Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 70.687/2010

(Ref. Ação de Reintegração de Posse nº 127.2007.006709 – 2º Vara Cível de Carapicuíba – remessa de cópias)

Suscitante: 5º Promotor de Justiça de Carapicuíba

Suscitado: 4º Promotor de Justiça de Carapicuíba

 

Ementa:

1. Conflito negativo de atribuições. 5ª Promotora de Justiça de Carapicuíba (suscitante) e 4ª Promotora de Justiça de Carapicuíba (suscitada).

2. Ação de reintegração de posse. Ato de divisão de serviços da Promotoria de Justiça de Carapicuíba. Previsão de atribuição da suscitada para oficiar nos “feitos cíveis” da Vara Judicial. Atribuição da suscitante para Habitação e Urbanismo, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos, exceto os feitos em trâmite no Juizado Especial Criminal.

3. A interpretação dos atos normativos que disciplinam a divisão de serviços no âmbito das Promotorias de Justiça deve ser feita de modo contextual e finalista. A análise literal da regra, embora seja um dos elementos para sua compreensão, não é suficiente, por si só, para o equacionamento das dúvidas e conflitos.

4. As atribuições especializadas dos órgãos de execução na esfera dos interesses transindividuais são tratadas de forma explícita. Os casos não enquadrados nas hipóteses de propositura de ações coletivas e atuação como fiscal da lei nas ações civis públicas propostas por outros legitimados dizem respeito à atuação ministerial como custos legis em outros processos, enquadrando-se nos “feitos cíveis”.

5. Conflito conhecido e dirimido, cabendo à suscitada prosseguir no feito.

 

Vistos.

 

1)Relatório.

Trata-se de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante a DD. 5ª Promotora de Justiça de Carapicuíba e como suscitada a DD. 4º Promotora de Justiça de Carapicuíba, nos autos da Ação de Reintegração de Posse nº 127.2007.006709 (2º Vara Cível de Carapicuíba).

De acordo com a suscitante, DD. 5ª Promotora de Justiça de Carapicuíba, o conflito negativo surgiu em demanda de reintegração de posse proposta pelo Espólio de (...) em face de todas as pessoas que se encontram ocupando lotes no loteamento denominado “Jardim Ana Stella”, em trâmite na 2ª Vara Cível de Carapicuíba.

Afirma a suscitante que a intervenção nos autos de reintegração de posse deve ser feita pela suscitada, com atribuição para funcionar nos feitos cíveis da 2ª Vara Cível de Carapicuíba, e não à Promotoria de Justiça com atribuição na área de tutela de direitos transindividuais relacionados à habitação e urbanismo. Justificou a assertiva aduzindo que a intervenção do Ministério Público no âmbito da Promotoria de Justiça especializada resta prejudicada, uma vez que a matéria urbanística encontra-se devidamente tutelada pela Administração Pública, através de assentamento nas obras do PAC, mediante a obtenção de verbas federais para a regularização completa da desordem urbanística instalada.

Acrescente-se que a DD. 5ª Promotora de Justiça de Carapicuíba firma o entendimento no sentido de que não possui atribuição para funcionar em todas as Varas Cíveis de Carapicuíba, sendo certo que a atribuição para se manifestar nos feitos da 2ª Vara Cível de Carapicuíba é da 4ª Promotora de Justiça de Carapicuíba.

Por outro lado, a suscitada, 4ª Promotora de Justiça de Carapicuíba, declinou de sua atribuição sob a justificativa de que a controvérsia ventilada na demanda está diretamente relacionada à habitação e urbanismo, à medida que se discute o direito à moradia de aproximadamente 700 (setecentas) famílias e cerca de 1500 (mil e quinhentas) pessoas.

Registre-se que o presente protocolado consiste em cópias reprográficas da Ação de Reintegração de Posse nº 127.2007.006709 (2º Vara Cível de Carapicuíba), pois o juízo oficiante decidiu que não seria possível a remessa dos autos originais a esta Procuradoria Geral de Justiça.

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

É possível afirmar que o conflito negativo de atribuições está configurado, devendo ser conhecido.

Como anota a doutrina especializada, configura-se o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato”, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196).

