Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 66.672/2010

(Ref. IC nº 162/08 – 3ª PJMAC e Pt. nº 43.0279.0000046/10)

Suscitante: 2º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital

Suscitado: 3º Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital

 

Ementa:

1)     Conflito negativo de atribuições. 3º Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital e 2º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital.

2)     Ocupação irregular, com construções populares (favela) em área de preservação permanente. Hipótese que não se enquadra como parcelamento do solo (loteamento ou desmembramento), na dicção contida no art. 2º, §§ 1º e 2º da Lei nº 6.766/79).

3)     Sobreposição de atribuições dos dois órgãos em conflito, dada a existência de interesse ambiental (área de preservação permanente) e urbanístico (uso do solo urbano). Aplicação do critério da prevenção (art. 114, § 3º, da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

4)     Conflito conhecido e dirimido, com determinação de prosseguimento do suscitado na investigação.

Vistos.

1)   Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitado o DD. 3º Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital, e como suscitante o DD. 2º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, nos autos do IC nº 162/08 – 3ª PJMAC e Pt. nº 43.0279.0000046/10, cujo objeto é a apuração de “construção em solo não edificável, sem autorização da autoridade competente, na av. Ipanema, nº 843, Viela Rocha C. 24, Veleiros.”

O DD. 3º Promotor de Justiça do Meio Ambiente, ora suscitado, ao determinar o encaminhamento do feito à Promotoria de Habitação e Urbanismo da Capital, afirmou que: (a) no local dos fatos encontra-se instalado e consolidado conjunto de habitações populares, denominado “Favela do Ipazure”; (b) algumas dessas construções estão em área de preservação permanente; (c) trata-se de ocupação consolidada, com certa estrutura (água, rede elétrica e coleta de esgotos); (d) a investigação ficou prejudicada, pois “não se trata de uma única construção em solo não edificável, mas sim de invasão de APP por dezenas de famílias”; (e) são mais relevantes que os desdobramentos ambientais, no caso, os “direitos fundamentais dos cidadãos ocupantes das moradias irregulares”; (f) nenhuma ação voltada à recuperação ambiental trará resultados práticos sem providências relacionadas à realocação das pessoas; (g) o art. 2º do Ato nº 55/95-PGJ prevê, para casos como o presente, a atuação da Promotoria de Habitação e Urbanismo (fls. 147/150).

A suscitante, exercendo as atribuições de DD. 2º Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo da Capital, por sua vez, ponderou que: (a) a ocupação em questão não permite regularização, por estar em área de preservação permanente e a menos de dez metros de curso de água; (b) não se trata de loteamento ou desmembramento do solo, nos termos do art. 2º, §§ 1º e 2º da Lei nº 6.766/79, mas sim de ocupação irregular, que vem provocando dano ambiental; (c) como o suscitado já vinha acompanhando o caso anteriormente encontra-se prevento (fls. 158/161).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

No caso em análise, está assentado no feito que o objeto da investigação é a edificação de construções populares (“favela”) em área de preservação permanente. Além disso, não se trata de loteamento ou de desmembramento do solo.

A constatação de que a hipótese envolve simples ocupação irregular, afasta a aplicação do disposto no art. 2º do Ato nº 55/95-PGJ, de 23 de março de 1995, invocado pelo DD. 3º Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital em sua manifestação, quando da remessa dos autos à Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo.

Observe-se, nesse sentido, que o art. 2º do Ato nº 55/95-PGJ, de 23 de março de 1995 prevê a atribuição do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo quando se tratar de “parcelamento irregular do solo em área de proteção ambiental” (g.n.).

Como bem lembrou a suscitante, parcelamento envolve loteamento e desmembramento, cuja definição legal se encontra no art. 2º, §§ 1º e 2º da Lei nº 6.766/79, configurando-se essencialmente com a “divisão de gleba em lotes destinados a edificação” (g.n.), com criação de nova estrutura viária ou aproveitamento daquela já existente. Isso não se confunde com a simples ocupação irregular do solo.

Não há dúvida de que, na hipótese, a investigação apresenta consequências tanto do ponto de vista da preservação do meio ambiente, como ainda do uso do solo, o que permite afirmar que há sobreposição de atribuições dos dois órgãos de execução especializados.

É oportuno anotar que se afigura extremamente comum que, em determinada investigação, verifique-se a existência de mais de um interesse, afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público. Isso decorre da própria complexidade dos interesses coletivos, cujo dinamismo faz com que nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.

A Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº 734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo pelo interesse público mais abrangente (art. 114, § 2º); (b) tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art. 114, § 3º); e (c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art. 114, § 3º).

Diante dos três critérios indicados em lei, acima referidos, cumpre examinar qual deles serviria ao caso versado nestes autos.

Tratando do tema, Hugo Nigro Mazzilli anota que “se houver mais de uma causa bastante para a intervenção do Ministério Público no feito, nele funcionará o membro da instituição incumbido do zelo do interesse público mais abrangente”, esclarecendo que para tais fins, a análise da abrangência deve ser feita no sentido do individual para o supra-individual (Regime Jurídico do Ministério Público, 6. ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 421/422).

Assim, pondere-se, como esclarecimento, que em casos envolvendo conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses metaindividuais, em que desde logo fique demonstrada, de forma concreta, a presença de fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção (art. 114, § 3º da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

Aliás, como reforço a tal raciocínio, valeria trazer à colação também a observação de que no processo coletivo, a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art. 2º da Lei nº 7347/85. Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do mencionado art. 2º da Lei da Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito da competência: a prevenção.

Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p. 483/484, nota nº 6 ao art. 2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

Anote-se, ademais, que o critério da prevenção, quando o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com atribuições para a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende ao interesse geral, à continuidade, à eficiência, e à eficácia da atividade ministerial.

Deste modo, ainda que se conclua que no caso concreto há interesses relacionados a mais de uma área de atuação em defesa de interesses supra-individuais, ostentando abrangência equivalente, o órgão ministerial que primeiro tomou contato com o caso (que já vinha conduzindo a apuração) deve prosseguir na investigação, adotando eventualmente as providências judiciais cabíveis.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, 3º Promotor de Justiça do Meio Ambiente da Capital, a atribuição para oficiar no procedimento investigatório.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 1º de junho de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

 

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