Conflito de Atribuições - Cível

Protocolado nº 53.982/09

(IC nº 02/2006, ref. Of. Nº 13/09)

Suscitante: Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão de Santo André

Suscitada: Promotor de Justiça das Pessoas Portadoras de Deficiência de Santo André

Ementa:

1)Conflito negativo de atribuições.  Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão de Santo André (suscitante) e Promotor de Justiça das Pessoas Portadoras de Deficiência de Santo André (suscitado).

2)Inquérito civil. Investigação a respeito da existência de programas de atendimento para pessoas portadoras de deficiência. Arquivamento do procedimento, uma vez constatada a existência do atendimento. Desmembramento, com envio de cópias ao suscitante, para investigação quanto à estrutura das unidades de atendimento, identificada essa como questão de saúde pública.

 3)Equivalência dos interesses tutelados (pessoas portadoras de deficiência e saúde pública). Atribuição da Promotoria de Pessoas Portadoras de Deficiência que abrange tanto a existência de programas especiais de atendimento, como a qualidade desse atendimento, inclusive quanto à estrutura das unidades respectivas.

5)Conflito conhecido e dirimido. Determinação para que o suscitado prossiga na investigação, no feito desmembrado.

 

Vistos.

1)Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão e como suscitado o DD. Promotor de Justiça das Pessoas Portadoras de Deficiência, ambos da comarca de Santo André.

O Inquérito Civil nº 02/2006 foi instaurado na Promotoria de Justiça das Pessoas Portadoras de Deficiência de Santo André, tendo como objeto a apuração sobre o atendimento governamental às pessoas portadoras de deficiência no referido Município.

Ao longo da investigação, foi apurada a existência, em Santo André, de serviços destinados ao atendimento de deficientes, entre eles Núcleos de Atenção Psicossocial (NAP) e Centros de Atenção Psicossocial (CAP).

Diante da existência dos serviços públicos tanto para tratamento ambulatorial como para fins de internação, de pessoas portadoras de deficiência ou transtornos mentais, foi realizada a promoção do arquivamento do referido Inquérito civil.

Entretanto, na promoção do arquivamento, o DD. Promotor de Justiça das Pessoas Portadoras de Deficiência (suscitado) determinou a extração de cópias do procedimento investigatório e remessa ao DD. Promotor de Justiça de Defesa dos Direitos Constitucionais do Cidadão (suscitante), para que este tomasse providências no que diz respeito às deficitárias condições materiais e humanas dos aludidos serviços, por entender que esta caracterizada, nessa situação, necessidade de investigação na área da saúde pública.

Na sua manifestação, o suscitado, averbou que “não há como ignorar que a vistoria realizada em algumas unidades apontou restrições. Foram apontadas restrições materiais e humanas. Entretanto, tais apontamentos se referem à estrutura dos órgãos de saúde, o que faz parte das dificuldades enfrentadas por toda a rede de saúde pública do Município. Destarte, entendemos que cabe à Promotoria da Cidadania tomar conhecimento do teor dos referidos laudos de vistoria a fim de analisar eventual tomada de providências visando sanar as irregularidades apontadas, vez que, no entendimento desta Promotoria, tal análise se refere à estrutura da saúde pública do Município, o que foge da atribuição da Promotoria das Pessoas Portadoras de Deficiência” (fls. 29/30).

Uma vez desmembrada a investigação, as cópias do IC nº 02/2006 foram remetidas ao suscitante, por meio do ofício nº 13/09 (fls. 26), e este suscitou o conflito negativo aduzindo, em síntese, que: (a) a investigação desmembrada diz respeito à própria temática do atendimento às pessoas portadoras de deficiência; (b) ainda que assim não fosse como a matéria já vinha sendo investigada pelo suscitado, ele está prevento no que tange à apuração das questões conexas.

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196).

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

Esta idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2ºvol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central noticiado no inquérito civil instaurado originariamente, bem como nas cópias remetidas ao suscitante, diz respeito tanto à existência de atendimento de saúde especializado para pessoas portadoras de deficiência, como ainda às condições estruturais (materiais e humanas) em que o Poder Público realiza tal atendimento no Município de Santo André.

