Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 55.311/09

(MPE nº 21/09 – Peruíbe; MPF nº 1.34.012.000025/2006-34)

Suscitante: Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão de Peruíbe

Suscitada: Procurador da República em Santos

 

 

Ementa:

1)Representação para instauração de conflito negativo de atribuições entre o Ministério Público Estadual e o Ministério Público Federal.  Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão de Peruíbe (suscitante) e Procurador da República em Santos (suscitado).

2)Honorários de sucumbência em ações em que a Fazenda Municipal é vencedora. Destinação aos Procuradores do Município. Ausência de retenção de parcela devida a título de Imposto sobre a Renda.

3)Hipótese de dano ao erário da União, e não do Município. Não aplicação do disposto no art. 158, I da CR/88. Rendimento que não é pago pela Municipalidade, mas sim pela parte sucumbente, com a qual a Municipalidade litigou.

4)Representação acolhida, encaminhando-se os autos ao E. STF, para exame do conflito negativo de atribuições.

 

 

Vistos.

1)Relatório.

Trata-se de representação para fins de instauração de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão de Peruíbe, e como suscitado o DD. Procurador da República em Santos.

Por força de representação que lhe foi encaminhada, o DD. Procurador da República atuando na cidade de Santos instaurou o procedimento investigatório em epígrafe (MPF nº 1.34.012.000025/2006-34), tendo como objeto a aferição da ocorrência de dano ao erário e ato de improbidade administrativa.

Noticiavam os autos que a Administração Municipal não havia efetuado a retenção de Imposto de Renda na fonte, incidente sobre os rendimentos repassados aos Procuradores Jurídicos da Municipalidade, oriundos da sucumbência de contribuintes em cobranças judiciais da dívida ativa, nos exercícios de 1996 a 2001.

Em razão disso, e por força do disposto no art. 158, I da CR/88, o DD. Procurador da República em Santos (suscitado) determinou a remessa dos autos ao Ministério Público Estadual, sustentando, em síntese, que se algum dano ocorreu, esse foi praticado em detrimento do erário municipal (fls. 46/48).

Ao receber os autos, o DD. Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais do Cidadão de Peruíbe representou a esta Procuradoria-Geral de Justiça, a fim de que seja suscitado o conflito negativo de atribuições, alegando, em síntese, que: (a) não há, nem mesmo em tese, dano ao erário Municipal; (b) de acordo com a legislação em vigor, os honorários decorrentes da sucumbência pertencem aos advogados, e não ao Município; (c) dessa forma, se dano houve pelo não pagamento do Imposto de Renda sobre os honorários percebidos pelos Procuradores Municipais, esse dano foi verificado em detrimento da União, e não da Municipalidade (fls. 51/55).

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

A quaestio iuris cuja solução se mostra imprescindível para o equacionamento do presente conflito diz respeito à identificação dos limites para a atuação do Ministério Público Federal e do Estadual em matéria de defesa do patrimônio público.

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição órgão ministerial a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

No plano dos fatos, a hipótese investigada nestes autos está circunscrita à notícia de que a Municipalidade de Peruíbe, em determinado período, efetuou o repasse de honorários de sucumbência aos respectivos Procuradores, sem providenciar a retenção da parcela devida a título de Imposto de Renda. A partir daí pode-se afirmar, ao menos em tese, que teria ocorrido lesão ao erário público.

É necessário saber, entretanto, se essa lesão verificou-se em prejuízo do erário Municipal ou da União, para, então, uma vez identificado o patrimônio público potencialmente lesado, definir-se qual a Justiça competente (estadual ou federal), bem como qual unidade do Ministério Público (estadual ou federal) deverá atuar.

Pois bem.

É bem verdade que, de acordo com o art. 158, I da CR/88, pertence aos Municípios “o produto da arrecadação do imposto da União sobre renda e proventos de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendimentos pagos, a qualquer título, por eles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem ou mantiverem”.

A leitura desse dispositivo poderia levar à impressão inicial de que, sempre e em todos os casos, sendo o Município beneficiário do montante pago a título de Imposto de Renda por seus servidores, a não ocorrência da retenção na fonte levaria a lesão ao erário Municipal, e, conseqüentemente, à competência da Justiça Estadual, bem como atribuição do Ministério Público do Estado, para análise de casos relacionados à hipótese.

Entretanto, premissa para a incidência da disposição contida no art. 158, I da CR/88, é que a renda tributada ao servidor público seja paga pela Municipalidade. O dispositivo refere-se literalmente aos “...rendimentos pagos, a qualquer título, por eles (Municípios), suas autarquias e pelas fundações que instituírem ou mantiverem”.

Não parece, com a devida vênia com relação às ponderações formuladas pelo DD. Procurador da República em Santos, que seja essa a situação verificada no caso em exame.

É bem verdade que o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8906/94) estabelece, no art. 21, que “nas causas em que for parte o empregador, ou pessoa por este representada, os honorários de sucumbência são devidos aos advogados empregados”.

Entretanto, na hipótese dos advogados públicos, vinculados ao Poder Público em qualquer uma de suas esferas (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), a afirmação de que os honorários de sucumbência são devidos ao patrono e não à pessoa jurídica com a qual ele possui vínculo funcional, não decorre desse dispositivo.

Por força do art. 4º da Lei Federal nº 9527/97, as regras contidas no Capítulo V do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, sob a rubrica “Do Advogado empregado”, não se aplicam aos advogados que integram a Administração Direta e Indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Textualmente, assim dispõe o art. 4º da Lei nº 9527/97:

“Art. 4º. As disposições constantes do Capítulo V, Título I, da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994, não se aplicam à Administração Pública direta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como às autarquias, às fundações instituídas pelo Poder Público, às empresas públicas e às sociedades de economia mista.”

