Conflito de Atribuições – Cível

 

Protocolado nº 70010/16

Suscitante: 4º Promotor de Justiça de Praia Grande (Pessoa Portadora de Deficiência)

Suscitado: 7º Promotor de Justiça de Praia Grande (Saúde Pública)

 

Ementa:

1.   Conflito negativo de atribuições. Suscitante: 4º Promotor de Justiça de Praia Grande (Pessoa Portadora de Deficiência). Suscitado: 7º Promotor de Justiça de Praia Grande (Saúde Pública)

2.   Procedimento instaurado para adoção de providências a pedido do marido, para tratamento médico adequado a pessoa que apresenta transtorno bipolar, a qual convive com a família, tem participação social efetiva, mas demonstra nervosismo constante.

3.   Investigação afeta à área da Saúde Pública. A Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência (ratificada pelo Decreto Legislativo nº 186/08 e promulgada pelo Decreto nº 6.949/09) e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/15, art. 2º) promoveram a inserção da deficiência mental no conceito de pessoa com deficiência, como categoria diversa da deficiência intelectual .

4.   À luz da nova legislação, a definição de pessoa com deficiência não é estabelecida sob o ponto de vista exclusivo do impedimento (físico, mental, intelectual ou sensorial), mas sim pela existência de dificuldade, de longo prazo, que a impeça de se relacionar com o ambiente no qual se encontre.

5.   Conflito conhecido e dirimido, cabendo ao suscitado prosseguir na investigação.

 

1)  Relatório.

        Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante o DD. 4º Promotor de Justiça de Praia Grande (Pessoa Portadora de Deficiência) e como suscitado o 7º Promotor de Justiça de Praia Grande (Saúde Pública), relativamente ao feito em epígrafe (Ficha de Atendimento n. 37.0395.0001054/2016-7).

Originou-se o presente procedimento com as declarações do Sr. Tiago de Almeida Bonfim, que procurou a Promotoria de Justiça da Saúde Pública visando a internação psiquiátrica de sua companheira S. A. S., diagnosticada com “transtorno bipolar”.

Nos termos da manifestação de fls. 04/06, o 7º Promotor de Justiça de Praia Grande, ora suscitado, declinou da atribuição e determinou a redistribuição do procedimento à Promotoria de Justiça das Pessoas com Deficiência, argumentando, em síntese, que o conceito atual de pessoa com deficiência é dado pela pelo artigo 1º da Convenção Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 186 de 09 de julho de 2008 e inclui a situação da paciente Simone.

Com vista dos autos, o 4º Promotor de Justiça de Praia Grande (Pessoa Portadora de Deficiência) asseverou que a condição de saúde mental da Sra. S.A.S.  não pode ser considerada como deficiência mental, suscitando o conflito negativo (fls. 19/22).

É o relato do essencial.

2) Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Pode-se, deste modo, afirmar que a definição do membro do parquet a quem incumbe a atribuição para conduzir determinada investigação na esfera cível, que poderá, ulteriormente, culminar com a propositura de ação civil pública, deve levar em consideração os dados do caso concreto investigado.

Rememore-se que o Manual de Atuação Funcional, aprovado pelo Ato Normativo 675/2010-PGJ-CGMP, de 28 de dezembro de 2010, tratando de atribuições das Promotorias de Justiça de Direitos Humanos quanto à Saúde Pública, estabelece o que segue:

“Art. 445. Zelar pelos direitos dos portadores de transtornos mentais de qualquer natureza, em tratamento ambulatorial ou em regime de internação, observando o redirecionamento do modelo de assistência em saúde mental promovido pela Lei nº 10.216/2001, em especial os direitos fundamentais enumerados no seu art. 2º, inclusive promovendo o controle das internações psiquiátricas.

(...).

Art. 446. Sempre verificar a possibilidade de ingressar com ação coletiva, sem prejuízo da adoção de medidas imediatas necessárias à defesa de direitos individuais indisponíveis, a fim de resguardar os interesses de todas as pessoas que se encontrarem na mesma situação”.

