Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado n. 68.917/2010

Inquérito civil n. 42/06

Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Itanhaém (Habitação e Urbanismo) Suscitado: 4º Promotor de Justiça de Itanhaém (Meio Ambiente)

 

 

Ementa: Inquérito civil. Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 1º Promotor de Justiça de Itanhaém (Habitação e Urbanismo). Suscitado: 4º Promotor de Justiça de Itanhaém (Meio Ambiente). Investigação instaurada para apurar danos ambientais ocorridos em área localizada no interiro do Sítio Guarapranga, localizado na Rodovia Pe. Manoel da Nóbrega (SP 55), nas proximidades do km 110 (atual km 326). Predomínio do interesse ambiental. Ainda que houvesse equivalência dos interesses tutelados a solução seria o encaminhamento à Promotoria do Meio Ambiente, primeira destinatária da representação. Conflito conhecido e dirimido, declarando caber ao suscitado, Promotor de Justiça do Meio Ambiente, prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

 

Vistos, paralisação

1)   Relatório

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o 1º Promotor de Justiça de Itanhaém (Habitação e Urbanismo) e como suscitado o 4º Promotor de Justiça de Itanhaém (Meio Ambiente).

Nota-se que o inquérito civil n. 42/06 foi instaurado para apurar danos ambientais ocorridos em área localizada no interior do Sítio Guarapranga, localizado na Rodovia Pe. Manoel da Nóbrega (SP 55), nas proximidades do km 110 (atual km 326).

Consta dos autos que o 4º Promotor de Justiça de Itanhaém (Meio Ambiente), por entender que o dano ambiental decorreu do desmembramento da área em vários lotes, encaminhou o procedimento preparatório ao Promotor de Justiça com atribuições na área de Habitação e Urbanismo (fls. 1738).

Nos termos da manifestação de fls. 1740/1767, o 1º Promotor de Justiça de Itanhaém (Habitação e Urbanismo) suscitou conflito negativo de atribuições, porque, segundo seu entendimento, a matéria sob investigação está relacionada à área de Meio Ambiente.

É o relato do essencial.

2)   Fundamentação

A doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).

Embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas, pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, e qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

Portanto, conhecido do conflito, é o caso de se passar à definição do órgão de execução com atribuições para atuar no presente feito.

Como se sabe, no processo jurisdicional, a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23ªed., São Paulo, Malheiros, 2007, p.250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11ª ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p.56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p.140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p.55 e ss.

Essa idéia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t.I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p.621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p.153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p.95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certa investigação também não parta de elementos do caso concreto, ou seja, seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Na hipótese em análise, o elemento central da investigação é a proteção ao meio ambiente. Logo, a questão principal apurada no presente procedimento está afeta às atribuições da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente.

Observou o suscitado, com propriedade, que não há um loteamento e/ou um desmembramento (ainda que clandestino) em toda a área vistoriada tecnicamente. Além disso, como destacou o 1º Promotor de Justiça de Itanhaém (Habitação e Urbanismo), em relação aos lotes 01 e 02, nos quais foram erigidos conjuntos habitacionais, mediante prévios procedimentos de aprovação, consoante consta do parecer técnico acostado a fls. 1664/1668, “já existe Inquérito Civil em trâmite na Curadoria de Habitação e Urbanismo (autos n. 31/06), visando a investigar problemas estruturais no já mencionado conjunto habitacional” (fls. 1756 e doc. de fls. 1760 e 1761).

A Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo pelo interesse público mais abrangente (art.114 §2º); (b) tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art.114 §3º); e (c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art.114 §3º).

Muito embora seja comum que em determinada investigação se verifique a existência de mais de um interesse, afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público, no caso dos autos sobressai de forma clara a questão ambiental. Nem se poderia afirmar que o artigo 3º, II, do Ato n. 55/95, de 23 de março de 1995 (PT. N. 28.779/94-PGJ - apenso Pt. n. 899/93-CAO), responsável por modificar e consolidar as normas que regulamentam a atribuição dos Promotores de Justiça de Habitação e Urbanismo e do Meio Ambiente na hipótese de parcelamento do solo em área de proteção ambiental, desloca a atribuição para o Promotor de Justiça do Meio Ambiente “desde que não haja moradias com ocupação, embora tenha ocorrido desmatamento, movimentação de terra, abertura de ruas, demarcação de lotes e quadras, e edificações”.

Ora, se assim é, bastaria que houvesse uma única moradia ocupada para que se reconhecesse a atribuição do Promotor de Justiça de Habitação e Urbanismo, o que aberraria aos princípios lógicos mais elementares.

