Conflito de Atribuições – Cível

Protocolado nº 73.265/09

Suscitante: 4ª Promotora de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital

Suscitado: 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital

Ementa:

1)Conflito negativo de atribuições. 4ª Promotora de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital (suscitante) e 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital (suscitado).

2)Extração de cópias de procedimento investigatório arquivado pela suscitante. Expansão dos serviços de telefonia. Notícia de danos a consumidores dispersos por inúmeros municípios do Estado de São Paulo.

3)Não configuração do conflito de atribuições. Conflito não conhecido.

4)Princípios da economia e eficiência. Hierarquia administrativa no Ministério Público. Possibilidade de remessa dos autos, pelo Procurador-Geral de Justiça, ao órgão de execução em cuja esfera de atribuições se enquadre a hipótese sob investigação.

5)Danos que, em tese, alcançaram inúmeros municípios do Estado de São Paulo. Regra de competência prevista no art. 93, II, da Lei nº 8078/90. Competência para eventual ação civil pública que, em tese, será do foro da Capital do Estado. Atribuição da Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital.

6)Conflito não conhecido. Determinação de remessa dos autos à Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital, para prosseguimento na investigação.

 

Vistos,

1)Relatório.

Tratam estes autos de conflito negativo de atribuições, figurando como suscitante a DD. 4ª Promotora de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, e como suscitado o DD. 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital.

A Presidência da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo encaminhou representação ao Ministério Público, contendo relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito instituída com a finalidade de investigar possíveis irregularidades e má qualidade na prestação de serviços de telefonia fixa e móvel.

A representação foi distribuída à Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital, sendo certo que o suscitado, DD. 5º Promotor de Justiça do Consumidor da Capital, declinou de oficiar naqueles autos, entendendo que a atribuição para tanto seria da Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social.

Em sua respeitável manifestação, o suscitado salientou que “a recomendação do órgão legislativo é para que se realize, no âmbito do Ministério Público, inclusive em Promotorias de Justiça do interior, apuração quanto à lisura da transferência do patrimônio das antigas empresas estatais TELESP e CTBC às empresas privadas que obtiveram a concessão de exploração do serviço público de telecomunicações, em especial as telefonias fixa e móvel. Trata-se, pois, de investigação concernente ao patrimônio público, de atribuição, s.m.j., da Promotoria de Justiça da Cidadania” (fls. 13/15).

Em razão disso, providenciou a devolução dos autos, que foram, então, remetidos à Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital.

Ao receber os autos, a suscitante, DD. 4ª Promotora de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, promoveu o arquivamento do procedimento no que tange à questão relativa à defesa do patrimônio público, determinando, entretanto, a extração de cópias para a formação de novo procedimento destinado à apuração de lesão a interesses supra-individuais na área do consumidor.

Consignou inexistir razão para sua atuação, dada a ausência de indícios de lesão ao erário público por conta da privatização dos serviços de telefonia.

Anotou, entretanto que é “forçoso convir que toda a discussão relativa a possível lesão aos consumidores que aderiram ao plano de expansão e que não receberam a contrapartida acionária, especialmente aqueles abrangidos pela área de domínio da CTBC – Companhia Telefônica da Borda do Campo (Diadema, Mauá, Mogi das Cruzes, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra, Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul e Suzano), não foi objeto de análise pelo Ministério Público. Também não foi objeto de análise a aventada subavaliação das ações destinadas aos consumidores abrangidos pela área de atuação da TELESP e nesse aspecto, salvo melhor juízo, possui atribuição para intervir o órgão de execução que atua na área do consumidor porque o que se tem em mira é possível lesão aos aderentes do plano de expansão e o erário público”.

Daí a extração de cópias e remessa a esta Procuradoria-Geral de Justiça, a fim de que fosse definido qual das Promotorias do Consumidor envolvidas deveria prosseguir nos autos desmembrados (cf. fls. 3/9).

É o relato do essencial.

2)Fundamentação.

De antemão, verifica-se que não está, no caso, configurado o conflito de atribuições.