Como se sabe, no processo jurisdicional a identificação do órgão judicial competente é extraída dos próprios elementos da ação, pois é a partir deles que o legislador estabelece critérios para a repartição do serviço. Nesse sentido: Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, 23. ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 250/252; Athos Gusmão Carneiro, Jurisdição e competência, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2001, p. 56; Patrícia Miranda Pizzol, A competência no processo civil, São Paulo, RT, 2003, p. 140; Daniel Amorim Assumpção Neves, Competência no processo civil, São Paulo, Método, 2005, p. 55 e ss.

Esta ideia, aliás, estava implícita no critério tríplice de determinação de competência (objetivo, funcional e territorial) intuído no direito alemão por Adolf Wach, e sustentado, na doutrina italiana, por Giuseppe Chiovenda (Princípios de derecho procesal civil, t. I, trad. esp. de Jose Casais Y Santaló, Madrid, Instituto Editorial Réus, 1922, p. 621 e ss; e em suas Instituições de direito processual civil, 2º vol., trad. port. de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 153 e ss), bem como por Piero Calamandrei (Instituciones de derecho procesal civil, v. II, trad. esp. Santiago Sentís Melendo, Buenos Aires, EJEA, 1973, p. 95 e ss), entre outros clássicos doutrinadores.

Ora, se para a identificação do órgão judicial competente para a apreciação de determinada demanda a lei processual estabelece, a priori, critérios que partem de dados inerentes à própria causa, não há razão para que o raciocínio a desenvolver para a identificação do órgão ministerial com atribuições para certo caso também não parta da hipótese concretamente considerada, ou seja, de seu objeto.

Na situação em exame, em suma, a solução do conflito residirá em definir se deve oficiar em determinada ação de reintegração de posse a Promotora de Justiça que tem atribuições na área de proteção aos direitos da habitação e urbanismo (suscitante) ou se deve atuar naquele feito, como fiscal da lei, a Promotora de Justiça que tem atribuição para oficiar nos feitos de natureza cível da 2ª Vara de Carapicuíba (suscitada).

A divisão de atribuições da Promotoria de Justiça de Carapicuíba foi fixada pelo Ato nº 073/2009 – PGJ, de 01 de julho de 2009, determinando-se à suscitada funcionar nos seguintes feitos:

a) feitos da 2ª Vara Cível e suas respectivas audiências;

b) Infância e Juventude (carentes e interesses difusos), inclusive as ações civis públicas distribuídas e suas respectivas audiências;

c) Direitos Humanos (Saúde Pública, Idoso, Pessoa com Deficiência e Serviços de Relevância Social), inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos;

d) feitos cíveis de finais 1, 2, 3, 4 e 5, da Vara do Juizado Especial Cível e suas respectivas audiências;

e) feitos de finais 1, 2, 3, 4 e 5 da Corregedoria de Registros Públicos;

f) atendimento ao público nas áreas de atribuição.

Por sua vez, conferiu-se à suscitante as seguintes atribuições:

a) feitos da 1ª Vara Cível e suas respectivas audiências;

b) Meio Ambiente, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos, exceto os feitos em trâmite no Juizado Especial Criminal;

c) Habitação e Urbanismo, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos, exceto os feitos em trâmite no Juizado Especial Criminal;

d) feitos cíveis de finais 6, 7, 8, 9 e 0, da Vara do Juizado Especial Cível e suas respectivas audiências;

e) atendimento ao público nas áreas de atribuição.

A interpretação dos atos normativos que disciplinam a divisão de serviços no âmbito das Promotorias de Justiça deve ser feita de modo contextual e finalista. A análise literal da regra, embora seja um dos elementos para sua compreensão, não é suficiente, por si só, para o equacionamento das dúvidas e conflitos.

É correta a observação de que pode ser conveniente a atuação como fiscal da lei, em reintegração de posse, do órgão de execução com atribuições especializadas para a defesa da habitação e urbanismo. Isso, na medida em que tal solução pode render ensejo tanto ao conhecimento mais abrangente dos casos relacionados ao tema na comarca, como ainda complementar as investigações que realiza e suas iniciativas processuais.

Nada obstante, é preciso indagar se essa solução, possivelmente conveniente, encontra amparo no ato regulamentar de divisão de serviços.

