promotor de Justiça do Meio Ambiente sempre que, diante do laudo pericial ou documento equivalente e dos demais elementos de prova coligidos, restar evidenciado que o dano ambiental está relacionado com:

I-) parcelamento rural, ou seja, executado com finalidade de exploração agrícola, extrativa ou pastoril, e que respeita o módulo mínimo de fracionamento fixado pelo INCRA ou pela legislação municipal;

II-) parcelamento para fins urbanos, desde que não haja moradias com ocupação, embora tenha ocorrido desmatamento, movimentação de terra, abertura de ruas, demarcação de lotes e quadras, e edificações.

§ 1º. Será da atribuição do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo o parcelamento do solo para fins urbanos que, embora realizado na zona rural, destine-se à edificação para moradia ou lazer, na modalidade de sítios ou chácaras de recreio, ou cujos lotes, identificados através das alienações a qualquer título, ou das demarcações, sejam inferiores ao módulo mínimo de fracionamento estabelecido pelo INCRA ou pela legislação municipal.

§ 2º. O Promotor de Justiça do Meio Ambiente, com a atribuição definida neste artigo, promoverá também a defesa dos interesses protegidos pelas normas de parcelamento do solo, devendo considerar, em eventual ação civil pública ou acordo extrajudicial, a indenização, em favor dos adquirentes de lotes, dos valores por eles pagos ao parcelador ou preposto, bem como dos danos advindos de eventual demolição de edificações situadas em áreas de risco ou de proteção ambiental.

Artigo 4º. Nas hipóteses definidas neste Ato, de danos ambientais relacionados com parcelamento do solo para fins urbanos, da atribuição do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, a este caberá também considerar, comprovado o dano ambiental, a possibilidade de sua recuperação, ainda que parcial, ou mitigação dos impactos ambientais e, não sendo possível, a indenização devida, seja no ajuizamento da ação civil pública, seja em eventual acordo extrajudicial.

Artigo 5º. Para os fins previstos nos artigos 2º e 3º deste Ato, o Promotor de Justiça que receber as peças de informação ou representação, tão logo obtenha o laudo pericial ou documento equivalente, lançará nos autos manifestação fundamentada, mantendo ou declinando da atribuição, bem como providenciará a remessa de cópia daquela manifestação, para ciência, ou os próprios autos, conforme o caso, à Promotoria de Justiça ou ao Promotor de Justiça local com a atribuição para a tutela dos interesses atinentes ao meio ambiente ou à habitação e urbanismo.

Por sua vez, a Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo pelo interesse público mais abrangente (art.114 §2º); (b) tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art.114 §3º); e (c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art.114 §3º).

Conforme se nota, muito embora se possa dizer que haja sobreposição de atribuições, percebe-se com segurança que a matéria investigada nos autos está relacionada ao membro do Ministério Público com atribuição na área da Habitação e Urbanismo, porque não se encontram presentes as hipóteses que autorizam deslocar a atribuição do Promotor de Justiça da Habitação e Urbanismo para o Promotor de Justiça do Meio Ambiente, à luz do art. 3º do Ato n. 55/95 – PGJ, de 23 de março de 1995 (PT. N. 28.779/94-PGJ - apenso Pt. n. 899/93-CAO).

O Laudo de Vistoria Técnica elaborado pelo CAEX notou que na área objeto de investigação existia a tendência do estabelecimento de um quadro de desconformidade urbanístico e habitacional, sendo certo que ficou registrada a ocupação por 388 famílias. A Informação Técnica DUSM/DEPRN n. 04/08 assentou que o “projeto apresentado visa regularizar uma situação já consolidada há várias décadas”(fls. 1312).

Por todo o exposto se vê que a questão central noticiada nos autos está afeta às atribuições da Promotoria de Habitação e Urbanismo.  Destarte, conclui-se que o suscitado, Promotor de Justiça com atribuição na área da Habitação e Urbanismo, deverá prosseguir na investigação.

3)Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao suscitado, 2º Promotor de Justiça de Mogi das Cruzes, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 17 de maio de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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