Como se sabe, é extremamente tênue a linha divisória que distingue a legítima apreciação, pelo Procurador-Geral de Justiça, de um conflito de atribuição concretamente considerado, e eventual manifestação emitida em situação de inexistência de caso concreto a analisar, que poderia configurar violação da independência funcional do membro do Ministério Público, estipulada expressamente como princípio constitucional no art. 127, § 1º da CR/88.

O respeito à independência funcional, dentro do entendimento que tem prevalecido e que acabou sendo acolhido pelo legislador, é que impede, por exemplo, que recomendações do Procurador-Geral de Justiça aos demais órgãos de execução tenham caráter vinculativo, quanto aos estritos limites relacionados ao específico desempenho de suas funções de execução (cf. art. 19, I, d, da Lei Complementar Estadual nº 734/93).

Deste modo, pode-se concluir que a solução de problemas atinentes a atribuições depende de sua concreta configuração, bem como da iniciativa dos órgãos de execução envolvidos, no sentido de suscitar o conflito.

Essa é a razão pela qual a doutrina anota que se configura o conflito negativo de atribuições quando “dois ou mais órgãos de execução do Ministério Público entendem não possuir atribuição para a prática de determinado ato, indicando-se reciprocamente, um e outro, como sendo aquele que deverá atuar (cf. Emerson Garcia, Ministério Público, 2ª ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 196. g.n.).

Em outros termos, conflitos de atribuições configuram-se in concreto, jamais in abstracto, quando, considerado o posicionamento de órgãos de execução do Ministério Público “(a) dois ou mais deles manifestam, simultaneamente, atos que importem a afirmação das próprias atribuições, em exclusões às de outro membro (conflito positivo); (b) ao menos um membro negue a própria atribuição funcional e a atribua a outro membro, que já a tenha recusado (conflito negativo)” (cf. Hugo Nigro Mazzilli, Regime Jurídico do Ministério Público, 6ª ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 486/487).

A questão da necessidade de respeito à independência funcional encontra bom exemplo nos casos em que há negativa do membro do Ministério Público para oficiar em determinado feito, de natureza cível.

O fundamento que tem sido adotado para solução de casos desta natureza é a analogia com o art. 28 do Código de Processo Penal (Nesse sentido: Hugo Nigro Mazzilli, Manual do Promotor de Justiça, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1991, p. 537; Emerson Garcia, Ministério Público, cit., p.73).

Mas nem seria necessário chegar a tanto: embora os membros do Ministério Público tenham a garantia da independência funcional, o que lhes isenta de qualquer injunção de órgãos da administração superior quanto ao conteúdo de suas manifestações, são administrativamente vinculados aos órgãos superiores. E estes, no plano estritamente administrativo, possuem, com relação àqueles, poderes que caracterizam a administração pública: poder hierárquico, disciplinar, regulamentar, etc.

Como anota Hely Lopes Meirelles, o poder hierárquico é aquele de que dispõe a autoridade administrativa superior para “distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu quadro de pessoal (...) tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir as atividades administrativas, no âmbito interno da Administração Pública” (Direito Administrativo Brasileiro, 33ª ed., São Paulo, Malheiros, 2007, p. 121). Confira-se ainda, a respeito desse tema: Edmir Netto de Araújo, Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Atlas, 2005, p. 421/423; Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 106/109.

O reconhecimento do vínculo entre órgão subordinado e órgão superior, no plano estritamente administrativo, é assente inclusive no direito comparado, anotando, por exemplo, Giovanni Marongiu, em conhecida enciclopédia estrangeira, que esta é a nota característica da hierarquia administrativa, na medida em que “questo vincolo, fondandosi su un’autentica supremazia della volontà superiore, ordina l’agire amministrativo e contribuisce a costituire la prima e basilare unità operativa che l’ordinamento riveste della dignità e della forza di strumento espressivo dell’autorità pubblica” (Verbete “Gerarchia amministrativa”, Enciclopedia del diritto, vol. XVIII, Milano, Giuffre, 1969, p. 626).