Em regra, as atribuições especializadas dos órgãos de execução na esfera dos interesses difusos, dos interesses coletivos e dos interesses individuais homogêneos, são tratadas de forma explícita. Nesses casos, pelo que ordinariamente se observa, os atos que fixam a divisão de serviço concedem a determinado cargo de certa Promotoria de Justiça a missão de atuar em defesa de interesse especificado (meio ambiente, consumidor, patrimônio público, etc.). E as regras de experiência demonstram, do mesmo modo, que essa atuação, assim fixada, diz respeito às ações civis públicas propostas pelo Ministério Público, como também à atuação, como fiscal da lei, nas ações civis públicas relacionadas àquela matéria propostas por outros legitimados.

Os demais casos não enquadrados nessas hipóteses (ou seja, de propositura de ações coletivas e atuação como fiscal da lei nas ações civis públicas propostas por outros legitimados), que dizem respeito, portanto, à atuação ministerial como custos legis em outros processos, são atribuições a respeito das quais os atos regulamentares de divisão de serviços, em regra, não tratam especificamente. Esses outros casos normalmente se enquadram sob a designação geral da função de oficiar em “feitos cíveis”.

Essa exegese, calcada na análise sistemática e finalista, seria suficiente para justificar a conclusão no sentido de que a fixação da atribuição da suscitante, em ato normativo, para Habitação e Urbanismo, inclusive as ações civis públicas distribuídas e os feitos criminais respectivos, exceto os feitos em trâmite no Juizado Especial Criminal, não tendo mencionado expressamente a atuação como custos legis em ações possessórias, não engloba tal atribuição.

Em outros termos, sem que tenha sido formulada no ato de divisão de serviços a especificação, a atuação em ações possessórias na condição de fiscal da ordem jurídica recai na regra geral, pela qual cabe ao órgão de execução vinculado à Vara Judicial manifestar-se nos “feitos cíveis” que nela tramitem.

Essa é uma manifestação, contrariu sensu, da regra de hermenêutica pela qual “Lex specialis derrogat generalis”: se não há previsão específica, prevalece a regra geral.

Em outras palavras, se a atribuição especializada está relacionada, como ensina a experiência comum, à atuação do Promotor de Justiça como autor de ações coletivas, ou à atuação como fiscal da lei em ações civis públicas, a inclusão de outras atribuições dependeria de previsão expressa.

Essa lógica foi admitida pela própria Lei Orgânica Estadual do Ministério Público. Note-se que de acordo com o art. 296, caput, da Lei Complementar Estadual nº 734/93, foi estabelecido que aos cargos criminais e cíveis são atribuídas todas as funções relativas à sua área de atuação, salvo as que disserem respeito a cargos especializados.

Note-se que a analogia também favorece essa solução.

Na Lei Complementar nº 734/93, há previsão específica de atribuições das Promotorias de Justiça especializadas na Comarca da Capital. No art. 295, VIII, está prevista a função do Promotor de Justiça de Mandados de Segurança para “mandados de segurança, ações populares, ‘habeas data’ e mandados de injunção ajuizados na primeira instância”; enquanto no art. 295, IX (red. Lei Complementar estadual nº 1.083, de 17 de dezembro de 2008), está prevista a função do Promotor de Justiça do Patrimônio Público e Social para “defesa da probidade e legalidade administrativas e da proteção do patrimônio público e social”.

Também não está caracterizada a prevenção, uma vez que o feito tramita pela 2ª Vara Cível, e a divisão de atribuições da Promotoria de Justiça de Carapicuíba, fixada pelo Ato nº 073/2009 – PGJ, de 01 de julho de 2009, determina à suscitada funcionar nos feitos da 2ª Vara Cível e suas respectivas audiências.

Por todos os motivos expostos, o conflito deve ser conhecido e acolhido.

3)Decisão.

Diante do exposto, conheço do presente conflito negativo de atribuições e dirimo-o, com fundamento no art. 115 da Lei Orgânica Estadual do Ministério Público, declarando caber à suscitada, 4º Promotora de Justiça de Carapicuíba, seguir oficiando nos autos da ação de reintegração de posse nº 127.2007.006709, em curso pela 2º Vara Cível de Carapicuíba.

Publique-se a ementa. Comunique-se. Cumpra-se, providenciando a restituição dos autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 22 de junho de 2010.

 

José Luiz Abrantes

Procurador-Geral de Justiça

- em exercício -

 

 

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