Conflito negativo de atribuições

 

Protocolado nº. 56.892/2009

Suscitante: 10º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

Suscitado: 8º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

Conflito negativo de atribuições. Promotor de Justiça que recebe representação anônima e, antevendo eventual semelhança com fatos tratados em inquérito civil que tramita em Promotoria de Justiça diversa, encaminha os autos “para análise”. Recebendo os autos e entendendo tratarem-se dos mesmos fatos objeto de inquérito civil que tramitou pela anterior Promotoria, além de considerar a manifestação anterior – encaminhamento para análise – como negativa de atuação, suscitou o conflito negativo. O conflito de atribuições somente se caracteriza na hipótese de dois Membros do Ministério Público pretenderem atuar no mesmo feito ou, ao contrário, não aceitarem a atribuição. No caso, há inquérito civil regularmente instaurado e a remessa de peças que devem ser objeto de exame e providências, inclusive arquivamento, se for o caso, com submissão da decisão ao Conselho Superior do Ministério Público. Conflito não conhecido.

1. Relatório

O 10º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital suscita conflito negativo de atribuições, tendo por suscitado o 8º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, sustentando que o procedimento PJPP-CAP nº 268/2009 foi instaurado tendo por base representação anônima enviada à Corregedoria Geral do Ministério Público, por mensagem eletrônica, cujo objeto é o suposto pagamento de propina a agentes públicos e repasse de verba pública destinada aos salários dos motoristas da empresa privada TB Transportes Ltda., contratada pela Municipalidade de São Paulo. Foram ouvidas sob sigilo duas pessoas que narraram fatos relacionados ao objeto da representação.

Consta dos autos cópia da promoção de arquivamento do PJC-CAP nº 128/2008, cujo requerente também é anônimo e representada a Secretaria Municipal de Saúde e TB Transportes Ltda. (fls. 06/10), tendo sido encaminhado ao Egrégio Conselho Superior do Ministério Público, para homologação.

Finalmente, consta despacho da lavra do 8º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (Suscitado – fl. 18), pela qual se determinou o encaminhamento dos autos ao 10º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (Suscitante), para análise.

Recebidos os autos foi suscitado o conflito negativo de atribuições (fls. 28/33), em síntese dizendo que os fatos são idênticos àqueles tratados no Inquérito Civil nº 128/2008, que tramita pela 8º Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital.

É a síntese do necessário.

2. Fundamentação

Desde logo, verifica-se que não está, no caso, configurado o conflito de atribuições.

Como se sabe, é extremamente tênue a linha divisória que distingue a legítima apreciação, pelo Procurador-Geral de Justiça, de um conflito de atribuição concretamente considerado, e eventual manifestação emitida em situação de inexistência de caso concreto a analisar, que poderia configurar violação da independência funcional do membro do Ministério Público, estipulada expressamente como princípio no art. 127, §1º da Constituição.

O respeito à independência funcional, dentro do entendimento que tem prevalecido e que acabou sendo acolhido pelo legislador, é que impede, por exemplo, que recomendações do Procurador-Geral de Justiça aos demais órgãos de execução tenham caráter vinculativo, quanto aos estritos limites relacionados ao específico desempenho de suas funções de execução (cf. art. 19, inc. I, alínea “d” da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

Deste modo, pode-se concluir que a solução de problemas atinentes a atribuições depende de sua concreta configuração, bem como da iniciativa dos órgãos de execução envolvidos, no sentido de suscitar o conflito.

Essa é a razão pela qual a doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar[1] (cf. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)”[2].

A questão da necessidade de respeito à independência funcional encontra bom exemplo nos casos em que há negativa do membro do Ministério Público, para oficiar em determinado feito, de natureza cível. O fundamento que tem sido adotado para solução de casos desta natureza é a analogia com o art. 28 do Código de Processo Penal[3].

Mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública”[4].

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica”[5]. Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi”[6].

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores e Procuradores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

É certo que, sem a manifestação dos órgãos de execução relação a um único procedimento administrativo, não se configura o conflito de atribuições, impedindo seu conhecimento.

No caso em exame, há um procedimento preparatório que se encontra tramitando regularmente na Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, com expressa negativa de atuação do 10º Promotor de Justiça, mas não a negativa do 8º Promotor de Justiça, uma vez que o encaminhamento teve o específico escopo de análise (fl. 18). Note-se que em nenhum momento o 8º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital se nega a atuar, tendo apenas encaminhado os autos a Promotoria diversa, porém “para análise”.

Assim, necessário colher a manifestação do 8º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, que atuará ou se negará a tanto, expondo suas razões, aí sim se configurando o conflito negativo de atribuições, autorizando a intervenção do Procurador-Geral de Justiça para dirimi-lo.

Obviamente que a independência funcional do Membro do Ministério Público, como se disse, impõe ampla liberdade na apreciação da hipótese, submetida apenas ao controle do C. Conselho Superior do Ministério Público, no caso de arquivamento (art. 9º e seus parágrafos da Lei nº 7.347/85). Todavia, impõe-se considerar eventual negativa se, e somente se, for concretamente expressada.

3) Decisão.

Diante do exposto, não conheço do conflito de atribuições, determinando a remessa dos autos ao DD. 8º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, para a adoção das providências cabíveis.

Publique-se. Comunique-se. Providencie-se remessa de cópia desta decisão para o DD. 10º Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, para conhecimento, bem como ao CAO das Promotorias de Justiça Cíveis e de Tutela Coletiva, por via eletrônica.

São Paulo, 26 de maio de 2009.

 

FERNANDO GRELLA VIEIRA

Procurador-Geral de Justiça

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[1] GARCIA. Emerson. Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196.

[2] MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime Jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487.

[3] Nesse sentido: MAZZILLI, Hugo Nigro. Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.537; Emerson Garcia, Ministério Público, op. cit., p.73)

[4] MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 33ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.121. Confira-se ainda, a respeito desse tema: ARAÚJO, Edmir Netto de.  Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.106/109.

[5] MARONGIU. Giovanni. Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969,p. 626.

[6] GIANNINI. Massimo Severo. Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 12.