Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado n. 55.388/09

Suscitante: 3ª Promotoria de Justiça de Meio Ambiente da Capital

Suscitada: 5ª Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital

 

 

Ementa:

1) Conflito negativo de atribuições envolvendo a Promotoria de Justiça de Meio Ambiente da Capital, como suscitante, e a Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital, como suscitada.

2) Procedimento instaurado em face de representação elaborada pela COMGÁS – Companhia de Gás de São Paulo – e dirigida à Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital, noticiando, em síntese, intervenções irregulares de terceiros nas estruturas externas e internas da rede de equipamentos de distribuição de gás natural aos postos de abastecimento de gás natural veicular.

3) Grave risco de explosão por força da intervenção não autorizada e ilícita se dar por pessoas sem a necessária qualificação técnica.

4) Notícia de que postos de abastecimento estão prestando serviços de forma a colocar em risco a segurança e a vida dos consumidores.

5) Art. 6º, I, do Código de Defesa do Consumidor que arrola, como Direito Básico do Consumidor, “a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos”.

6) Art. 8º do CDC que, por sua vez, exige a proteção da saúde e da segurança do consumidor, determinando que os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretem riscos à saúde ou segurança dos consumidores.

7) Necessidade de tutela do consumidor típico, participante da relação de consumo, bem como interesse público na tutela do consumidor por equiparação legal, assim definido pelo art. 17 do CDC.

8) Ainda que houvesse equivalência dos interesses tutelados a solução seria o encaminhamento à Promotoria do Consumidor, primeira destinatária da representação.

9) Conflito conhecido e dirimido. Determinação para que os autos sejam encaminhados à Promotoria de Justiça do Consumidor.

 

 

Vistos.

1) Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições em que figura como suscitante a 3ª Promotoria de Justiça de Meio Ambiente da Capital e como suscitada a 5ª Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital.

O conflito teve origem nos autos do procedimento investigatório ainda não instaurado formalmente, mas cuja tramitação teve início na Promotoria do Consumidor, após representação encaminhada à citada Promotoria pela COMGÁS – Companhia de Gás de São Paulo –, empresa concessionária de serviços públicos, noticiando, em síntese, intervenções irregulares de terceiros nas estruturas externas e internas da rede de equipamentos de distribuição de gás natural a postos de abastecimento de fás natural veicular.

Esclarece a autora da representação que lhe compete a instalação, operação e manutenção do serviço de distribuição de gás natural ao estabelecimento-cliente (posto de abastecimento), que se torna responsável pela guarda do combustível, mediante o processo de compressão e armazenamento, bem como pela venda ao consumidor final.

Ocorre que visitas de rotina realizadas pela COMGÁS têm constatado intervenções irregulares de terceiros nas estruturas externas e internas da rede de equipamentos de distribuição de gás natural aos postos de abastecimento.

Referidas intervenções são clandestinas e ilícitas, mesmo porque objetivam desviar combustível da rede de dutos, prejudicando a contabilização e gerando enriquecimento ilícito a favor dos postos de abastecimento.

A questão central é o grave risco de explosão provocado por essa intervenção não autorizada e ilícita, decorrente da forma precária como ocorre.

Ou seja, a COMGÁS deu à Promotoria do Consumidor notícia que postos de abastecimento estão prestando serviços de forma a colocar em risco a segurança e a vida dos consumidores das regiões de Campinas, Santos, Vale do Paraíba e Grande São Paulo.

A representação foi encaminhada à Promotoria do Consumidor em 07/01/2009 e ainda não foi tomada qualquer providência no âmbito administrativo ou judicial, não tendo havido sequer a instauração formal de procedimento investigatório.

Com efeito, a 5ª Promotoria do Consumidor, ao consignar nos autos que não vê motivo para sua atuação, entendeu que o cerne da demanda é o risco ambiental inerente à distribuição fraudulenta de gás natural aos postos da Capital (fls. 186). A proteção do consumidor, no entender da Promotoria especializada, é mera questão subjacente, pois o interesse público mais abrangente envolve a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Por isso, a 5ª Promotoria do Consumidor da Capital requereu a remessa dos autos à Promotoria de Justiça do Meio Ambiente, onde o procedimento foi distribuído livremente (fls. 189).

A COMGÁS voltou a acionar o Ministério Público de São Paulo em fevereiro de 2009 (fls. 193/199), clamando por “providências por parte das autoridades públicas competentes, para coibir, eficazmente, os imensuráveis danos à coletividade de consumidores e ao meio ambiente natural e artificial urbano”.