No tocante à atuação da defesa dos direitos da pessoa com deficiência, o mesmo Manual de Atuação Funcional reza:

Art. 439. Exercer a defesa dos direitos e garantias constitucionais da pessoa com deficiência, por meio de medidas administrativas e judiciais, competindo-lhe:

I – atender as pessoas com deficiência, em local acessível, valendo-se dos recursos adequados à integral compreensão da pretensão apresentada e à orientação do atendido, deslocando-se ao seu domicílio, quando necessário, para avaliar a extensão do seu problema, inteirar-se de suas necessidades e adotar a medida mais ajustada à sua solução, bem como proceder aos encaminhamentos necessários no sentido de resolvê-los”.

Insta colocar, por sua vez, que o Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999, responsável por regulamentar a Lei n. 7.853, de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, assenta em seu art. 3º:

 ”Art. 3º.”. Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

I - deficiência - toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;

II - deficiência permanente – aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e

III - incapacidade – uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida.

Especificamente quanto trata da deficiência mental, o inciso IV do art. 4º do Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999, reza:

IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

a)     comunicação;

b)     cuidado pessoal;

c) habilidades sociais;

d) utilização da comunidade;

d) utilização dos recursos da comunidade; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)

e) saúde e segurança;

f) habilidades acadêmicas;

g) lazer; e

h) trabalho;

 Da mesma forma, a Meta n. 2 do Ato Normativo n. 721 – PGJ, de 16 de dezembro de 2011 (Pt. n. 128.801/11), que estabelece o Plano Geral de Atuação do Ministério Público do Estado de São Paulo para o ano de 2012, especificou que competirá à esfera da Saúde Pública a proteção de pessoas acometidas de transtorno mental.

Desse modo, antes da Convenção Internacional e da Lei Brasileira de Inclusão, a “deficiência mental” identificava-se, por definição legal, com o atraso intelectual ou com o desenvolvimento mental incompleto, o que, hodiernamente, está inserido no conceito de “deficiência intelectual”.

As expressões até então se equivaliam e diziam respeito às pessoas com desenvolvimento mental intelectual inferior à média, razão pela qual era comum inserir nessa categoria (de “deficiente mental”) os autistas, por exemplo.

Porém, a Convenção e a LBI diferenciaram o impedimento (de longo prazo) de ordem intelectual do impedimento de ordem mental, admitindo que se enquadre no conceito de pessoa com deficiência tanto aquele que possua doença ou transtorno - tais como esquizofrenia, transtorno bipolar, etc - desde que o referido impedimento mental seja de longo prazo e, em interação com uma ou mais barreiras, obstrua sua participação plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas.

Destaque-se que o novo diploma legal, espelhado na Convenção Internacional, trouxe relevante inovação de ordem principiológica, porquanto passou a estabelecer que a definição de pessoa com deficiência não deve ser analisada sob o ponto de vista único do impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial, isto é, com base exclusivamente na falta de um membro ou sentido, na existência de doença ou transtorno mental ou de atraso intelectual, mas sim pela presença de barreiras ou dificuldades que a impeçam de se relacionar, de se integrar na sociedade, isto é, de se ver incluída socialmente.

Atualmente, portanto, a definição de quem é ou não pessoa com deficiência se mede pelo grau de dificuldade para a inclusão social e não pela limitação de ordem física, mental, intelectual ou sensorial que o indivíduo possui.

Por isso, restou absolutamente superada a linha conceitual que norteava a legislação anterior, notadamente o Decreto nº 3.298/99, no sentido de definir a pessoa com deficiência com base apenas na patologia ou na incapacidade que apresenta, elencada em lei.

O novo conceito de pessoa com deficiência não estabelece causas, tendo conteúdo amplo, ligado à relação da pessoa com a deficiência que a acomete.

Desse modo, pode-se afirmar que Decreto nº 3.298/99 só poderá ser adotado se for para beneficiar a inclusão e não para promover exclusão. Se sua utilização causar qualquer empecilho à implementação do conceito fixado pela Convenção, será tido como inconstitucional.