Do mesmo modo, outra não é a razão pela qual Massimo Severo Giannini reconhece a existência implícita, em decorrência da subordinação hierárquica entre órgãos, de um “potere di risoluzione di conflitti tra uffici subordinati, e quindi anche potere di coordinamento dell’attività degli stessi” (Diritto Amministrativo, v. I, 3ª ed., Milano, Giuffrè, 1993, p. 312).

O reconhecimento da hierarquia na organização administrativa ministerial de modo algum conflita com o princípio da independência funcional: os Promotores de Justiça são independentes no que tange ao conteúdo de suas manifestações processuais; mas pelo princípio hierárquico, que inspira a administração de qualquer entidade pública, são passíveis de revisão alguns aspectos dessa atuação.

Em outras palavras, o Procurador-Geral de Justiça não pode dizer como deve o membro do Ministério Público atuar, mas pode e deve dizer se deve ou não atuar, bem como qual o membro ou órgão de execução que o fará, diante de discrepância concretamente configurada.

Assim, em respeito à economia e eficiência da atuação ministerial, bem como em decorrência da hierarquia administrativa, mesmo antes da configuração de conflito de atribuições, impõe-se ao Procurador-Geral de Justiça que determine o encaminhamento dos autos ao órgão de execução em cuja esfera de atuação se encontre determinado caso.

Na situação em exame, como afirmado anteriormente, não está configurado o conflito negativo de atribuições.

A representação da Presidência da Assembléia Legislativa foi encaminhada inicialmente à Promotoria do Consumidor, e dali, à Promotoria do Patrimônio Público e Social. Nesta, houve promoção do arquivamento com relação à alegação de dano ao patrimônio público, bem como determinação de extração de cópias e, consequentemente, instauração de novo procedimento, para apreciação de questão atinente ao consumidor, que não havia sido analisada.

Reitere-se que não ficou caracterizado verdadeiro conflito: a suscitante, DD. 4º Promotora de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital, aceitou a remessa dos autos inicial – e consequentemente sua atribuição -, apreciou o caso, e promoveu seu arquivamento. Ao determinar a extração de cópias e formação de feito novo, a fim de que seja avaliada a hipótese de dano a consumidores, deu início a outro procedimento, e, consequentemente, nova investigação.

Nada obstante não configurado o conflito, tendo a DD. 4ª Promotora do Patrimônio Público e Social da Capital remetido os autos desmembrados a esta Procuradoria-Geral de Justiça, torna-se necessária a avaliação quanto ao correto encaminhamento, para a análise da hipótese concretamente noticiada na aludida manifestação ministerial (fls. 3/9).

Há de fato a informação nestes autos – destacada no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo -, de que consumidores teriam sido lesados quando da implantação do programa denominado “Planta Comunitária de Telefonia”, instituído com a finalidade de possibilitar a expansão dos serviços às comunidades desprovidas de rede telefônica.

Nesse sentido, transcreve-se trecho do relatório da Comissão Parlamentar, para maior precisão e clareza:

“(...)

A população de cada comunidade onde não estava prevista a expansão da rede pela empresa concessionária, poderia constituir uma associação que, após seu registro, apresentaria um projeto à concessionária para implantação de uma plataforma de telecomunicações e escolher uma empresa de engenharia que efetivamente faria a implantação do projeto.

            Para tanto, cada um dos associados deveria contribuir com uma importância monetária que seria usada para a viabilização da infra-estrutura necessária à efetivação das linhas telefônicas (centrais de chamadas, fios, etc.).

            Ao final da implantação, em contrapartida ao investimento pecuniário dos associados, a concessionária emitia a quantidade de ações equivalente ao valor pago, na medida em que todo o acervo construído a partir das contribuições era cedido à concessionária.

            Na época em que foi instituído o programa, no âmbito do Estado de São Paulo a TELESP e a CTBC – Companhia Telefônica da Borda do Campo operavam os serviços de telefonia, empresas estas que implantaram o programa em 80 municípios.