Entretanto, no caso em exame, por outra disposição legal é possível afirmar que os honorários da sucumbência, nos casos em que a Fazenda Municipal for vencedora, serão devidos aos Procuradores do Município. Trata-se da Lei Municipal nº 1223/89 (cópia às fls. 61).

Referido diploma municipal não deixa dúvida de que a verba de sucumbência é devida aos Procuradores Municipais quando o Município se sagra vencedor em litígios judiciais.

Assim dispõe o art. 1º da lei municipal mencionada:

“Art. 1º. Os honorários advocatícios, provenientes da sucumbência nos feitos da Fazenda Municipal, inclusive da cobrança amigável da dívida ativa, serão destinados ao Departamento Jurídico, para distribuição aos integrantes da careira de Procurador Jurídico em atividade, pelo sistema de rateio em partes iguais.”

Trata-se, a propósito, de lei editada pelo Poder Legislativo Municipal na regulação do regime jurídico de certa categoria de servidores do Município, matéria afeta, assim, à competência do legislador municipal.

Nesses termos, enquadrando-se os honorários de sucumbência no conceito de renda, em benefício de determinada categoria de servidores do Município (Procuradores Municipais), não há como negar que eles são sujeitos a tributação.

Contudo, tais valores não são pagos pela Municipalidade, mas simplesmente por ela repassados, visto que, em verdade, são pagos pelas partes que sucumbem nos litígios judiciais em que o Poder Público Municipal também se fez presente.

Dessa forma, é inaplicável, à hipótese, a regra de destinação de receita tributária prevista no art. 158, I da CR/88. Em outras palavras: o imposto devido pelos Procuradores do Município, em função da percepção de honorários de sucumbência, não formará receita em favor da Municipalidade, mas sim em favor da União.

Cumpre frisar que diversa seria a solução, nesse particular, caso a discussão se travasse em torno do Imposto de Renda pago por servidores Municipais em função de remuneração paga pelo próprio Município. Nesse caso, haveria lesão à Municipalidade.

Daí a posição prevalente do C. STJ, a respeito das questões sobre a legitimidade e a competência, estampada na seguinte ementa que, nada obstante referir-se aos Estados, aplica-se, mutatis mutandis, aos Municípios:

“TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL – AGRAVO DE INSTRUMENTO - RETIDO NA FONTE IMPOSTO DE RENDA DE SERVIDORES ESTADUAIS - DEMANDA QUESTIONANDO ISENÇÃO - UNIÃO - ILEGITIMIDADE - AGRAVO REGIMENTAL - DECISÃO MANTIDA.

Nas demandas movidas por servidores públicos estaduais questionando o imposto de renda que lhes é retido na fonte, a legitimidade é dos Estados da Federação; pois, apesar de instituído pela União, o produto de tal imposto é destinado aos Estados. A União é nessas demandas parte ilegítima. Precedentes: REsp 694.087/RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 21.8.2007 e REsp 594.689/MG, Rel. Min. Castro Meira, DJ 5.9.2005.” (STJ, AgRg no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 430.959/PE, REL. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 06.05.2008).

Mas não é só.

Também nesse sentido é o posicionamento da doutrina, valendo anotar, com Leandro Paulsen, ao tratar do disposto no art. 157 e no art. 158 da CR/88, que “os Estados, o DF e os Municípios são simples destinatários do produto da arrecadação do imposto que incide na fonte sobre a renda e proventos pagos por eles (...)” (Direito tributário, 9ª ed., Porto Alegre, Livraria do Advogado Editora, 2007, p. 414, g.n.).

Em outras palavras, o produto da arrecadação do Imposto de Renda incidente sobre os honorários repassados aos Procuradores do Município não pertence a este ente federativo, mas sim à própria União, em decorrência da sua competência tributária para a instituição e arrecadação do referido tributo (art. 153, III da CR/88).

Não se vislumbra, nesse quadro, possibilidade de lesão ao erário do Município, mas sim ao erário federal, o que justificaria, ao menos em tese, a propositura de ação civil perante a Justiça Federal, com fundamento no art. 109, I da CR/88, e conseqüentemente o exercício da atribuição investigatória, bem como a propositura da demanda coletiva, pelo Ministério Público Federal.

Nesse passo, cumpre recordar que a Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar nº 75/93), prevê: (a) como função institucional do Ministério Público da União a defesa do patrimônio nacional e do patrimônio público e social (art. 5º, III, a e b); (b) confere-lhe atribuição para promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social (art. 6º, VII, b); (c) incumbe-lhe de propor ações cabíveis para declaração de nulidade de atos ou contratos geradores do endividamento externo da União, de suas autarquias, fundações e demais entidades controladas pelo Poder Público Federal, ou com repercussão direta ou indireta em suas finanças (art. 6º, XVII, b); (d) que o Ministério Público Federal exercerá suas funções nas causas de competência de quaisquer juízes e tribunais, para, entre outras coisas, a defesa de direitos e interesses integrantes do patrimônio nacional (art. 37, II); (e) que o Ministério Público Federal exercerá a defesa dos direitos constitucionais do cidadão sempre que se cuidar de garantir-lhes o respeito pelos Poderes Públicos Federais, bem como por órgãos da administração pública federal direta ou indireta (art. 39, I e II).

3)Decisão.

Diante do exposto, acolhe-se a representação formulada pelo DD. Promotor de Justiça dos Direitos Constitucionais de Peruíbe, determinando-se a remessa dos autos ao E. Supremo Tribunal Federal, a fim de que seja dirimido o conflito negativo de atribuições surgido na hipótese em exame.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 19 de maio de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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