Por todo o exposto se vê que a questão central noticiada nos autos está afeta às atribuições da Promotoria do Meio Ambiente, pois não há que se falar em lesão ao direito da habitação e urbanismo, sendo que o fato que poderia justificar a atuação da referida Promotoria de Justiça já é objeto de outra investigação.

De outro lado, é oportuno anotar que se afigura extremamente comum que, em determinada investigação, verifique-se a existência de mais de um interesse, afeto a mais de uma área de atuação do Ministério Público. Isso decorre da própria complexidade dos interesses coletivos, cujo dinamismo faz com que nem sempre se acomodem, de forma singela, aos critérios normativos, previamente estabelecidos, de repartição das atribuições dos órgãos ministeriais.

Em outras palavras, é corriqueiro que haja, em certo caso, sobreposição de matérias atinentes a diferentes áreas de atuação.

A Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual nº734/93), ao tratar de conflitos de atribuições, estabeleceu os seguintes critérios para sua solução: (a) se houver mais de uma causa bastante para a intervenção, oficiará o órgão incumbido do zelo pelo interesse público mais abrangente (art.114 §2º); (b) tratando-se de interesses de abrangência equivalente, oficiará o órgão investido da atribuição mais especializada (art.114 §3º); e (c) sendo todas as atribuições igualmente especializadas, incumbirá ao órgão que primeiro oficiar no processo ou procedimento exercer as funções do Ministério Público (art.114 §3º).

Diante dos três critérios indicados em lei, acima referidos, cumpre examinar qual deles serviria ao caso versado nestes autos.

Tratando do tema, Hugo Nigro Mazzilli anota que “se houver mais de uma causa bastante para a intervenção do Ministério Público no feito, nele funcionará o membro da instituição incumbido do zelo do interesse público mais abrangente”, esclarecendo que para tais fins, a análise da abrangência deve ser feita no sentido do individual para o supra-individual (Regime Jurídico do Ministério Público, 6ªed., São Paulo, Saraiva, 2007, p.421/422).

No caso concreto, a questão central noticiada na representação, como se disse, está afeta às atribuições da Promotoria do Meio Ambiente.

Pondere-se, ainda, a título de complementação, que em casos envolvendo conflitos entre Promotorias especializadas na tutela de interesses metaindividuais, em que desde logo fique demonstrada, de forma concreta, a presença de fundamentos para a atuação de ambas, razoável solução se apresenta com a regra da prevenção (art.114 §3º da Lei Complementar Estadual nº734/93).

Aliás, como reforço a tal raciocínio, valeria trazer à colação também a observação de que no processo coletivo, a competência para julgamento da ação civil pública é do juízo de direito do foro do local do dano, nos termos do art.2º da Lei nº7347/85. Mas quando o dano coletivo se produz em mais de um foro, o parágrafo único do mencionado art.2º da Lei da Ação Civil Pública indica o critério de solução de eventual dúvida a respeito da competência: a prevenção.

Nesse sentido, anotam Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery (Constituição Federal Comentada e Legislação Constitucional, São Paulo, RT, 2006, p.483/484, nota n.6 ao art.2º da Lei da Ação civil Pública) que “Quando o dano ocorrer ou puder potencialmente ocorrer no território de mais de uma comarca, qualquer delas é competente para o processo e julgamento da ACP, resolvendo-se a questão do conflito da competência pela prevenção”.

Anote-se, ademais, que o critério da prevenção, quando o conflito se apresenta entre órgãos do Ministério Público com atribuições para a tutela de interesses metaindividuais, é aquele que melhor atende ao interesse geral, à continuidade, à eficiência, e à eficácia da atividade ministerial.

Deste modo, ainda que se conclua que no caso concreto há interesses relacionados a mais de uma área de atuação em defesa de interesses supra-individuais, ostentando abrangência equivalente, o órgão ministerial que primeiro tomou contato com o caso, isto é, que recebeu originariamente a representação, foi a Promotoria de Justiça de Meio Ambiente de tal forma que também nesse caso a atribuição seria da mencionada Promotoria de Justiça.

Por tudo isto se conclui que o suscitado, Promotor de Justiça com atribuição na área do meio ambiente, deverá prosseguir na investigação.

 

3)   Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, declarando caber ao suscitado, 4º Promotor de Justiça de Itanhaém (Meio Ambiente), prosseguir na investigação, em seus ulteriores termos.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 17 de junho de 2010.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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