 A Promotoria de Meio Ambiente da Capital, pelo 3º Promotor de Justiça, entendeu que não tem atribuições para atuar no feito. Consignou que se “verifica uma enérgica política de proteção ao consumidor já na resolução n. 39/248 aprovada pela ONU em 1985 que evidencia uma especial preocupação com a proteção contra riscos à saúde e segurança, em especial através da necessidade de vigilância de práticas prejudiciais com as fraudes nas prestações de serviços. Tal é disposto com um dos principais direitos dos consumidores, consubstanciado no direito à segurança.

O próprio art. 17 do CDC alarga o conceito de consumidor para estendê-lo a todas as vítimas de danos relativos à prestação de serviços. Assim, mesmo a coletividade dispersa também pode ser considerada consumidora, nos casos em que comunguem interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos” (fls. 202).

Por esses e outros fundamentos, a Promotoria de Meio Ambiente suscitou o presente conflito de atribuições, exaltando que deve ser fixada a atribuição da Promotoria do Consumidor.

É o relato do essencial.

 

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.196).

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

Essa idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central da investigação é o grave risco imposto aos consumidores, inclusive os consumidores por equiparação legal, pela prática ilícita noticiada nos autos.

Por outras palavras, os elementos de convicção até aqui constantes dos autos noticiam que postos de abastecimento estão prestando serviços de forma a colocar em risco a segurança e a vida dos consumidores da Capital.

Não há nos autos qualquer notícia de contaminação ambiental.

Interessante observar que o Código de Defesa do Consumidor, quando arrola os Direitos Básicos do Consumidor, em seu art. 6º, cita como primeiro direito fundamental “a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos”.

O art. 8º do CDC, por sua vez, exige a proteção da saúde e da segurança do consumidor, determinando que os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretem riscos à saúde ou segurança dos consumidores.

No caso presente, além da tutela do consumidor típico, participante da relação de consumo, há interesse público na tutela do consumidor por equiparação legal, assim consideradas as possíveis vítimas de um hipotético acidente de consumo. Foi por essa razão que o art. 17 do CDC equiparou a consumidor todas as vítimas do evento.

Enfim, a questão principal apurada no presente procedimento está afeta às atribuições da Promotoria de Justiça do Consumidor.

De outro lado, é oportuno anotar que se afigura extremamente comum que, em determinada investigação, verifique-se a existência de mais de um interesse, afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público. Isso decorre da própria complexidade dos interesses coletivos, cujo dinamismo faz com que nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.

Em outras palavras, é corriqueiro que haja, em certo caso, sobreposição de matérias atinentes a diferentes áreas de atuação.

A Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo pelo interesse público mais abrangente (art.114 §2º); (b) tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art.114 §3º); e (c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art.114 §3º).

Diante dos três critérios indicados em lei, acima referidos, cumpre examinar qual deles serviria ao caso versado nestes autos.

Tratando do tema, Hugo Nigro Mazzilli anota que “se houver mais de uma causa bastante para a intervenção do Ministério Público no feito, nele funcionará o membro da instituição incumbido do zelo do interesse público mais abrangente”, esclarecendo que para tais fins, a análise da abrangência deve ser feita no sentido do individual para o supra-individual (Regime Jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.421/422).

Assim, pondere-se, como esclarecimento, que em casos envolvendo conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses metaindividuais, em que desde logo fique demonstrada, de forma concreta, a presença de fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção (art.114 §3º da Lei Complementar Estadual nº734/93).

Aliás, como reforço a tal raciocínio, valeria trazer à colação também a observação de que no processo coletivo, a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art.2º da Lei nº7347/85. Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do mencionado art.2º da Lei da Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito da competência: a prevenção.

Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p.483/484, nota n.6 ao art.2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

Anote-se, ademais, que o critério da prevenção, quando o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com atribuições para a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende ao interesse geral, à continuidade, à eficiência, e à eficácia da atividade ministerial.

Deste modo, ainda que se conclua que no caso concreto há interesses relacionados a mais de uma área de atuação em defesa de interesses supra-individuais, ostentando abrangência equivalente, o órgão ministerial que primeiro tomou contato com o caso (que já vinha conduzindo a apuração) deve prosseguir na investigação, adotando eventualmente as providências judiciais cabíveis. Também nesse caso a atribuição seria da Promotoria de Justiça do Consumidor, que primeiro recebeu a representação inicial.

Posto isso, a atribuição para prosseguir nas investigações é da Promotoria de Justiça do Consumidor.

 

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Remetam-se cópia dos autos às Promotorias de Justiça do Consumidor das cidades de Campinas e Santos, bem como às Promotorias do Consumidor do Vale do Paraíba e da Grande São Paulo.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 22 de maio de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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