Conflito de Atribuições – Cível

 

Autos do Processo n. 583.00.2009.162214-0

Suscitante: 7º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital

Suscitada: Promotoria de Justiça Cível da Capital

 

 

Ementa:

1) Conflito de atribuições. Suscitante: 7º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital. Suscitada: Promotoria de Justiça Cível da Capital Conflito de atribuições – Ação de cobrança proposta pelo Condomínio Edifício Copan em face da senhora I. B. C. S.

2) Demanda que não tem por objeto específico a discussão de direitos de idoso em condições de risco. Atribuição do órgão ministerial que atua em “feitos cíveis” para oficiar como fiscal da lei em ações individuais, ainda que relacionadas a determinado tema de especialização de interesses metaindividuais.

3) Atribuição da Promotoria de Justiça Cível, suscitada.

Vistos.

1) Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições surgido durante a tramitação, perante a 16ª Vara Cível Central da Capital, de ação de cobrança proposta pelo Condomínio Edifício Copan em face da senhora I. B. C. S.

Ocorre que a Promotoria de Justiça Cível da Capital entendeu que a atribuição para atuar no feito é da Promotoria de Justiça de Direitos Humanos, por se tratar de idosa em situação de risco, à luz do Ato Normativo 593/2009-PGJ (fls. 60).

Os autos, então, foram encaminhados ao 7º Promotor de Justiça de Direitos Humanos da Capital, que suscitou o conflito negativo de atribuições, consignando que o “objeto da ação é a cobrança de verbas condominiais. A ré é pessoa de 59 anos, em situação de risco, e sua cunhada informa que está providenciando sua interdição. Tal assunto, sem dúvida, está inserido dentre as atribuições da promotoria de Justiça Cível, nos termos do art. 296, § 2º, da Lei Complementar Estadual n. 734/93” (fls. 64).

Acrescenta, ainda, que a hipótese se enquadra no Ato Normativo n. 593/2009-PGJ.

É o relato do essencial.

2) Fundamentação

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, e deve ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.196).

De antemão, verifica-se que está, no caso, configurado o conflito de atribuições, embora seja extremamente tênue a linha divisória que distingue a legítima apreciação, pelo Procurador-Geral de Justiça, de um conflito de atribuição concretamente considerado, e eventual manifestação emitida em situação de inexistência de caso concreto a analisar, que poderia configurar violação da independência funcional do membro do Ministério Público, estipulada expressamente como princípio constitucional no art.127 §1º da CR/88.

O respeito à independência funcional, dentro do entendimento que tem prevalecido e que acabou sendo acolhido pelo legislador, é que impede, por exemplo, que recomendações do Procurador-Geral de Justiça aos demais órgãos de execução tenham caráter vinculativo, quanto aos estritos limites relacionados ao específico desempenho de suas funções de execução (cf. art.19 I d da Lei Complementar Estadual nº734/93).

Deste modo, pode-se concluir que a solução de problemas atinentes a atribuições depende de sua concreta configuração, bem como da iniciativa dos órgãos de execução envolvidos, no sentido de suscitar o conflito.

Essa é a razão pela qual a doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ªed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p.196. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.486/487).

A questão da necessidade de respeito à independência funcional encontra bom exemplo nos casos em que há negativa do membro do Ministério Público para oficiar em determinado feito, de natureza cível.

O fundamento que tem sido adotado para solução de casos desta natureza é a analogia com o art.28 do Código de Processo Penal (Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ªed., São Paulo, Saraiva, 1991, p.537; Emerson Garcia, Ministério Público, cit., p.73).

Mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p.421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p.106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica”(Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffrê, 1969,p.626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ªed., Milano, Giuffrè, 1993, p.312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores e Procuradores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

Analisados os documentos encaminhados à Procuradoria-Geral de Justiça, verifica-se que não está em discussão o direito do idoso, considerando que o pedido não se justifica na condição de idosa da autora.

Em relação ao caso concreto, importante consignar que o interesse manifestado na ação ordinária não se enquadra na hipótese do inciso II do artigo 74 do Estatuto do Idoso. Diz a lei:

Art. 74. Compete ao Ministério Público:

II – promover e acompanhar as ações de alimentos, de interdição total ou parcial, de designação de curador especial, em circunstâncias que justifiquem a medida e oficiar em todos os feitos em que se discutam os direitos de idosos em condições de risco;

Nos termos do art. 3º, I, “a”, do ATO NORMATIVO Nº 593/2009-PGJ, de 5 de junho de 2009, “Compete também à Promotoria de Justiça de Direitos Humanos:  I – na área de idosos: a) exercer a tutela judicial e extrajudicial dos direitos individuais indisponíveis dos idosos em situação de risco residentes na área de jurisdição do Foro Central da Comarca da Capital”.

Porém, como se extrai dos autos, no caso específico não está em discussão direito do idoso. Por outras palavras, o pedido não se justifica na condição de idosa da autora.

Registre-se, ademais, que há notícia nos autos de que será pleiteada a interdição da ré (fls. 56/57).

É necessário, para justificar a intervenção ministerial como fiscal da lei em feitos individuais envolvendo pessoa idosa, que o caso concreto apresente alguma conotação diferenciada, além das hipóteses comuns ou corriqueiras que são verificáveis em conflitos de interesses envolvendo quaisquer pessoas.

É o que se dá, por exemplo, quando estão em jogo os direitos fundamentais indicados no próprio Estatuto do Idoso, como o direito à vida, à liberdade, à dignidade, à saúde, etc., ou por peculiaridades do caso que revelem situação incomum, que evidencie a fragilidade da parte em razão de sua condição de pessoa idosa.

Assim, não é necessária a intervenção ministerial como fiscal da ordem jurídica em caso de ação de cobrança, só pelo fato de uma das partes ser pessoa idosa. Mas quando estão em jogo direitos fundamentais apontados no Estatuto do Idoso, fica fora de dúvida a necessidade da atuação ministerial.

Posto isso, conheço do conflito de atribuições e decido que a atribuição para se manifestar nos autos é da Promotoria de Justiça Cível da Capital.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber à suscitada, Promotoria de Justiça Cível da Capital, a atribuição para oficiar nos autos.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 1º de fevereiro de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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