Deveras, a proteção trazida pela Convenção Internacional e, agora, pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15), passou a imprimir a marca da anormalidade não mais à pessoa e sim ao grau de dificuldade de sua interação com o ambiente na qual se encontre.

Assim, caso determinada pessoa não se encaixe em qualquer das causas elencadas no Decreto, não poderá de imediato ser desconsiderada como pessoa com deficiência, já que ela poderá se encaixar no conceito amplo da Convenção.

Além disso, a verificação da existência e do grau de dificuldade deverá ser feito em cada caso concreto. De fato, há pessoas que possuem algum tipo de impedimento de ordem física, mental, sensorial ou intelecutal, mas que não encontram nenhum tipo de barreira, problema de adaptação ou dificuldade de integração social, não podendo, por isso apenas, ser enquadradas no conceito de pessoa com deficiência.

Uma pessoa que possua doença mental, portanto, não pode, apenas por esse fato, ser enquadrada como pessoa com deficiência, sendo necessário analisar, no caso concreto, a existência ou não de dificuldade de interação com o ambiente em que vive, bem como as condições na qual se encontre.

Assim, aquele que tem esquizofrenia mas que esteja amparado pela família e submetido a tratamento médico eficaz e que, a despeito da doença mental, consegue ter uma vida produtiva, não pode, a priori, ser enquadrada como pessoa com deficiência.

O mesmo se diga com respeito à pessoa que possua adoecimento ou transtorno psíquico mais leve, como quadro depressivo ou ansioso, reativos de caráter mais psicológicos ou alcoolismos leves, casos que não geram por si só seu enquadramento como pessoa com deficiência.

Já aquele que seja acometido por doença ou transtorno mental e que não tenha suporte familiar, que não esteja recebendo tratamento médico eficiente e que encontre dificuldades de interação com o meio social em que vive, poderá, nessas condições ser considerado pessoa com deficiência.

Colocadas essas premissas, a solução dos conflitos de atribuição envolvendo as Promotorias da Pessoa com Deficiência e da Saúde Público deve ocorrer à luz da inovação legislativa promovida pela Convenção e pela Lei Brasileira de Inclusão.

De fato, a tutela daquele que possui transtorno ou doença mental de longo prazo e que, por conta disso, encontre dificuldades de participação plena social, em condições de igualdade com os demais, em determinado caso concreto, poderá ser enquadrado como pessoa com deficiência, exigindo, por consequência, a tomada de providências da Promotoria de Justiça da Pessoa com Deficiência.

Desse modo, o doente/portador de transtorno mental, quando deficiente, nos termos da Convenção da Lei Brasileira de Inclusão, deve ser tutelado individual e coletivamente pela Promotoria da Pessoa com Deficiência.

No caso específico dos autos, nota-se que não há nenhuma informação que pudesse sugerir ser a senhora S. A. S deficiente. E seria exagerada qualquer conclusão nesse sentido, só porque ela, ao mudar de cidade, interrompeu o tratamento que vinha fazendo para o seus “transtorno bipolar” e tem  se mostrado “nervosa” sob a ótica do marido e do filho Menor.

Destarte, à luz dos elementos especificamente colhidos nesse procedimento, pode-se concluir que o feito deve seguir sob a presidência da suscitada, evidenciando assim a necessidade de intervenção do membro do Ministério Público com atribuição na área da Saúde Pública.

A atuação do Promotor de Justiça com atribuição na área de proteção à Pessoa Portadora de Deficiência ocorrerá em se tratando de deficiência intelectual catalogada como funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, à luz do disposto no inciso IV do art. 4º do Decreto n. 3.298, de 20 de dezembro de 1999.

3) Decisão

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber ao suscitado, DD. 7º Promotor de Justiça de Praia Grande (Promotoria de Justiça da  Saúde Pública), a atribuição para oficiar no procedimento.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando-se a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 24 de junho de 2016.

                      

 

                           Gianpaolo Poggio Smanio

    Procurador-Geral de Justiça

 

Efsj