Desse modo, ainda que fosse possível afirmar que no IC nº 02/2006, apuração originária, estivesse em jogo apenas a análise a respeito da existência de atendimento especializado para pessoas portadoras de deficiência, e nos autos desmembrados (ofício nº 13/09) exclusivamente a análise da estrutura de atendimento, não haveria como negar que os dois aspectos decorrem das mesmas circunstâncias de fato.

Dessa forma, ainda que fosse possível identificar, no caso, interesses supra-individuais afetos a áreas distintas de atuação do Ministério Público (pessoas portadoras de deficiência e saúde pública), é possível afirmar que ambos se encontram, nesse caso, intimamente vinculados à mesma situação de fato investigada no inquérito civil.

Diga-se mais: por hipótese, caso fossem propostas duas ações distintas relacionadas ao mesmo fato, uma com pretensão à tutela preventiva relativa ao meio ambiente, e outra relacionada à tutela preventiva quanto à saúde da população, provavelmente, em função da conexão de causas, dar-se-ia a reunião de feitos para instrução e julgamento conjunto (art. 105 do CPC).

De outro lado, é oportuno anotar que se afigura extremamente comum que, em determinada investigação, verifique-se a existência de mais de um interesse, afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público. Isso decorre da própria complexidade dos interesses coletivos, cujo dinamismo faz com que nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.

Em outras palavras, é corriqueiro que haja, em certo caso, sobreposição de matérias atinentes a diferentes áreas de atuação.

A Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº 734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo pelo interesse público mais abrangente (art. 114, § 2º); (b) tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art. 114, § 3º); e (c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art. 114, § 3º).

Diante dos três critérios indicados em lei, acima referidos, cumpre examinar qual deles serviria ao caso versado nestes autos.

Tratando do tema, Hugo Nigro Mazzilli anota que “se houver mais de uma causa bastante para a intervenção do Ministério Público no feito, nele funcionará o membro da instituição incumbido do zelo do interesse público mais abrangente”, esclarecendo que para tais fins, a análise da abrangência deve ser feita no sentido do individual para o supra-individual (Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 421/422).

Assim, pondere-se, como esclarecimento, que em casos envolvendo conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses metaindividuais, em que desde logo fique demonstrada, de forma concreta, a presença de fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção (art. 114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº734/93).

Isso decorre da correta observação, em nosso sentir e respeitando entendimentos diversos, que entre interesses metaindividuais, ainda que afetos a áreas distintas de atuação, não há maior abrangência de um com relação a outros: todos eles são indiferentemente amplos e igualmente abrangentes.

Aliás, como reforço a tal raciocínio, valeria trazer à colação também a observação de que no processo coletivo, a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art. 2º da Lei nº 7347/85. Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do mencionado art. 2º da Lei da Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito da competência: a prevenção.

Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p. 483/484, nota n. 6 ao art. 2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

Anote-se, ademais, que o critério da prevenção, quando o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com atribuições para a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende ao interesse geral, à continuidade, à eficiência, e à eficácia da atividade ministerial.

Deste modo, se no caso concreto há interesses supra-individuais relacionados a mais de uma área de atuação, ostentando abrangência equivalente, o órgão ministerial que primeiro tomou contato com o caso (que já vinha conduzindo a apuração) deve prosseguir na investigação, adotando eventualmente as providências judiciais cabíveis.

O desenvolvimento do raciocínio acima, de todo modo, é externado, nesse passo, a título de argumentação, mas seria até desnecessário. Isso, por uma simples razão: no caso em exame, com a devida vênia quanto ao respeitável entendimento do suscitado, não se pode dizer que a investigação da deficiência estrutural do atendimento às pessoas portadoras de deficiência seja uma questão afeta exclusivamente à área da saúde pública e, portanto, às atribuições do suscitante.

Ao contrário, a Promotoria das Pessoas Portadoras de Deficiência deve investigar não só a existência dos programas de atendimento de pessoas com tais características, mas também a qualidade desse atendimento, e a respectiva estrutura. Esse é um aspecto da saúde pública que, na divisão de serviços que vem sendo adotada no Ministério Público, cabe a tal órgão especializado de execução.

Em síntese: seja pelo critério da prevenção, seja ainda pela matéria propriamente indicativa da temática relativa às Pessoas Portadoras de Deficiência, caberá ao suscitado prosseguir na investigação desmembrada por força do ofício nº 13/09 (fls. 26).

3)Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. Promotor de Justiça das Pessoas Portadoras de Deficiência de Santo André, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 18 de maio de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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