            Nos municípios pertencentes à área da TELESP (Agudos, Aldeia da Serra, Alphaville, Araçatuba, Araras, Arujá, Assis, Bauru, Bertioga, Biritiba-Mirim, Boituva, Botucatu, Caçapava, Cajamar, Campo Limpo Paulista, Campos do Jordão, Caraguatatuba, Cerquilho, Cotia, Cubatão, Embu, Ferraz de Vasconcelos, Guararema, Guaratinguetá, Guarulhos, Hortolândia, Igaraçu do Tietê, Iguape, Ilhabela, Indaiatuba, Itanhaém, Itapecerica da Serra, Itapetininga, Itaquaquecetuba, Itatiba, Jacareí, Jaguariúna, Jales, Jandira, Jaú, Limeira, Lins, Lorena, Marília, Mairinque, Mongaguá, Nova Odessa, Osasco, Ourinhos, Peruíbe, Pindamonhangaba, Pirapozinho, Poá, Praia Grande, Rancharia, Santa Bárbara D’Oeste, Santa Izabel, Santos, São Carlos, São José do Rio Pardo, São José dos Campos, São Vicente, Serra Negra, Sorocaba, Sumaré, Taboão da Serra, Tremembé, Ubatuba, Valinhos, Várzea Paulista, e Vinhedo), houve a contraprestação acionária por parte da concessionária.

         Já nos municípios abrangidos pela CTBC (Diadema, Mauá, Mogi das Cruzes, Ribeirão pires, Rio Grande da Serra, Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul e Suzano), não obstante a identidade de situação, a concessionária não emitiu ações aos aderentes.  (fls. 23).

A partir dessa constatação, a Comissão Parlamentar de Inquérito concluiu no sentido da ocorrência de lesão aos direitos de consumidores envolvidos.

Não bastasse isso, o relatório da Comissão Parlamentar também apontou que:

“(...) mesmo nas localidades onde houve a contraprestação acionária pela concessionária, há indícios de que houve irregularidade, atrelada à forma de cálculo da quantidade de ações a que os adquirentes teriam direito.” (fls. 30).

Em síntese, tais são as questões que merecerão apreciação por parte da Promotoria de Justiça do Consumidor, nestes autos: (a) a ausência da contraprestação nos contratos firmados por consumidores junto à CTBC; (b) possíveis irregularidades quanto à forma de cálculo da quantidade de ações a que os adquirentes teriam direito, nos demais casos.

Resta definir a qual Promotoria do Consumidor deverá o feito ser encaminhado.

A definição do órgão de execução do Ministério Público que deve atuar em cada caso, na perspectiva territorial, acompanha a identificação do órgão jurisdicional competente para o processo e julgamento da ação civil pública em tese cabível.

A hipótese envolve situação em que, hipoteticamente, teriam sido lesados consumidores de vários municípios, dispersos por todo o Estado de São Paulo.

Como se sabe, no processo coletivo, em princípio a competência para a apreciação de eventual ação civil pública é do foro do local do dano (art. 2º da Lei nº 7347/85).

Contudo, nos casos em que o dano é de âmbito regional – e nesse contexto enquadram-se as situações em que o dano é disperso por determinado Estado – a competência passa a ser do foro da Capital da respectiva unidade federativa, nos termos previstos no art. 93, inciso II da Lei nº 8078/90.

Assim, como a situação a ser investigada renderia ensejo, ao menos em tese, à propositura de ação coletiva no foro da Capital do Estado de São Paulo, por força da aplicação da regra de competência do art. 93, II do Código do Consumidor, torna-se forçoso concluir que a investigação da hipótese encontra-se inserida na esfera de atribuições da Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital.

3)Decisão.

Diante do exposto, não se conhece do conflito de atribuições.

Entretanto, pelos motivos expostos, determina-se o encaminhamento destes autos à Promotoria de Justiça do Consumidor da Capital, para a análise da hipótese de danos a consumidores dispersos pelo Estado de São Paulo, nos termos da fundamentação desta decisão.

Publique-se. Comunique-se. Registre-se. Restituam-se os autos.

Providencie-se a remessa de cópia, em via digital, ao Centro de Apoio Operacional Cível e de Tutela Coletiva.

São Paulo, 03 de agosto de 2009.

 

Fernando Grella Vieira

Procurador-Geral de Justiça

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