Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 61.941/11

(Ref. Representação SIS 43.161.744/11)

Suscitante: 2º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital

Suscitado: 1º Promotor de Justiça de Sumaré

 

Ementa:

1)     Conflito negativo de atribuições. 2º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital (suscitante) e 1º Promotor de Justiça de Sumaré (suscitado).

2)     Compreensão da regra de competência do foro do local do dano (art. 2º da LACP) e do foro da capital do Estado, nos casos de dano regional (art. 93, II, do CDC). Interpretação teleológica.

3)     Inexistência, na hipótese concreta, de qualquer indicação de risco ou dano regional.

4)     Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento do 1º Promotor de Justiça de Sumaré na investigação.

Vistos.

1)   Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 2º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, e como suscitado o DD. 1º Promotor de Justiça de Sumaré, nos autos da Representação SIS 43.161.744/11.

Representação encaminhada pelo Instituto de Pesos e Medidas do Estado de São Paulo ao suscitado (DD. 1º Promotor de Justiça de Sumaré) noticiou que fiscalização realizada pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (INMETRO) detectou que o Auto Posto Portal de Sumaré, estabelecido na R. Fioravante Manciono, nº 765, Jardim Monte Alegre, em Sumaré, expôs à venda 07 (sete) extintores de incêndio recarregados de pó químico com selo de identificação da conformidade não reconhecido pelo Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade (produto não aprovado pelo INMETRO).

O suscitado determinou a remessa da representação (fls. 3) ao DD. 2ª Promotor de Justiça do Consumidor da Capital que, ao recebê-la suscitou o conflito negativo, afirmando, em síntese, que: (a) o dano ou risco é apenas localizado; (b) não há mínimo indício da existência de “padrão de conduta” apto a sinalizar para a ocorrência do dano regional (fls. 16/21).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central para a decisão do conflito é saber qual a provável dimensão do risco ou dano, e, consequentemente, se deve ser aplicada a regra de competência prevista no art. 2º da Lei da Ação Civil Pública e no art. 93, I, do Código do Consumidor, ou então a norma prevista no art. 93, II, do Código de do Consumidor.

O objeto da representação e consequentemente da investigação, como se infere dos autos, está centrado na notícia de que em fiscalização realizada pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (INMETRO) apurou-se que o Auto Posto Portal de Sumaré, estabelecido na R. Fioravante Manciono, nº 765, Jardim Monte Alegre, em Sumaré, expôs à venda 07 (sete) extintores de incêndio recarregados de pó químico com selo de identificação da conformidade não reconhecido pelo Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade.

Resta saber, entretanto, se esse fato é suficiente para configurar a fattispecie prevista no art. 93, II, do Código de Defesa do Consumidor, pelo qual a competência jurisdicional (e por analogia a atribuição ministerial) será do foro da Capital do Estado se o risco ou dano for “regional”.

Não há nestes autos, efetivamente, nenhum elemento concreto (por exemplo, determinado padrão de comportamento de empresa produtora de determinado bem ou prestadora de serviço de amplo espectro) apto a indicar que haja dano ou risco potencial de sua ocorrência com extensão e dimensão tão grandes de sorte a alcançar configuração regional.

Não bastasse isso, mostra-se oportuno delimitar o conceito de “dano regional” adotado pelo legislador, e saber se ele se encontra preenchido no caso concreto, e se, nesse caso, fica afastado o critério primário de definição da competência, no foro do local do dano (nos termos previstos no art. 2º da Lei da Ação Civil Pública, e no art. 93, I, do Código de Defesa do Consumidor).

A interpretação das regras em questão não pode ser, com a devida vênia com relação a entendimento diverso, meramente gramatical, mas sim teleológica.

Os critérios utilizados pelo legislador, definindo a competência do foro do local do dano ou da Capital do Estado, conforme a situação tenha dimensão local ou regional, seguramente levam em consideração a probabilidade de maior eficiência do processo coletivo na coleta de provas, e, consequentemente, o contato direto do órgão jurisdicional com os fatos.

Isso nos leva a propender no sentido de que o simples fato de estarem abrangidos no contexto do risco ou dano, em determinada situação, vários Municípios de certa região do Estado, não é suficiente à configuração da dimensão estadual do dano ou risco aferido, de sorte a deslocar a competência para o foro da respectiva capital.

Não fosse assim, chegar-se-ia a um resultado que certamente não foi o desejado pelo legislador, qual seja estabelecer como juízo competente aquele que está dissociado, até mesmo fisicamente, do contexto da situação de dano ou risco e da coleta da prova em eventual ação judicial.

Embora a lei não tenha estabelecido, de modo objetivo, quantos municípios ou comarcas devem ser alcançados a fim de que seja possível afirmar que o dano ou risco é regional, é possível aduzir que só nos casos em que a situação investigada tenha razoável potencial para efetivamente se espraiar por todo o Estado é que deve ser aplicada a regra de competência do art. 93, II, do Código do Consumidor.

Havendo possibilidade de dano para algumas comarcas de determinada região do interior do Estado, mostra-se mais compatível com o sistema normativo a interpretação segundo a qual qualquer uma das comarcas alcançadas caracteriza-se como foro competente, definindo-se concretamente qual delas será chamada a atuar pela aplicação da regra da prevenção, decorrente do mesmo art. 2º, parágrafo único, da Lei da Ação Civil Pública.

Tal raciocínio deve ser aplicado, por analogia, para identificar o órgão ministerial encarregado de oficiar em certa investigação.

Em outras palavras, todos os órgãos de execução situados em comarcas alcançadas por dano ou risco que se projeta sobre algumas cidades têm, em tese, atribuições para investigar a hipótese, mas deverá efetivamente prosseguir na apuração o que estiver prevento, em razão do anterior contato com a perquirição administrativa, através de representação, procedimento preparatório, ou inquérito civil.

Esse entendimento vem sendo sustentado em sede doutrinária, por identidade de razões, por Ada Pellegrini Grinover (Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, 9. Ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2007, p. 898), anotando que:

“(...)

Cabe, aqui, uma observação: o dispositivo em que ser entendido no sentido de que, sendo de âmbito regional o dano, competente será o foro da capital do Estado ou do Distrito Federal.

No entanto, não sendo o dano propriamente regional, mas estendendo-se por duas comarcas, tem-se entendido que a competência concorrente é de qualquer uma delas.

(...)”

No mesmo sentido, Antônio Herman V Benjamin, Cláudia Lima Marques e Leonardo Roscoe Bessa (Manual do direito do Consumidor, São Paulo, RT, 2008, p. 398), anotam que:

“(...)

Se o dano (real ou potencial) atingir todo o Estado, a competência é da capital do respectivo Estado;

(...)”

Assim também Hugo Nigro Mazzilli (A defesa dos interesses difusos em juízo, 20. Ed., São Paulo, 2007, p. 271), anotando que:

“(...)

b) em caso de ação civil pública destinada à tutela de interesses transindividuais que compreendam todo o Estado, mas não ultrapassem seus limites territoriais, a competência deverá ser, conforme o caso, de uma das varas da Justiça estadual ou federal na Capital desse Estado;

c) em se tratando de tutela coletiva que objetive a proteção a lesados em mais de uma comarca do mesmo Estado, mas sem que o dano alcance todo o território estadual, o mais acertado é afirmar a competência segundo as regras de prevenção, reconhecendo-a em favor de uma das comarcas atingidas nesse Estado;

(...)”

Esse entendimento vem sendo sedimentado pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, como ocorreu, por exemplo, no RESP 448470/RS, rel. Min. Herman Benjamin, j. 28.10.2008, 2ª Turma. Note-se que embora a fundamentação desse julgado não seja expressa nesse sentido, na situação subjacente ao referido caso ficou patente que a competência do juízo da capital do Estado foi reconhecida porque o risco de dano envolvia todo o seu território. Mostra-se oportuno transcrever excerto do voto do relator nesse diapasão:

“(...)

 O Tribunal a quo consignou:

‘No caso dos autos, o Ministério Público Federal requereu expressamente na inicial a ‘extensão do decisum a todo o Estado do Rio Grande do Sul, sem a limitação à Circunscrição (art. 16 da Lei 7.347/85), ou, alternativamente, a restrição da tutela aos jurisdicionados da Circunscrição. Portanto, a eventual procedência do pedido do autor implicaria no alcance regional do decisum, extensivo a todos os usuários dos serviços de telefonia em questão, o que afasta, em princípio, a pretensão do agravante (fl. 328).’

A Corte de origem deu adequada solução à lide, na forma do entendimento doutrinário acima exposto, razão pela qual não merece reforma. Aplica-se ainda, mutatis mutandis, o entendimento exarado no seguinte julgado:

‘ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. COMPETÊNCIA. ART 2º DA LEI 7.347/85. ART. 93 DO CDC. 1. No caso de ação civil pública que envolva dano de âmbito nacional, cabe ao autor optar entre o foro da Capital de um dos Estados ou do Distrito Federal, à conveniência do autor. Inteligência do artigo 2º da Lei 7.347/85 e 93, II, do CDC. 2. Agravo regimental não provido. (AgRg na MC 13.660/PR, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/03/2008, DJe 17/03/2008)’

(...)"

Em síntese, no caso em exame o dano ou risco de sua ocorrência, hipoteticamente considerado, poderá eventualmente alcançar mais de um Município situado em determinada região interiorana do Estado, mas decididamente não se apresenta sugestivo de extensão a todo o Estado.

 Isso faz com que a atribuição para oficiar na investigação seja do órgão ministerial que atua no local do risco ou do dano (art. 2º da Lei da Ação Civil Pública, e art. 93, I, do Código do Consumidor), e não daquele que exerce suas funções na Capital do Estado.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, 1º Promotor de Justiça de Sumaré, a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 17 de maio de 2011.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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